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Bloqueio pelo Twitter e ostracismo permanente

É preciso pensar em regras de exclusão de usuários das redes sociais.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Atualizado às 12:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O que se declara como espaço de democracia digital tem trazido inúmeros desafios ao diálogo democrático. Todavia, questões cruciais para o debate público nas redes sociais não vêm recebendo a atenção e o trato jurídico que merecem, tais como: a amplitude do acesso à rede, quem pode participar, quais os assuntos que podem ser deliberados, qual o procedimento para discussão e deliberação, e como os que participam podem ser excluídos).

O bloqueio permanente da conta de Trump do Twitter1, em janeiro de 2020, realça o tema. O ponto relevante a ser considerado não é se o Twitter ou outro gestor de rede social pode ou não pode bloquear automaticamente uma conta, mas como, em que circunstância e por quanto tempo o bloqueio é possível.

E não se trata de Trump apenas. Ele é somente um exemplo de quem sofreu limitações impostas por gestores de rede social a que qualquer indivíduo pode estar sujeito.

A princípio, o bloqueio aparentemente não tem relação direta com a democracia como regime político, mas com a incitação da violência. Por decorrer de desrespeito às políticas de privacidade do Twitter, pode também parecer uma questão privada sob esse aspecto.

Todavia, a invocação da natureza privada da empresa não torna a questão privada, dada a amplitude do acesso público ao Twitter, e seu quase aspecto de Ágora. Além disso, a empresa possui uma função social, e está sujeita à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, logo ao devido processo legal.

A questão, portanto, perpassa por reflexões sobre os dilemas democráticos. É preciso enfrentá-los para analisar a validade do bloqueio.

Desde seu início, a democracia busca técnicas institucionais para sua proteção, como foi o ostracismo, ainda na Grécia antiga2.

Além de ser fruto do sentimento de liberdade, o que, por si, levaria a uma expansão natural, a democracia é um regime político e uma técnica de poder que enfrenta opositores. Requer, portanto, a prática consciente de seus valores para sua manutenção; demanda, em outros termos, uma militância, como defendeu Karl Loewenstein3, e a defesa de inimigos, como o sustentou Karl Popper4.

Ou seja, discursos contra-democráticos devem ser política e juridicamente combatidos. A liberdade de expressão, assim, fundamental à democracia, encontra limites no confronto com outras liberdades e direitos individuais, mas também em sua dimensão pública na necessidade de preservar o regime.

Voltemos ao cenário da exclusão da conta de Trump e seus detalhes. No caso, o ex-presidente Trump já havia violado as normas de conduta do Twitter na semana anterior, e a conta fora suspensa momentaneamente. A suspensão definitiva deu-se após Trump ter violado a política comportamental do Twitter uma outra vez.

A rede social interpretou expressões utilizadas em seus twittes, assim como o contexto e comportamentos sociais então praticados. Diagnosticou que as expressões utilizadas por Trump levavam a comportamentos violentos dentro e fora da rede social, como a invasão ao Capitólio e os movimentos de contestação das eleições. Essa interpretação realizada pelo Twitter torna mais delicada a questão, já que suas frases demandaram uma imputação de ideias e de fatos. As frases de Trump não foram uma clara incitação à violência, mas foram assim interpretadas pela simbologia que carregavam e pelo elo com comportamentos externos.

São três os aspectos principais a serem analisados: a) se o Twitter diretamente poderia ter procedido à exclusão, b) a forma como a exclusão poderia ter ocorrido, c) se a exclusão poderia ser definitiva. Seria possível também analisar se a conduta de excluir/bloquear obedece a um padrão. Se não é meramente situacional e, portanto, mais suscetível a arbitrariedade.

Claro que o Twitter, enquanto gestor da rede social pode excluir o usuário que descumprir sua política comportamental. Isso não significa, porém, que a política comportamental é uma questão apenas privada, que pode ser realizada sem o devido processo legal, e que a exclusão não está sujeita a controle de validade pelo Poder Judiciário.

Quanto à forma como a exclusão poderia ter ocorrido, dada a emergência dos fatos, e a proximidade da posse do presidente Biden, ofertar direito de resposta antes seria, talvez, tornar-se conivente com grave ataque a atos de violência e à democracia. O Twitter cruzou informações de expressões usadas por Trump e comportamentos sociais e constatou a incitação à violência. As instituições e os ritos democráticos são essenciais à força do regime e à sociedade. O ataque ao Capitólio não foi apenas o ataque a um prédio, assim como o ataque à posse do presidente Biden (como forma de contestar as eleições) não seria o ataque a um evento.

O bloqueio, portanto, foi válido, no contexto em que realizado, como teria sido o bloqueio imediato em relação a qualquer outro usuário que incitasse à violência, num cenário de urgências.

Ultrapassado esse contexto, porém, a manutenção do bloqueio sem um devido processo legal parece excessiva, ainda que decorrente de uma reincidência. Enquadra o usuário numa situação de permanente exclusão, sem possibilidade de retorno, como se seu comportamento fosse unívoco, mesmo diante da amplitude da capacidade humana para o diálogo. Não há um devido processo legal, e o indivíduo é permanentemente estereotipado com incapaz de dialogar.

Trump deve ser mantido como opositor no jogo político democrático. Sem oposição, nem jogo democrático haverá. A militância democrática não envolve a aniquilação do direito de fala do opositor, mas que seja possível exigir dele uma fala adequada.

Certamente, pode-se considerar que Trump jamais se ajustará às regras do diálogo democrático, porque fazem parte de sua essência o discurso agressivo e a defesa de valores antidemocráticos, mas é preciso que esse comportamento seja verificado, para a ocorrência de novos bloqueios. Presumi-lo ad aeternum é condená-lo antecipada e indefinidamente.

É preciso pensar em regras de exclusão de usuários das redes sociais. Tais normas até poderiam ser apenas privadas e previstas em políticas de condutas das empresas, mas dado o caráter público de que elas se revestem e a interferência no diálogo democrático, aceitar esse processo interno de elaboração normativa equivaleria a relegar ao espaço privado um tema que é do interesse de todos.

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1 Twitter bloqueia conta de Trump permanentemente | Internacional - Alemanha, Europa, África | DW | 09.01.2021, acessado em 6/1/21.

2 Como forma de defender a democracia de tiranos, os cidadãos das várias tribos se reuniam na Ágora, e escreviam em peças porcelana com forma de ostra (ostrakon - daí o nome ostracismo), o nome das pessoas que consideravam perigosas ao Estado. As peças com nomes eram então contadas; se mais de 6.000 votos forem expressos, o homem cujo nome aparecia em maior número era enviado para o exílio por 10 anos. LANG, Mabel. The Athenian Citizen: Democracy in the Athenian Agora. Princeton, American School of Classical Studies at Athens, 2004.

3 Karl Loewenstein, Militant Democracy and Fundamental Rights, I, The American Political Science Review, Vol. 31, No. 3 (Jun., 1937), pp. 417-432

4 Karl R. Popper, The Open Society And Its Enemies, N. J: Princeton University Press, 1966

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Raquel Cavalcanti Ramos Machado

VIP Raquel Cavalcanti Ramos Machado

Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

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