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Um necessário redesenho da teoria das nulidades no Processo Penal

São nesses moldes que propomos um redesenho das nulidades no Processo Penal.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Atualizado às 11:37

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

As nulidades processuais ainda se revestem na condição de tema bastante delicado e polêmico na seara do processo penal brasileiro. Seja pela falta de uma oxigenação constitucional de suas regras, como já nos alertava Alexandre Morais da Rosa1; seja pelo fetiche do amorfismo que vigora nas práticas judiciais brasileiras, como apontado por Ricardo Gloeckner2; ou mesmo pelo traslado indevido de categorias do direito privado ao processo penal; certo é que as nulidades despertam os mais variados debates no âmbito jurisprudencial e doutrinário, com posições e convicções fortes e veementes de ambos os lados da "mesa" debatedora.

E dentro da matéria das nulidades, um tópico de difícil compreensão é a questão do prejuízo e da forma como ele deve ser lido na análise das nulidades processuais.

Como nos aponta o artigo 563 do CPP, o prejuízo é requisito essencial para reconhecimento da nulidade, seja ela em favor da acusação ou da defesa. A grande questão, porém, está em se interpretar essa noção de prejuízo. Tradicionalmente, amparado pelo conhecido brocardo francês pás de nulitté sans grief, a doutrina nacional - especialmente no clássico livro de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Filho e Antônio Scarance Fernandes3 - construiu a ideia de que o prejuízo se constitui em verdadeiro "princípio" da nulidade, não cabendo falar em existência desta quando não houver nenhuma comprovação efetiva da prejudicialidade do ato, mesmo que viole formas típicas da lei. E essa compreensão também veio puxada pelas noções de atos nulos do direito civil, em que há verdadeira "carga" probatória para a parte que argui o prejuízo, pois nos negócios jurídicos, a regra é sua preservação, cabendo falar em anulação apenas quando se está evidenciado o prejuízo de determinado ato a parte que o alega.

A partir disso, então, construiu-se a ideia de nulidades absolutas e relativas, em que o tal princípio do prejuízo opera de formas distintas a depender do tipo de nulidade que se está falando. Em caso de nulidades absolutas, por tocarem em matérias constitucionais e direitos fundamentais, o prejuízo deveria ser presumido de modo absoluto, pelo que toda forma de violação à forma que atinja esse rol de direitos deve ser prontamente invalidada. Já as nulidades relativas, em que o direito afetado é "individual" e "privado", sem que haja interferência na esfera constitucional, somente devem ser reconhecidas quando se está diante de um prejuízo comprovado, caso contrário, prevalece o resultado do ato em detrimento da violação de forma. Costuma-se, nesses casos, defender a dita "instrumentalidade das formas", especialmente diante da previsão do artigo 572, inciso II, do CPP.

O problema é que essa compreensão não parece afinada a um processo penal que pretenda seguir uma matriz constitucional e nem mesmo que tenha por base um Estado Democrático de Direito.

O primeiro ponto de equívoco, a nosso sentir, está na definição do prejuízo como um "princípio". Diferentemente do que se entende por princípio, enquanto mandamentos de otimização (na clássica definição de Alexy), o prejuízo apresentado pelo artigo 563 do CPP é a regra em si, ou seja, um pressuposto da nulidade, não um fator que se presta a balizar a interpretação de sua existência ou não, ampliando ou reduzindo o alcance de uma regra. É dizer: o prejuízo é o ponto essencial da nulidade, cabendo apurar se ele existe ou não, simples assim. Não cabe falar em maior ou menor prejuízo, ou mesmo se construir uma ideia de prejuízo público ou privado, como tanto se vê por aí. O prejuízo compõe a regra, é elemento dela.

Com isso, quer-se dizer que a distinção entre nulidades relativas e absolutas parece inócua e bastante vinculada a uma ideia de processo muito mais ligada a preceitos privados do direito do que, efetivamente, ao cariz público que adquire o processo penal. Até porque, na célebre contribuição de Aury Lopes Junior4, em processo penal a forma é garantia, não sendo cabível tratar de modo semelhante o direito privado e o direito processual penal, pois os interesses em jogo são amplamente distintos.

Além disso, parece tormentoso avaliar quando se está diante de um interesse exclusivo da parte (ou seja, de uma nulidade relativa) ou de um interesse público (nulidade absoluta), especialmente porque o devido processo legal também é uma garantia fundamental e porque os interesses da parte do processo penal sempre serão públicos, pois têm o condão de afetar todos os eventuais destinatários da norma penal. Com efeito, uma nulidade - mesmo que relativa - sempre afetará o devido processo legal de alguma forma, sobretudo porque se apresenta como uma regra de tipicidade dos atos essencial à legitimação dos resultados.

É preciso, assim, um redesenho da teoria da nulidade no que toca ao prejuízo.

A compreensão do prejuízo, nos termos do artigo 563 do CPP, deve levar em conta que atipicidades sempre serão relevantes, não podendo se menosprezar o respeito à forma (num verdadeiro amorfismo), até porque, como dito, se fosse o resultado o único balizador da forma, sequer seria necessário prevê-la expressamente. E seguramente não foi esse o objetivo da norma processual. Nesse ponto, pode-se partir da ideia de que, em regra, o desrespeito à forma indica um prejuízo - o normal é que a "atipicidade gere prejuízo"5 -, o que permite apontar uma presunção iuris tantum de prejudicialidade, mas isso, por si, não induz à compreensão de nulidade sempre que houver a alegação. Mas significa que a ideia de "carga", oriunda do pás de nullité sans grief, não se sustenta.

Ou seja, o afastamento do prejuízo é um ônus argumentativo do julgador, cabendo a ele demonstrar em que medida a violação da forma não causou prejuízo a parte e, sobretudo, porque não culminou na perda de uma chance de melhorar sua condição no processo.

E isso em nada tem a ver com a instrumentalidade das formas, ao menos não como defendido no âmbito doutrinário e jurisprudencial.

Ora, existindo prejuízo, é certo que o ato deverá ser invalidado e declarado nulo. Não há dúvida quanto a isso, até porque o prejuízo não é dirigido a tornar válido o que é inválido. Diante dessa ideia, a instrumentalidade das formas torna-se um conceito que somente tem espaço quando não se tem o prejuízo necessário à nulidade, o que deve ser medido a partir do grau de prejudicialidade constatado no ato em si. Ou seja, somente se tem instrumentalidade quando não se tem nulidade. É assim que entendemos a leitura da dita "instrumentalidade das formas".

Nesses termos - e dentro das modestas pretensões deste artigo -, não compreendemos como correta a distinção entre nulidade absoluta ou relativa, simplesmente toda nulidade demanda prejuízo, não sendo "calibrada" pelo suposto interesse que a forma em específico visa tutelar. Por outro lado, a ideia de prejuízo somente sobressai a partir de um ônus argumentativo do julgador, podendo se falar em uma presunção iuris tantum de prejudicialidade quando a atipicidade do ato é arguida. Superada a ideia de prejuízo, não se vislumbrando sua existência concreta, é quando se pode falar em instrumentalidade das formas, valorizando o resultado em detrimento da forma pela própria forma.

São nesses moldes que propomos um redesenho das nulidades no processo penal.

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1- ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014. p. 59.

2- GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 82.

3- GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 28.

4- LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 1142.

5- BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 907.

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BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2014.

 
Douglas Rodrigues da Silva

Douglas Rodrigues da Silva

Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Professor de Direito Penal Econômico das Faculdades da Indústria de São José dos Pinhais. Advogado Criminal no Antonietto e Guedes de Castro Advogado Associados.

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