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O contempt of court

As eventuais ponderações dirigem-se, assim, não à conveniência de sua existência, mas às hipóteses, aos limites e à forma de sua aplicação nos casos concretos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Atualizado em 19 de fevereiro de 2021 08:06

"Não há crime maior que contempt e desobediência, pelo que todas as pessoas pertencentes ao Reino devem ser obedientes ao Rei e agir nos limites de sua Paz." (Henry de Bracton, De Legibus et Consuetudinibus Angliae: English & Latin: Bracton on the Laws and Customs of England, tradução e anotações de Samuel E. Thorne, Buffalo: W.S. Hein, 1997, p. 39.)

A adequada e eficaz administração da justiça, em conformidade com a lei, é função básica do Estado e garantia fundamental do cidadão. No entanto, não há nada de intrínseco nas palavras de uma ordem ou decisão judicial capaz de, por si só, compelir o jurisdicionado a obedecê-la. A mera  ordem ou decisão judicial, desprovida de meios e recursos que assegurem e garantam o seu efetivo cumprimento, pode revelar-se inútil diante da obstinada recalcitrância do seu destinatário ou de comportamentos desidiosos ou desrespeitosos das partes, advogados, funcionários de um juízo ou tribunal e terceiros para com a administração da justiça.

Assim, durante séculos, os juízos e tribunais da common law assumiram e implementaram o poder de prevenção e punição de condutas capazes de obstruir, prejudicar, embaraçar, impedir, desrespeitar ou perturbar a administração da justiça. Esse poder de repressão de condutas perniciosas e comprometedoras da administração da justiça é "poder de contempt" ou contempt power. É exercido por um juiz singular - com ou sem a participação de um júri popular - ou por um tribunal de recursos, em procedimento sumário, e as regras que lhe governam o exercício constituem a doutrina do contempt of court. É, pois, indispensável que o poder judiciário disponha de meios e recursos eficazes e válidos para impor sua autoridade e fazer-se respeitar, sob pena de suas ordens ou decisões serem recebidas pelos jurisdicionados como meras recomendações ou solicitações de conduta, ausente um fundado temor social pela sua desobediência.

Para Fox, a doutrina do contempt of court é o conjunto de regras colocadas à disposição do poder judiciário "para preservar a disciplina, essencial à administração da justiça", prevenindo ou reprimindo "atos de desobediência ao rei e suas cortes ou obstrução ao curso da justiça".1 Hazard e Taruffo definem a doutrina do contempt of court a partir do efeito produzido por suas regras e funcionalidade diante do caso concreto, sendo "a última instância das sanções judiciais", pois é o poder intimidatório decorrente de sua aplicação que confere eficácia ao recurso judicial e importância ao direito da parte, prevenindo ou reprimindo a prática de atos contrários ao seu reconhecimento e efetivação em juízo.2 Lord Simon também destaca a sua funcionalidade e define contempt of court como "um termo genérico que descreve a conduta [do Judiciário] em relação a determinados atos praticados, num juízo ou tribunal, com vistas à subversão do referido sistema de administração da justiça ou, ainda, a fim de impedir que os cidadãos façam uso do sistema para a solução de conflitos".3

A doutrina do contempt of court pode ser, assim, definida, como o conjunto de princípios e regras destinados a assegurar a adequada administração da justiça e preservar a sua dignidade, por meio dos quais a lei, em nome do interesse público, toma a si o encargo de defender-se e assegurar que seus comandos sejam efetivamente respeitados e cumpridos, prevenindo e reprimindo os atos de desobediência, desprezo, interrupção, obstrução e impedimento, atuais ou iminentes, das partes ou de terceiros, no curso de um processo judicial, denominados atos de contempt of court. Trata-se do fundamento jurídico que permite ao poder judiciário vindicar a sua autoridade e infligir punição sumária a todos os que ousarem interferir na administração da justiça, prejudicando-a, por meio da prática dos atos definidos como atos de contempt of court.4

O vocábulo contempt deriva do verbo inglês to contemn, de origem latina contemptus, particípio passado do verbo contemnere. É sinônimo de despise (desprezo), scarn (escárnio) ou disdain (desdém),5 e tem na língua inglesa quatro significados principais: (a) o ato de desprezar ou desrespeitar alguém ou algo que se crê vil, menor ou sem valor; (b) o ato ou expressão que denota uma atitude de desprezo ou desrespeito por alguém ou algo que se crê vil, menor ou sem valor; (c) o ato de ser desprezado ou desrespeitado, de ser posto em desgraça, de ser tratado como vil, menor ou sem valor; e, por fim, (d) o ato de desprezo, desrespeito, desobediência ou confronto aberto para com uma autoridade judicial ou legislativa.6

O elemento comum nas acepções indicadas é o sentimento de desprezo calculado, de um combinado desprazer e falta de respeito por alguém ou algo que se crê "vil, menor ou sem valor", ou que não se tem "em boa conta", e que, por esse motivo, deve ser tratado como se merecedor não fosse de atenção especial ou distinção.7 Na sua acepção exclusivamente jurídica - i.e., como um ato de desprezo, desrespeito, desobediência ou confronto aberto para com uma autoridade judicial ou legislativa - o vocábulo contempt assume a expressão contempt of court.

A expressão contemptus curiae8 é reconhecida no direito inglês desde o século XII, referindo-se aos meios tendentes a impedir desobediência ao rei e a seus tribunais e oficiais, preservar a dignidade e a eficiência da justiça e prevenir quaisquer atos de obstrução aos seus procedimentos.9 Tal conceito, como vimos, já se encontrava presente nos dooms anglo-saxões, desde as leis introduzidas pelo rei Æthelberht ("Rei de Kent", 560-616 d.C.), e foi sofrendo um processo de elaboração formal com os anos que se passaram, até a formação de um conceito formal de contempt of court, na forma de um instituto jurídico autônomo e inerente a toda a atividade judicial.10

O caráter divinal do poder real passou, com o tempo, a ser questionado, mas o conceito de inspiração divina da lei, a sua absoluta autoridade e a obrigação indelegável do rei para fazê-la plenamente respeitada permaneceu firme, nos séculos vindouros, chegando até à grande sistematização legal proposta por Sir William Blackstone em 1759.11 As regras de Blackstone, ainda que preparadas com vistas ao sistema legal inglês, tiveram um imenso impacto nos Estados Unidos da América e influenciaram e incentivaram a recepção das regras de repressão aos atos de contempt of court naquele país.12

Gradualmente, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos da América, eventuais questionamentos sobre o direito dos tribunais de punir atos de desobediência, obstrução ou desrespeito praticados passaram a ser rebatidos com o argumento de que se trataria de um poder inerente ao próprio exercício da atividade judicial, que teria existido "desde sempre", pela imprescindibilidade de suas funções. A necessidade então se torna "a mãe do chamado inato e natural poder dos tribunais", nas palavras de Goldfarb, e um poder originalmente associado à figura do rei e a ele tão-somente vinculado se torna um poder intrinsecamente ligado à máquina judiciária como um todo.13

De modo geral, não se discute se as regras de prevenção aos atos de contempt of court devem ou não existir. Simplesmente existem, é um fato, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, bem como em vários outros países que adotam o sistema do common law. Além da Inglaterra, dos Estados Unidos da América, também encontramos referências a regras de repressão aos atos de contempt of court na Austrália, África do Sul, Bangladesh, Canadá, Cingapura, Egito, Escócia, Índia, Irlanda do Norte, Israel, Malásia, Nigéria, Nova Zelândia, País de Gales, Paquistão, Porto Rico, Trinidad Tobago e República da Irlanda.

As eventuais ponderações dirigem-se, assim, não à conveniência de sua existência, mas às hipóteses, aos limites e à forma de sua aplicação nos casos concretos. É da necessidade de respeito e obediência à administração da justiça e, por conseguinte, da busca de uma maior eficácia de suas decisões, que se extraem os fundamentos atuais para a proteção à dignidade e ao exercício da atividade jurisdicional, sendo a doutrina do contempt of court a expressão mais exata e precisa desse anseio.

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1- "Rules for preserving discipline, essential to the administration of justice, came into existence with the law itself, and contempt of court (contemptus curiae) has been a recognized phrase in English law from the twelfth century to the present time. In the Anglo-Saxon laws and trough the records of the Curia Regis and the Parliament, the first treatises on law and the Year Books, the development of 'contempt' in the legal sense can be traced, until by the fourteenth century the principles upon which punishment was inflicted to restrain disobedience to the King and his courts as well as other acts which tend to obstruct the course of justice, had become firmly established." Sir John C. Fox, The History of Contempt of court: the Form of Trial and the Mode of Punishment, Oxford: Clarendon Press, 1927, p. 1.

2- "The ultimate judicial sanction is to hold a recalcitrant party in contempt of court. Contempt of court consists of refusal to obey a direct order." Geoffrey C. Hazard Jr. e Michele Taruffo, American Civil Procedure: An Introduction, New Haven: Yale University Press, 1993, p. 202.

3- "Contempt of court is a generic term descriptive of conduct in relation to particular proceedings in a court of law which tends to undermine that system or to inhibit citizens from availing themselves of it for the settlement of their disputes." Attorney General v. Times Newspaper Ltd (1974) AC 307. Segundo Lord Simon, relator deste importante caso julgado pela House of Lords, da Inglaterra, é "a lei" e não somente "a justiça" ou "o poder judiciário" que se defendem por meio das regras de contempt of court.

4- Para melhor exame do tema, Júlio César Bueno, Contribuição ao estudo do contempt of court e seus reflexos no processo civil brasileiro, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

5- "Contemn verb, transitive [Middle English contempnen, to slight, from Latin contemnere: com-, intensive pref.. See com- + temnere, to despise.] con·temned, con·temn·ing, con·temns To view with contempt; despise. See synonyms at despise. . Con·tempt noun [Middle English, from Latin contemptus, past participle of contemnere, to despise. See contemn.] 1. Disparaging or haughty disdain, as for something base or unworthy; scorn. 2. The state of being despised or dishonored; disgrace. 3. Open disrespect or willful disobedience of the authority of a court of law or legislative body." Houghton Mifflin, The American Heritage Dictionary of the English Language, 3. ed., Boston: Houghton Mifflin,  2001.

6- "Contempt [L. contemptus, fr. contemnere: Cf. of. contempt. See Contemn.] 1. The act of contemning or despising; the feeling with which one regards that which is estimable [worthy of respect or admiration] as mean, vile, or worthless; disdain; scorn. 2. The state of being despised; disgrace; shame. 3. An act or expression denoting contempt. 4. (Law) Disobedience of the rules, orders, or process of a court of justice, or of rules or orders of a legislative body; disorderly, contemptuous, or insolent language or behavior in presence of a court, tending to disturb its proceedings, or impair the respect due to its authority. Contempt is in some jurisdictions extended so as to include publications reflecting injuriously on a court of justice, or commenting unfairly on pending proceedings; in other jurisdictions the courts are prohibited by statute or by the constitution from thus exercising this process." Noah Webster, Webster's revised unabridged dictionary, New York: Merriam, 1913, p. 311. As mesmas acepções são dadas por William Little, The Shorter Oxford English dictionary on historical principles, 3. ed. revisada e aumentada, Oxford: Clarendon Press, 1990, p. 380; William C. Burton, Legal thesaurus, 2. ed., New York: Simon & Schuster Macmillan, 1992, p. 112; e Eugene Ehrlich. The highly selective dictionary for the extraordinary literate, New York: Harper Collins, 1997, p. 39.

7- Philip M. Rideout (editor), The Newbury House dictionary of American English, Greenwich [USA]: Heinle & Heinle, 1996, p. 165; University of Cambridge, Cambridge International Dictionary of English, Cambridge [Engl.]: Cambridge University Press, 1995, p. 295, disponível em: http://dictionary.cambridge.org.

8- O vocábulo curis ou curiae é o correspondente no latim ao vocábulo court do inglês. Cf. Houghton Mifflin, op. cit.

9- "Rules for preserving discipline, essential to the administration of justice, came into existence with the law itself, and contempt of court (contemptus curiae) has been a recognized phrase in English law from the twelfth century to the present time. . and the earliest mention of the word in the statutes seems to be the Statute of Labourers (25 Edward III, statute 2, c. 5), which provides that offenders shall be attached by their bodies to be before the justices to answer for contempt in failing to obey the statute, so that they may make fine or ransom to the King in case they be convicted, and otherwise that they be ordered to prison, there to remain until they have found surety to comply with the statute. Attachment is the process by which they are brought up for trial." Fox, op. cit., p. 1, 47.

10- "In the Anglo-Saxon laws and through the records of the Curia Regis and the Parliament, the first treatises on law and the Year Books, the development of 'contempt' in the legal sense can be traced, until by the fourteenth century the principles upon which punishment was inflicted to restrain disobedience to the King and his courts as well as other acts which tend to obstruct the course of justice, had become firmly established." Idem.

11- Para Blackstone, as regras de conduta impostas ao reino pelo rei eram "regras prescritas pelo poder supremo de um Estado, comandando o que é certo e proibindo o que é errado". A tais regras também estaria submetido o soberano, por ser a lei "uma regra de ação, prescrita por alguém superior, à qual até mesmo o superior deve obedecer".  Sir William Blackstone, Commentaries on the Laws of England, Filadélfia: J. B. Lippincott, 1898, p. 9, 43-44.

12- "The Courts of England have uniformly from the beginning exercised the right to punish for Contempt and the Courts of America have always exercised a like power." Blackstone, op. cit., apud Fox, op. cit., p. 222. Cf. Oliver Wendell Holmes Jr., The common law, Nova Iorque: Dover, 1991, e John Chipman Gray, The Nature and Sources of the Law, Nova Iorque: Columbia University Press, 1909.

13- Ronald L. Goldfarb, The Contempt Power, New York: Columbia University Press, 1963, p. 13.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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Júlio César Bueno

VIP Júlio César Bueno

Sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados.

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