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Cliente tem direito a indenização se robô de investimento errar?

É um assunto complexo, mas é imperioso discuti-lo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:32

A popularização do mercado de capitais no Brasil tem aberto espaço para novas tecnologias. Entre elas estão os robo-advisors, ou robôs de investimentos. São plataformas online que, por meio de inteligência artificial, exercem a atividade de consultoria e gestão em aplicações financeiras.

Dez anos após o seu surgimento, em 2008, essas ferramentas já eram responsáveis pela administração de mais de US$ 200 bilhões em ativos nos Estados Unidos, segundo dados da Universidade da Pensilvânia. O avanço deve seguir expressivo no mundo e tem tudo para se intensificar no país nos próximos anos. Por isso, a doutrina e os órgãos regulatórios locais devem refletir o quanto antes sobre como adequar a solução aos deveres fiduciários dos consultores e administradores.

Devido ao custo geralmente inferior ao da contratação de um consultor de carne e osso, os robôs de investimentos costumam atrair investidores jovens e com menos patrimônio - categoria que vem contribuindo para o grande aumento das aplicações no país. Os robo-advisors recolhem dados pessoais (perfil, objetivos de investimento, situação financeira e outros) e, através de análises de algoritmos, recomendam investimentos e gerenciam os ativos dos usuários.

Além da redução de custos na contratação de assessoria financeira, essas ferramentas automatizadas trariam como benefícios a execução de tarefas repetitivas de alta complexidade com qualidade superior à humana, a eliminação de comportamentos enviesados e o tratamento igualitário a investidores. Mas, e se conselhos ou decisões dos bots gerarem danos ao aplicador? Essa é uma preocupação da doutrina.

A questão lida com múltiplos aspectos da dogmática ressarcitória, levantando a dúvida acerca da responsabilidade civil aplicada. Isso porque, no âmbito legal, os deveres dos assessores de investimento (tanto administradores quanto consultores) foram pensados sob a ótica de uma relação fiduciária e pessoal, devendo se pautar por boa-fé, transparência, diligência e lealdade - em outras palavras, por valores humanos. Assim determinam as Instruções 592/17 e 558/15 da nossa Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Mas, em face das peculiaridades de sua operação, seriam os robôs suscetíveis à regulação vigente? Esse é o ponto que ocasiona críticas por parte da doutrina.

Há críticas quanto à ineficiência do dever de adequação (suitability), em razão da utilização pelos robôs de questionários genéricos para definição de perfil de risco, podendo levar à indicação de investimentos incompatíveis com o perfil do investidor; à incapacidade de atender ao dever de lealdade ante a facilidade de programação capaz de favorecer os entes operadores; e à insuficiência da informação para os investidores, visto que a lógica por trás desses robôs baseia-se em algoritmos. Ademais, a doutrina questiona a falta de percepção humana, sustentando que os robo-advisors não seriam equipados a lidarem com falhas de mercado.

Nos Estados Unidos, a SEC (U.S. Securities and Exchange Commission) emitiu em 2017 orientações focadas diretamente aos robo-advisors e de que modo os deveres fiduciários estabelecidos em lei poderiam ser tratados para o modelo de negócios específico dos robôs de investimentos.

Foi enfatizada, por exemplo, a necessidade de uma comunicação mais clara aos clientes de limitações, riscos e aspectos operacionais dos robôs. Foi sugerido o dever de explicação detalhado do modelo de negócios, incluindo alertas sobre riscos inerentes ao uso de algoritmos na administração de contas e o grau de envolvimento de supervisão humana nas operações. Esse é um exemplo de conduta proativa que pode ser replicada por aqui, pois já existe no mercado brasileiro um anseio pelo estabelecimento de limites de aplicação da tecnologia em questão.

A matéria da responsabilidade civil e a reparação de eventuais prejuízos financeiros por maus movimentos no mercado financeiro, porém, ainda é algo a ser debatido com maior afinco. Uma vertente é o risco da atividade, uma vez que o processamento de dados pessoais pode acarretar danos físicos, patrimoniais ou extrapatrimoniais, como discriminação, furto de identidade, fraudes diversas, perdas financeiras, dano à reputação e perda de confidencialidade dos dados.

Entretanto, a partir da análise das críticas direcionadas aos robo-advisors, percebe-se que a aplicação do regime da responsabilidade objetiva, por exemplo, estaria condicionada à comprovação de defeito dos serviços algorítmicos, à insuficiência ou inadequação de informações sobre fruição e riscos dos robo-advisors, o que nada mais seria do que uma nova interpretação dos deveres fiduciários de adequação (suitability), lealdade e diligência em relação ao algoritmo utilizado. Portanto, o regime da responsabilidade civil objetiva fundada no risco da atividade, embora seja uma boa solução para os casos envolvendo inteligências artificiais, poderia apresentar uma resposta injusta aos casos envolvendo os robo-advisors, uma vez que o risco financeiro faz parte da essência do mercado financeiro.

O assunto tem muitas facetas e desdobramentos, mas o mais importante é deixar claro que a CVM terá um papel importante para definir o grau dos deveres dessas plataformas quanto à atividade de assessoria de investimentos.

Á luz do ordenamento jurídico brasileiro, não há necessidade de abrir mão de toda a normativa e dos conceitos já existentes, sugerindo-se a adoção de uma responsabilidade objetiva com fundamento no defeito, inspirada nitidamente na legislação consumerista. Isso porque a necessidade de comprovação do defeito ou de insuficiência ou inadequação de informações sobre fruição e riscos da prestação do serviço poderia ser interpretada como uma nova roupagem dos deveres fiduciários já existentes.

Caberá ao órgão regulador, e à própria doutrina, a definição dos deveres adequados a essas plataformas, de modo a estimularem o desenvolvimento tecnológico do mercado financeiro ao passo em que permitem o direito à reparação dos investidores e consumidores por eventuais defeitos na prestação de serviços, sem impor um desequilíbrio para qualquer um dos lados. É um assunto complexo, mas é imperioso discuti-lo.

Yan Viegas Silva

Yan Viegas Silva

Advogado da área de Resolução de Conflitos, é sócio de Silveiro Advogados.

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