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Negócio jurídico e limites processuais

Quais são os limites processuais ao negócio jurídico?

quarta-feira, 3 de março de 2021

Atualizado às 09:15

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Os fatos jurídicos, de acordo com Sílvio de Salvo Venosa e Antonio do Passo Cabral, são divididos entre fatos naturais, os quais são caracterizados pelos atos involuntários provenientes da própria natureza e sobre eles não há a incidência das normas jurídicas; e atos jurídicos, que, por sua vez, são atos emanados da vontade do ser humano e que geram, por consequência, reflexos no plano jurídico.

Dentro da categoria dos fatos jurídicos há uma subdivisão: atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos. A diferença primordial entre estes dois subitens é a presença da manifestação de vontade do agente ao praticar o ato.

Neste sentido, cabe destacar posicionamento de Antonio do Passo Cabral: 

"A diferença entre os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos é que, nos atos jurídicos em sentido estrito, os efeitos são previstos em lei e, ainda que pretendidos pelo agente, não são fruto de escolhas voluntárias de quem os pratica" 

De igual forma, salienta-se exemplo de Leonardo José Carneiro da Cunha, utilizando por Marcos Bernardes de Mello: 

"Quando alguém, por exemplo, estabelece sua residência com ânimo definitivo, constitui-se o domicílio. Eis aí um ato jurídico. Mesmo que o sujeito não queira, ali será seu domicílio, com toda a eficácia jurídica relativa ao domicílio. De igual modo, são atos jurídicos o reconhecimento de filiação não decorrente de casamento, a interpelação para constituir o devedor em mora, a confissão e a interrupção da prescrição. No ato jurídico, o sujeito de direito não tem liberdade para escolher a categoria jurídica, nem variar ou excluir qualquer efeito jurídico a ser produzido" 

O negócio jurídico, assim sendo, é definido como a manifestação consciente de vontade de um agente, que visa certo efeito jurídico pretendido, seja constitutivo, modificativo ou extintivo.

Deste modo, conforme ensinado por Fredie Didier Jr. e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, o negócio jurídico processual seria a aplicação da vontade consciente (oriunda do negócio jurídico propriamente dito) às normas de direito processual.

Todavia, como explicitado por Chiovenda, os limites impostos ao negócio jurídico no campo do direito material privado são diferentes àqueles cominados pelas normas procedimentais cogentes. 

LIMITES PROCESSUAIS AOS NEGÓCIOS JURÍDICOS 

O artigo 190 do CPC estipulou as regras gerais dos negócios jurídicos processuais, sendo que para a sua respectiva constituição, seria necessária apenas a observância aos critérios de existência, validade e eficácia do direito privado quanto aos negócios jurídicos, bem como a admissão de autocomposição do direito material envolvido.

Outros limites além dos acima exposto, não foram estabelecidos expressamente pelo legislador.

Diante disso, surge um questionamento: o instituto do negócio jurídico processual pode abranger toda e qualquer matéria do Código de Processo Civil, sem nenhum tipo de limitação?

Admitir que tal instituto possa abranger toda e qualquer matéria processual é uma posição extremista. Isto porque, se assim fosse considerada, seria plenamente admissível que um negócio jurídico existente, válido e eficaz estipulasse quem seria o juiz da causa; coisa que completamente contrária aos princípios constitucionais da imparcialidade do juiz e do juiz natural.

Tal posicionamento é corroborado por Rafael Sirangelo ao mencionar que: "se até mesmo no direito privado a autonomia da vontade encontra limites, não poderia ser diferente no processo civil, sistema de direito público cuja finalidade é a tutela de direitos".

De igual forma, Hercilia Maria Fonseca Lima defende mesmo pensamento ao declarar que: 

"[o] conteúdo [do negócio jurídico processual] transcende a esfera do espaço privado das partes e atinge o interesse público. Desse modo, entendemos que são inegociáveis matérias como: segredo de justiça; competência absoluta; supressão de instância; a exclusão do Ministério Público como fiscal da lei". 

Assim sendo, tendo em vista que dentro do campo do direito processual o negócio jurídico processual não pode se comportar irrestritamente, um critério importante a ser estabelecido é: quais são os limites processuais para este instituto.

Como exposto por Fredie Didier Jr., a base de sustentação do negócio jurídico processual é o princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo (uma vertente do princípio da liberdade do artigo 5º, caput da Constituição). Deste modo, a fim de assegurar certo equilíbrio entre as normas cogentes processualistas e a liberdade das partes quanto ao procedimento, a melhor opção seria a utilização dos próprios princípios provenientes da Constituição Federal para estabelecer limites aos negócios jurídicos processuais.

Isto porque, da mesma forma que o princípio do respeito ao autorregramento da vontade assegura no seu âmago o respeito ao direito fundamental à liberdade, os demais outros princípios constitucionais também asseveram proteção a outros direitos fundamentais.

Neste sentido, salienta-se importante ensinamento de Antonio Passo Cabral:

"Mas o exercício da autonomia das partes através de convenções processuais encontra também um obstáculo ou limite externo, que se lhes coloca em razão da previsão concomitante de outros direitos fundamentais correlatos, que podem entrar em colisão com a liberdade dos convenentes e impor restrições" 

CONCLUSÃO 

O artigo 190 do CPC apresentou, em linhas gerais, que para a constituição de um negócio jurídico processual é necessário apenas o respeito aos institutos de existência, validade e eficácia do direito privado e que o direito material envolvido admita autocomposição. No entanto, isso não significa que toda e qualquer matéria processual abrangeria pelo negócio jurídico, se comportará de maneira irrestrita, sem nenhuma espécie de limitação.

Isto porque, a título de exemplificação, seria plenamente possível a situação em que as partes envolvidas em um negócio jurídico acordem que, dentre os diversos termos, caso haja a judicialização de eventual conflito, a lide seja tratada por determinando juiz de certa comarca. Tal disposição, contudo, feriria os princípios do devido processo legal, da imparcialidade do juiz e do juiz natural. E, como mencionado anteriormente, a liberdade de disposição quanto ao conteúdo do negócio jurídico, especialmente no quesito processual, não pode ferir outros direitos fundamentais assegurados pela Constituição, uma vez que do contrário haveria o beneficiamento de um direito fundamento em detrimento de outro.

Tendo em vista que o artigo 190 do CPC não apresentou nenhuma outra limitação expressa no texto legislativo, é preciso estabelecer liminares ao negócio jurídico quanto à matéria processual.

O negócio jurídico na sua essência defende o direito fundamento à liberdade e, de forma análoga, as normas cogentes processualistas do direito brasileiro protegem também direitos/princípios fundamentais provenientes da Constituição Federal.

Deste modo, é necessário existir uma harmonia entre ambos, de tal modo que o direito à liberdade não se sobreponha ilimitadamente aos demais direitos/princípios fundamentais defendidos pelas normas cogentes processualistas. E a análise desse equilíbrio deve ser feita caso a caso na prática forense.

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CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. 3. Ed. rev., atual e ampl. - Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 

______. Convenções processuais: teoria geral dos negócios jurídicos processuais. 3. Ed. ver., atual e ampl. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. 

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução Paolo Capittanio. Campinas: Bookseller, 1998, v. 3. 

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Negócios jurídicos processuais: Relatório Nacional (Brasil). Relatório apresentado no I Congresso Peru-Brasil de Direito de Direito Processual, mimeografado, 2014, p. 5. Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídicos: plano da existência. 

DIDIER, Fredie Jr. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. In. Negócios Processuais. 4. Ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019. 

______; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos Fatos Jurídicos Processuais. Salvador: JusPodivm, 2011. 

LIMA, Hercília Maria Fonseca. Cláusula Geral de Negociação Processual: um novo paradigma democrático no processo cooperativo. São Cristóvão, 2016. Disponível em: . Acesso em 01.12.2020. 

SIRANGELO DE ABREU, Rafael. Igualdade e Processo. Posições Processuais Equilibradas e Unidade do Direito. Revista dos Tribunais. Ed. 1, Nova Edição, 2015. 

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. Ed. São Paulo: Altas, 2003.

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Gabriella Viezzer Molina

Gabriella Viezzer Molina

Advogada atuante no Direito Administrativo, especialista em causas envolvendo servidores públicos estaduais. Pós-graduanda em Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas. Advogada do escritório Advocacia Sandoval Filho.

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