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Inconstitucionalidade do uso da tabela do SUS para pagamento de estabelecimentos privados

Utilização da tabela do SUS como referência para pagamento dos serviços de saúde prestados por estabelecimentos privados, em casos de internação por força de determinação judicial, é inconstitucional.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Atualizado às 17:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Situação muito comum, diante da ineficiência estatal em garantir o direito à saúde - e, por consequência, a dignidade da pessoa humana - é o deferimento de medidas liminares para internação compulsória de pacientes na rede privada de serviços hospitalares. Nessas ocasiões, em que se verifica a impossibilidade do Estado de prestar o serviço hospitalar garantidor da manutenção de saúde e vida da pessoa, o Poder Judiciário, dando cumprimento e efetividade às previsões contidas nos artigos 6º e 196 da Constituição de 1988, determina a internação do indivíduo enfermo em unidades hospitalares privadas, atribuindo aos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e/ou Municípios) o dever de arcarem com as despesas decorrentes da internação.

Nesses casos, após o término da internação, o que se verifica é a necessidade de os estabelecimentos hospitalares privados demandarem judicialmente contra a Fazenda Pública para obterem o pagamento pelos serviços prestados quando do cumprimento da ordem judicial. Muitas das vezes não há qualquer pagamento voluntário da quantia devida por parte da Administração Pública, em que pese o dever de obediência por todas as pessoas, físicas ou jurídicas, de direto privado ou público, aos pronunciamentos emanados pelo Poder Judiciário.

Iniciados, pois, os processos, constatam-se as mais diversas teses defensivas elaboradas pelas Procuradorias, dentre as quais aqui se destaca a alegação de que, caso haja para a Fazenda Pública o dever de pagar, o pagamento deve ser feito com base nos valores estabelecidos pelo Sistema Único de Saúde - SUS (Tabela SUS), e não pelos valores apresentados pelo estabelecimento hospitalar privado. Nesse sentido, os Procuradores sustentam que o pagamento efetuado de acordo com os valores de mercado estabelecidos pelo particular violaria o princípio da isonomia e o regime de contratação e remuneração pública da rede complementar de saúde (artigos 5º, caput, 196 e 199, §§ 1º e 2º, da Constituição de 1988).

Diante da controvérsia e da relevância jurídica constitucional do assunto, o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a repercussão geral da questão no RE 666.094/DF (tema 1033)1, estando, contudo, ainda pendente de julgamento o mérito recursal.

 Em relação a argumentação apresentada pelas Procuradorias, observa-se que a tese defensiva destacada acima apresenta falha de premissa elementar, isto é, a argumentação apresentada nos processos acerca da violação ao princípio da isonomia e às normas supracitadas é viciada em sua origem, pois parte de pressuposto equivocado, qual seja, estabelecimento de identidade entre a relação jurídica que surge entre as partes diante de uma ordem judicial e a estabelecida voluntariamente em casos de contrato e convênios da Administração Pública.

Dispõem o caput, §§ 1º e 2º do artigo 199 da Constituição de 1988:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

§ 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.

Além da disposição constitucional, tal participação complementar está disciplinada no Título III, Capítulo II, da lei 8.080/1990, no qual fica estabelecido, assim como no trecho acima transcrito, que a referida participação será realizada por meio de contrato ou convênio, acrescentando, contudo, que a remuneração dos serviços de saúde prestados pelo particular nesses casos ocorrerá conforme os valores referenciais estabelecidos pela direção nacional do SUS (Tabela SUS).

Como se verifica, tanto a Constituição da República Federativa do Brasil quanto a norma infraconstitucional estabelecem que a participação complementar no sistema único de saúde por pessoas pertencentes à iniciativa privada poderá ocorrer por meio de contrato ou convênio com a Administração Pública, ou seja, a referida participação complementar, como bem assentam as referidas normas, é facultativa, e não impositiva, ficando a critério exclusivo do particular a decisão de querer ou não realizar um negócio jurídico (contrato ou convênio) com pessoa administrativa, o que prestigia e garante a livre iniciativa e a autonomia privada.

Assim, para que a participação complementar exista e, por conseguinte, que a entidade privada seja remunerada de acordo com os valores constantes da Tabela do SUS, é necessária a celebração de contrato ou convênio entre o estabelecimento hospitalar e a pessoa jurídica da Administração Pública, e para tanto, deve haver a declaração de vontade de ambas as partes em concordância para produção dos desejados efeitos jurídicos. Seja no caso do contrato, em que os interesses são opostos e diversos, seja no caso do convênio, em que se apresentam interesses paralelos e comuns, o fato é que, para a formação do vínculo jurídico entre as partes, há que se ter a presença da declaração de suas vontades nesse sentido2. Tanto o contrato quanto o convênio, previstos no § 1º do artigo 199 da Constituição de 1988, são espécies de negócios jurídicos3 firmados entre a Administração Pública e a pessoa da iniciativa privada, e, portanto, possuem como elemento essencial para sua existência a declaração de vontade.

Observa-se que a situação jurídica normatizada no texto constitucional, que disciplina uma relação jurídica negocial, difere da situação em que ocorre internação de pacientes em estabelecimentos hospitalares privados por força de ordem judicial. Naquela existe a celebração de um ato jurídico entre as partes, com inequívoca existência de declarações de vontades das partes; nesta outra, verifica-se que não há existência de contrato ou convênio, mas, sim, de imposição do Estado, de ordem emanada pelo Poder Judiciário, determinando a prestação de serviço de saúde pela pessoa privada e o pagamento das despesas pela Fazenda Pública.

Nota-se, portanto, que, no segundo caso, não há qualquer declaração de vontade da entidade hospitalar particular no sentido de querer e aceitar a internação do paciente, muito menos no sentido de formar um ajuste com a Administração Pública para prestação de um serviço de forma complementar, simplesmente ela acata o mandamento judicial e cumpre com o seu dever de assistência à saúde aos que nela são internados, sob pena de empresa e diretores responderem cível, administrativa e criminalmente no caso de descumprimento e omissão de assistência.

Desse modo, não há como afirmar a existência de identidade entre as situações apresentadas nos parágrafos anteriores. A inexistência de declaração de vontade da pessoa pertencente à iniciativa privada nos casos em que há internação e assistência a paciente em razão de determinação judicial não permite essa identificação. A atuação do Poder Judiciário determinando a internação compulsória de paciente em unidade hospitalar privada configura intervenção do Estado na propriedade privada e na ordem econômica, que, quando ocorrida, faz nascer ao particular o direito a indenização, e não possui qualquer semelhança com a realização de um ajuste de vontades entre partes. 

Importante lembrar que a conjugação de imposição de internação compulsória de enfermo e posterior determinação arbitrária do preço a ser pago pelos serviços prestados, ainda mais em valores aquém dos praticados pelo mercado, não se coaduna aos princípios e valores de um Estado Democrático de Direito. A aceitação de tais condutas configuraria verdadeiro retrocesso quanto aos direitos e garantias arduamente conquistados e solidificados na Constituição de 1988.

Outrossim, a alegação de violação ao princípio da isonomia verifica-se justificável apenas à tese defensiva dos estabelecimentos hospitalares privados, pois haveria, neste caso, tratamento igual por parte do Estado a situações jurídicas distintas, inobservando, assim, o espírito principiológico existente desde a Grécia antiga4, o qual exige que aos desiguais devem ser dispensados tratamentos desiguais na medida de suas desigualdades. Desta forma, diante de duas situações jurídicas distintas, o tratamento dispensado a elas não pode ser igual.

Demonstra-se acertada, portanto, a adoção do posicionamento de que o pagamento efetuado pela Fazenda Pública aos estabelecimentos hospitalares privados no caso de internações por força de determinação judicial deve ser realizado com base nos valores apresentados pelo particular, compatíveis com os praticados pelo mercado5, ou seja, com base naqueles usualmente praticados pela iniciativa privada e ajustados conforme parâmetros estabelecidos pelo próprio mercado diante da livre concorrência, pois, ao adotar entendimento contrário, o complexo normativo que rege a ordem econômica tornar-se socialmente ineficaz, não sendo concretizados os preceitos e valores fundamentais da Constituição.

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1 Saber se a imposição de pagamento pelo Poder Público de preço arbitrado pela unidade hospitalar, para ressarcir serviços de saúde prestados por força de decisão judicial, viola o regime de contratação da rede complementar de saúde pública (art. 199, §§ 1º e 2º, da CF/1988)." Acesso em 19 de agosto de 2020.
2 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 224.
3 NOGUEIRA, Erico Ferrari. Convênio administrativo: espécie de contrato? RDA - Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 258, p. 81-113, set./dez. 2011. Acesso em: 26 ago. 2020.
4 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional.10. ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 478.
5 Há entendimento no STF reconhecendo a possibilidade de cobrança pelo particular de preço compatível com o praticado pelo mercado por serviço prestado à Administração Pública (Inq. 3074, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 26.08.2014).

Gustavo Sardinha Lutterbach Veiga

Gustavo Sardinha Lutterbach Veiga

Advogado, formado pela Universidade Candido Mendes e sócio do escritório Figueiredo e Veiga Advogados Associados.

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