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A ADIn 4480, o RE 851.108 e o caixa do Governo

A pergunta que não cala é uma só: por que aquele que pega o que não tem direito, confrontado na Justiça, recebe do juiz o direito de ficar com a coisa só porque não pode mais devolvê-la?

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:10

As constituições são leis fundamentais que surgiram para proteger os cidadãos dos desmandos dos governantes. A nossa, de 1988, impõe diversos deveres e limites aos agentes públicos. Entre eles, destacam-se aqueles que restringem a capacidade do Estado de apropriar-se da riqueza e das rendas dos cidadãos, como a proibição do confisco, a divisão da arrecadação entre os entes federativos e as limitações ao poder de tributar.

Toda vez que a Constituição proíbe algo, espera-se que seja cumprida. E toda vez que o governante viola a proibição, espera-se que o Judiciário garanta a validade da norma constitucional, punindo a conduta do infrator. Mas, infelizmente, nem sempre é assim. E digo isso porque é recorrente que os governantes violem a Constituição, passem a cobrar tributos, acostumem-se a gastar a receita inconstitucional e depois, confrontados no STF, digam que não podem viver sem ela, e que a decisão de manter a proibição constitucional causaria "grave dano ao erário". E como é o erário que mantém o judiciário, não raro temos as chamadas "modulações", que, sob a justificativa de segurança jurídica ou excepcional interesse social (Lei 9.868/1999, art. 27), fazem Themis, a deusa da Justiça, tirar a venda, olhar as partes na balança e embainhar sua espada.

Em matéria tributária, desconheço decisões que modularam a cobrança de tributos de contribuintes para obrigá-los a pagar apenas depois da decisão judicial, mas vê-se às pencas aquelas que modulam a devolução de tributos cobrados indevidamente. O interesse social é, na verdade, o governamental, e a segurança jurídica é apenas para o erário.

Para o setor sem fins lucrativos, a ADIn 4480 e o RE 851.108 podem se tornar exemplos de modulação. Em ambos os casos, discute-se a necessidade de edição de lei complementar. No primeiro, para definir as condições em que as entidades estarão desobrigadas de financiar a seguridade social; no segundo, para definir em que condições os Estados podem tributar heranças e doações advindas do exterior.

Como o Congresso Nacional nunca aprovou as leis complementares, nem essas têm prioridade em sua pauta, o Executivo tem proposto leis ordinárias para abocanhar, via tributos, recursos a que não teria acesso. Trazidos os casos ao STF, a Fazenda, ante à cabal inviabilidade de sustentar a constitucionalidade das normas, invariavelmente pleiteia a modulação dos efeitos para manter o dinheiro a que nunca teve direito. No RE 851.108, relatado pelo ministro Dias Toffoli, o Estado de São Paulo alega a "perda" de R$ 2,6 bilhões nos processos em andamento e outros tantos em estimativas de devolução aos contribuintes que pagaram o que não precisavam. Na ADIn 4480, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, a AGU argui nos Embargos de Declaração que o prejuízo seria de R$ 29,4 bilhões em cinco anos e que a decisão poderia implicar em "drástica descontinuidade de políticas sociais em andamento, como, exemplificativamente, as de concessão de bolsa de estudos", omitindo, é claro, que essa "política social" é privada, e decorre de exigência inconstitucional imposta às escolas e universidades, verdadeira caridade com chapéu alheio.

A pergunta que não cala é uma só: por que aquele que pega o que não tem direito, confrontado na Justiça, recebe do juiz o direito de ficar com a coisa só porque não pode mais devolvê-la?

Em minha opinião, tributo inconstitucional é confisco, e isso é proibido pela Constituição. O excepcional interesse social e a segurança jurídica (Lei 9.868/99, art. 27) devem ser invocados não para modular, mas para convalidar a proscrição do confisco de nosso ordenamento.

Os ministros da Suprema Corte devem se lembrar do conto do Moleiro de Sans-Souci, que recorreu ao Judiciário contra o arbítrio do imperador prussiano, que pretendia destruir seu moinho para ampliar o palácio. A sentença foi dada e até hoje o moinho está lá. Não houve modulação.

Eduardo Szazi

Eduardo Szazi

Sócio de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados.

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