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Desafios regulatórios à integração da agenda ASG no mercado de capitais brasileiro

Os desafios expostos se não tratados pela via regulatória, poderão sê-los contratualmente, diferenciando competidores na atração de investimentos.

terça-feira, 2 de março de 2021

Atualizado às 10:18

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"Os desafios expostos se não tratados pela via regulatória, poderão sê-los contratualmente, diferenciando competidores na atração de investimentos."

O ano de 2021 iniciou com o apetite do investidor (especialmente estrangeiro) colocando à prova os produtos e investimentos sustentáveis anunciados pelo setor financeiro em 2020.1 Mais do que iniciativas ambientais, sociais e de governança ("ASG"), o investidor deseja saber, em detalhes, qual o lastro, metodologias e índices utilizados, na prática, pelos emissores (e seus distribuidores) para classificar um investimento como "sustentável", bem como para medir sua performance ASG e precificá-lo. Para o investidor, é a capacidade de converter os recursos captados no propósito anunciado tão ou mais relevante que o rating ASG do emissor.

Ocorre que, atualmente, há uma centena de critérios, metodologias e índices desenvolvidos pela indústria para selecionar, mensurar, precificar e reportar materialidades socioambientais potencialmente relevantes à decisão do investidor. Além dos diversos e respeitáveis organismos internacionais dedicados a estabelecer diretrizes gerais (standards) para a identificação e reporte de exposições socioambientais e, consequente, gestão de riscos (físicos e de transição) e oportunidades inerentes à uma economia de baixo carbono, atualmente, existem mais de 600 provedores de dados ASG (data-gathering and rating agencies) disponíveis no mercado2, cada qual com critérios, metodologias e índices próprios, que oferecem às empresas serviços específicos de coleta, granulação e mensuração de dados socioambientais, visando abastecer aquelas diretrizes gerais. Muitos desses provedores oferecem também serviços de certificação e ranqueamento ASG, a partir de dados autodeclarados e um universo restrito de clientes avaliados.

A despeito de potenciais conflitos de interesses que este cenário pode proporcionar (exigindo fiscalização pelas autoridades supervisoras de mercado), esta multiplicidade de fornecedores ASG não é necessariamente uma mazela e, sim, uma consequência natural do boom do mercado de investimentos sustentáveis e representa uma corrida para conquista de clientes ávidos por integrar a agenda ASG em suas atividades. Contudo, é necessário ordenamento (regulação).

Isto porque, na prática, cada empresa vem adotando e reportando ao mercado seus dados ASG com base nas recomendações, filtros de elegibilidade, métricas de ponderação, técnicas de coleta, granulação e reporte de dados e índices de performance utilizados pelos standards internacionais selecionados e provedores de dados ASG contratados. Essa desarmonia entre critérios, métricas, técnicas e índices, bem como a ausência de padronização na forma de divulgação de informações socioambientais, são, hoje, um dos principais desafios jurídicos à integração da agenda ASG, especialmente no mercado de capitais. Tais discrepâncias geram assimetrias de conceitos que (i) dificultam a comparabilidade entre as opções de produtos "sustentáveis" ofertados; e (ii) prejudicam a avaliação de investidores, desestimulando a atratividade desse promissor mercado.

Com efeito, autoridades supervisoras ao redor do mundo elaboraram propostas para regular estas questões, buscando prevenir, mitigar e sancionar práticas lesivas ao investidor.3 No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") submeteu à audiência pública proposta de revisão das regras atualmente vigentes desde 2014 para divulgação de informações socioambientais no formulário de referência. A iniciativa é elogiável e representa, sem dúvida, um passo importante, porém, ainda inicial na regulação mais profunda do tema. A nosso ver, existe espaço regulatório disponível para conceder mais (i) transparência e qualidade de dados ASG; e, logo, (ii) segurança e credibilidade ao mercado.

Mais do que mapear políticas ASG, outras questões não abordadas pela atual proposta podem ser tratadas, oportunamente, como: (i) atualização periódica de dados ASG, preferencialmente em conjunto com a divulgação de demonstrações financeiras pelas companhias, de modo a facilitar monitoramentos e (re)balanceamentos de performances; (ii) divulgação detalhada de filtros de elegibilidade, métricas de ponderação e índices de performance socioambientais eleitos pelos emissores para mensuração de resultados ASG, especialmente nos casos de emissões de títulos verdes; (iii) regulação de efeitos e eventuais responsabilidades decorrentes de default na alocação ou performance socioambiental que informaram a captação de recursos; e (iv) sanções para os casos de greenwashing e repacking. Estas e outras informações são essenciais para o accountability do setor e têm o potencial de influenciar a decisão do investidor, podendo vincular a oferta.

O ano está só começando e há muito trabalho à frente. Os desafios expostos se não tratados pela via regulatória, poderão sê-los contratualmente, diferenciando competidores na atração de investimentos. Parafraseando o Professor Nicholas Stern, se "a mudança climática é resultado da maior falha de mercado que o mundo já viu"4, precisamos atuar juntos para construir bases sólidas ao desenvolvimento do mercado brasileiro de investimentos sustentáveis.

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1 Em sua tradicional carta anual aos CEOs, Larry Fink (presidente e diretor-executivo da Blackrock) destacou não só a vertiginosa aceleração na transformação de comportamentos dos investidores - com destaque para realocação de USD 228 milhões de dólares em investimentos sustentáveis somente em 2020 - como também revelou a prática de seu discurso, anunciando votos contrários à recondução de mais de 50 membros de conselhos de administração de empresas investidas que não se adequaram às novas exigências e políticas ASG que tendem a orientar novos fluxos de investimento.
2 Disponível aqui.
3 Em uma iniciativa sofisticada, Autoridades Supervisoras Europeias apresentaram proposta dirigista, prevendo não só quais, como, quando e o nível de detalhe que dados ASG devem ser divulgados por participantes do mercado europeu, como também exigindo que, para certos tipos de ofertas, apenas determinados standards e métricas ASG previamente escrutinados por aquelas autoridades (basket-list) poderão ser utilizados pelos emissores. Nos Estados Unidos da América, enquanto a Security Exchange Comission (SEC) ainda formula sua proposta, o CFA Institute propôs alternativa mais liberal que o modelo europeu, sinalizando pela obrigação dos emissores de apenas informar aos investidores quais os critérios, metodologia e índices ESG utilizados, sem, contudo, limitar ou examinar a qualidade de standards e métricas disponíveis. 
4 Tradução livre. No original "climate change is a result of the greatest market failure that the world has seen" in Stern Review: The Economics of Climate Change (2007).

Leonardo V. P. Freire

Leonardo V. P. Freire

Advogado, sócio da área de ambiental do escritório Candido de Oliveira - Advogados.

Leonardo Pimenta

Leonardo Pimenta

Advogado, sócio da área de mercado de capitais do escritório Candido de Oliveira - Advogados.

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