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Civic techs promovem judicialização em massa

É imprescindível que o Poder Judiciário, ao lado do incentivo das soluções adequadas de resolução de conflito, também combata as empresas que promovem a mercantilização do acesso à justiça, como uma verdadeira indústria do dano moral.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:46

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O CNJ publica o Relatório Justiça em Números e como o próprio CNJ denomina, trata-se de uma radiografia completa da Justiça Brasileira. Como conclusão deste relatório, o CNJ ponderou que "a litigiosidade no Brasil permanece alta e a cultura da conciliação, incentivada mediante política permanente do CNJ desde 2006, ainda apresenta lenta evolução", ao passo que "em 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados via conciliação1".

É verdade que, na última década, várias iniciativas caminharam no sentido de promover a conciliação como forma adequada de resolução de conflitos. Já em 2010, o CNJ publicou a resolução 125/10, trazendo a cada tribunal a figura dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs), responsáveis pelo pela instalação e fiscalização dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs), que são as "células" de funcionamento da política pública, nas quais atuam os conciliadores, mediadores e demais facilitadores de solução de conflitos.

Em 2013, o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (SENACON), lançou a plataforma online consumidor.gov, cuja missão primordial é promover uma interlocução direta entre consumidores e empresas, visando a solução de conflitos de consumo. Tal plataforma, por sua vez, vem apresentando números excelentes e um crescimento exponencial. Isso se deve, muito em parte, aos seus altíssimos índices de solução, que superam os 80%.

Em 2015, foi publicada a Lei nº 13. 140/2015 (Lei da Mediação), um importante marco no desenvolvimento das iniciativas públicas e privadas na solução de conflitos.

Esses são alguns exemplos de que as políticas públicas, de fato, estão voltadas à promoção das soluções adequadas de resolução de conflitos, através de métodos consensuais.

Mas por que essas políticas (à exceção da plataforma consumidor.gov) apresentam uma lenta evolução, como destaca o CNJ?

Não se pode deixar de mencionar que os brasileiros ainda têm bastante presente a cultura da judicialização, utilizando as cortes como forma primária de resolução de conflitos. Exemplo disso é que, segundo a IAT (Associação Internacional de Transportes Aéreos), no Brasil, cada grupo de cem voos geram oito processos, enquanto nos Estados Unidos ocorre 0,01 processo a cada 100 voos. Há quem atribua esse índice a uma má prestação de serviços das empresas nacionais, o que não correspondente à realidade:  85% dos voos das principais empresas aéreas do Brasil decolam no horário ou com até 15 minutos de atraso, segundo dados da ANAC; enquanto nos Estados Unidos esse porcentual é de 82%, aponta a ABEAR (Associação Brasileira das Empresas Aérea).

Além dessa cultura litigiosa, nos últimos anos, surgiu um grupo formado por empresas autodenominadas "Civic Techs", cujo propósito é o de promover a judicialização em massa de questões comezinhas, principalmente no âmbito das relações de consumo, visando  mercantilizar indenizações.

Civic Techs, normalmente, são startups voltadas à proteção de direitos dos consumidores, registradas de acordo a lei da mediação e que, em tese, operariam com foco em acordos extrajudiciais diretamente com as empresas.

Porém, muitas delas, na prática, buscam encorajar seus clientes a judicializar seus pleitos, chegando a oferecer até R$ 1 mil no ato da contratação, através da compra antecipada dos direitos futuros que vierem a ser reconhecido pelos tribunais. Essa prática tem se mostrado uma perfeita engenharia de captação irregular de clientes, fazendo com que a OAB iniciasse diversas investigações para apurar desvios éticos2.

Tal negócio se mostrou tão lucrativo, que diversos fundos de investimento estrangeiro passaram a investir nestas empresas que, por seu turno, passaram a investir ainda mais em marketing ostensivo. Uma simples pesquisa na internet, com termos como "atraso de voo" e "negativação indevida", mostra um sem número de grupos atuando nesse ramo.

Enquanto os escritórios de advocacia no Brasil se submetem aos limites éticos do Estatuto da OAB, o que os priva terminantemente da publicidade ostensiva, esses grupos atuam sem qualquer limite, agindo nas redes sociais de forma livre e sem quaisquer amarras.

Somente o setor aéreo, um dos mais afetados por esse tipo de Civic Techs, recebeu em 2018 cerca de 64 mil processos relacionados em direito do consumidor. E em 2019, apenas entre os meses de janeiro a julho, foram mais de 109 mil novos processos, segundo dados do IBAER (Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico). Mais da metade desses novos casos podem ser atribuídos às Civic Techs mal intencionadas.

Muito embora essas Civic Techs se apresentem como empresas de mediação, na prática, elas têm promovido um aumento expressivo de ações judiciais, deixando de lado os inúmeros e eficazes meios de solução adequada de resolução de conflitos.

E o problema da judicialização não prejudica apenas as empresas privadas: segundo o último Relatório da Justiça em Números - 2019, o custo anual do Poder Judiciário ficou em torno de  de cerca de R$ 100 bilhões, necessários à manutenção de 77 milhões de processos ativos. Basicamente, cada processo ativo custou ao contribuinte perto de 1,3 mil ao ano.

O princípio do acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV da CF, significa também que todos têm direito a uma justiça funcional, sem morosidade, efetiva e desburocratizada e é justamente isso o que propõem as novas soluções adequadas de resolução de conflitos, como é a plataforma consumidor.gov. A cultura da judicialização engessa a máquina pública e prejudica a todos.

É imprescindível que o Poder Judiciário, ao lado do incentivo das soluções adequadas de resolução de conflito, também combata as empresas que promovem a mercantilização do acesso à justiça, como uma verdadeira indústria do dano moral.

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1- Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacio- nal de Justiça - Brasília: CNJ, 2020. Pg. Apresentação

Fernando de Paula Torre

Fernando de Paula Torre

Advogado, sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA) e especialista em Direito do Consumidor.

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