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A natureza jurídica da posse: um estudo conforme suas quatro dimensões

Álvaro Borges de Oliveira e Marcos Leandro Maciel

Trata-se, a natureza jurídica da posse, de controvérsia multissecular que vem instigando juristas desde o direito Romano e até os dias atuais, não se chegando a nenhum acordo na matéria. As estrelas do debate, nos manuais, são as teorias subjetiva, de Savigny, e objetiva, de Jhering, nas quais seus contemporâneos buscam a fundamentação para os argumentos que apresentam.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Atualizado às 14:29


A natureza jurídica da posse: um estudo conforme suas quatro dimensões

Álvaro Borges de Oliveira*

Marcos Leandro Maciel **

1. Natureza jurídica da posse e sua problemática

Trata-se, a natureza jurídica da posse, de controvérsia multissecular que vem instigando juristas desde o direito Romano e até os dias atuais, não se chegando a nenhum acordo na matéria. As estrelas do debate, nos manuais, são as teorias subjetiva, de Savigny, e objetiva, de Jhering, nas quais seus contemporâneos buscam a fundamentação para os argumentos que apresentam.

Inicialmente1 há de se perquirir, se a posse pode ser considerada um direito ou deve ser tratada simplesmente como fato, questionamentos que ganharam publicidade nos escritos divergentes produzidos por Jhering e Savigny2.

Para os seguidores da teoria subjetiva da posse3, esta é compreendida como um fato, mas que adquire relevância jurídica em razão dos seus efeitos4. Conforme expõe Arnaldo Rizzardo5, em Savigny "a posse é um estado de fato, trazendo efeitos e conseqüências no mundo jurídico. Ela se estabelece em decorrência de um simples poder de fato sobre a coisa, sem assentar em regras jurídicas ou sem direito preexistente".

Seguindo este norte, a posse é tanto fato, quanto direito, em si mesma é um simples fato, passando a ser considerado um direito na ocorrência de seus efeitos (usucapião, interditos, benfeitorias e frutos). Conforme Moreira Alves6 "os que entendem que a posse é um fato, e não um direito, não negam, em geral, que a posse seja um instituto jurídico, mas sustentam que ela, pelas peculiaridades que apresenta, não se configura como direito subjetivo, mas se apresenta [...] como um estado de fato, o que não é desvirtuado pelos seus efeitos jurídico".

Jhering se opõe a esta situação e defende que a posse é sim um direito, e parte da idéia que "os direitos são interesses juridicamente protegidos, não podendo haver a menor dúvida de que é necessário reconhecer o caráter de direito à posse [...] 7".

Com rara concisão, Jhering explana sobre seu posicionamento, afirmando ter sido a posse um "interesse que reclama proteção e é digno de obtê-la; e todo o interesse que a lei protege deve receber do jurista o nome de direito, considerando-se como instituição jurídica o conjunto dos princípios que a ele se referem. A posse, como relação da pessoa com a coisa, é um direito; como parte do sistema jurídico, é uma instituição de direito8".

Porém, como bem lembram Farias e Rosenvald9, a construção teórica de Jhering sobre a posse é procedida como sendo uma aparência da propriedade, assim, o interesse atribuído para a posse "é reflexo à tutela da propriedade. Daí concede-se ao possuidor um direito subjetivo, para que ele sirva em ultima instância à tutela do direito superior de propriedade".

Por tais motivos, "para além da concepção da posse como relação de fato ou mera exteriorização de um direito de propriedade, as normas que tutelam a posse são a ela direta e imediatamente dirigidas. Portanto, a posse é um direito subjetivo dotado de estrutura peculiar10".

Da forma apresentada acima, como um instituto jurídico sui generis, restaria a difícil tarefa de inseri-lo em uma determinada categoria jurídica. Apenas para apontar a extensão do problema, aceitando a posse como realidade jurídica já aduziu ser a mesma: uma ação; uma relação jurídica; um fato jurídico; um interesse legítimo; o exercício de um direito subjetivo; um direito pessoal; um direito real e um direito diverso11.

2. A pluralidade de dimensões da posse

Mesmo aceitando que a posse seria um direito, caberia investigar se estaria inserta na categoria dos direitos reais ou na dos direitos obrigacionais. Não é de se espantar que aqui também o campo seja fértil para o desacordo, e com razão, pois a posse não se ajusta com perfeição em apenas uma destas molduras.

Não há, em verdade, uma possibilidade de restringir todas as formas de manifestação da posse em apenas uma categoria jurídica, a natureza jurídica deve se adequar às dimensões deste fenômeno e não o contrário.

Uma das razões do empecilho da tarefa é bem apresentada por Menezes Cordeiro, ao afirmar que a posse é "um instituto anterior a boa parte das categorias dogmáticas com que, hoje, se pretende proceder à sua redução", desta forma, arremata o autor português, "nenhuma das categorias dogmáticas em causa se enquadra, precisamente, na realidade possessória12".

É facilmente visível na realidade social e na ordem jurídica positivada, a citada diversidade de formas de manifestação da posse. Sobre o tema, assim se manifestou Renan Falcão de Azevedo13:

"a posse pode existir de várias maneiras. Primeiro concomitantemente com o direito de propriedade, isto é, o dono é também possuidor. Segundo, a posse pode existir paralelamente com o direito de propriedade, como acontece com o usufruto, por exemplo [...] Terceiro, a posse pode até mesmo existir antagonicamente ao direito de propriedade, como acontece, por exemplo, com a posse que gera usucapião".

Ao se constatar a possibilidade de formas variadas no exercício da posse14, diversas também serão as características de cada uma destas manifestações, restando clara a razão da dificuldade encontrada pelos juristas em identificar a natureza jurídica do instituto de modo singular, ou seja, o inexistuoso intento de enquadrar um fenômeno de manifestação diversificada, como a posse, em uma única categoria jurídica.

Esclarecido que a posse possui naturezas jurídicas diferentes, o passo seguinte é, portanto, localizar as particularidades de cada uma das formas de exercício possessório, a fim enquadrá-las nas categorias jurídicas que melhor se adequarem.

Assim, apoiando-se em Francesco Messineo, Renan Falcão de Azevedo15, que defendem a natureza jurídica múltipla do fenômeno em análise, "a posse pode ser simples estado de fato, quando seu exercício não é precedido de direito subjetivo que a tenha gerado, e, conseqüentemente, a legitime. Será estado de direito quando ocorrer o contrário, isto é, quando seu exercício é precedido de um direito subjetivo que a gerou e a legitima".

Parece, portanto, corretíssima a tese delineada acima, aprofundada no artigo de Ricardo Aronne16, também acatada por Farias e Rosenvald17, reconhecendo a pluralidade da posse. Em seu escrito Aronne identifica três dimensões do fenômeno, correspondendo às categorias de Direito Real, Direito Obrigacional e Fato Jurídico (lato sensu). A concepção fora nomeada como Teoria Tríptica.

Nas palavras do autor, a posse "transita no ordenamento pátrio, tanto em dimensão única e exclusivamente jurídica, como direito real, no jus possidendi, como em esfera contratual e obrigacional, no jus possessionis, como ainda enquanto fato, ao tutelar-se a posse ad usucapionem, que não se estriba em direito subjetivo de posse algum18 ".

Como se observa, têm-se aqui três dimensões plausíveis para a posse que se contrapõem, de forma robusta, àquelas teorias que tratam a posse vinculada a apenas uma natureza jurídica.

Esclarece-se, desde já, que os efeitos da posse, quando tratados em conformidade com sua natureza apresentam respostas diferentes ao direito.

3. As quatro dimensões jurídicas da posse

Ainda perfilhando a tese de uma natureza jurídica plúrima, cremos piamente na existência de uma quarta espécie de posse que, dada suas peculiaridades, não é albergada por nenhumas das três categorias mencionadas até então.

Passa-se agora a uma análise de cada uma das quatro naturezas, ressaltando que as três primeiras identificam-se com as da Teoria Tríptica, com algumas considerações e acréscimos, a saber:

a) Natureza Jurídica de Direito Real;

b) Natureza Jurídica de Direito Obrigacional;

c) Natureza Jurídica de Fato Jurídico;

d) Natureza Jurídica de Direito da Administração.

A seguir discorrer-se-á sobre cada uma delas.

3.1 Posse como Direito Real

A posse pode ter natureza de direito real, quando está fundada em um direito desta categoria; é o caso do proprietário exercendo a posse sobre seu próprio bem ou no desdobre de um direito real, donde decorre o desdobre da posse também (direta e indireta).

Inicialmente cabe ressaltar que há exceções e desde já, passar-se-á a comentar. O proprietário pode não ter a posse, isso pode decorrer do fato de ter perdido para terceiro, verbi gratia quando aquele que esbulhou o proprietário passará a ter a posse fática, e pelo mesmo motivo pode ocorrer com os demais direitos reais exceto a hipoteca.

Todavia, quando um proprietário de certo bem exerce a posse sobre o mesmo está apenas exteriorizando o conteúdo de determinado direito, no caso, as faculdades do direito real de propriedade. Aqui, a relação possessória, praticada pelo proprietário, tem suas "bases de legitimação perante o sistema jurídico, no domínio, ou seja, o ius possendi, um direito de possuir, é o substrato legitimamente do escopo possessório do titular da propriedade de tal bem19".

Quando quem está na posse é o titular de outro direito real20, tal como a superfície, a servidão, o usufruto, o uso, a habitação, o promitente comprador, penhor, anticrese, a concessão ao direito de moradia, a concessão ao direito real de uso, nestes casos ocorre o desdobramento da posse, mas ainda trata-se de um modo de atuar um direito real.

Manifestando-se desta maneira, exercitada pelo próprio proprietário, a posse pode ser compreendida como preconizado pela teoria Objetiva de Jhering, sendo mera aparência de um direito21.

Como visto, a posse pode ser exercida pelo proprietário ou por um beneficiário de determinado direito real. Na última hipótese, o proprietário ficaria despido de determinadas faculdades, conferidas por tal direito, como a de usar, nem por isso o nu-proprietário perderia a qualidade de possuidor, pois é possuidor indireto ou mediato, enquanto aquele, o beneficiário, é o possuidor direto ou imediato22.

3.2 Posse como Direito Obrigacional

Aqui também ocorre o desdobramento da posse. No desdobre, o proprietário, possuidor indireto ou mediato, conserva seu jus posssidendi, conferindo a outrem a posse direta ou imediata.

Tem-se, assim, que a posse pode ser apreciada também como fruto de uma relação obrigacional, como se dá na locação, comodato, arrendamento, entre outros. O que legitima a posse do locatário, por exemplo, não é o exercício de um direito real nem "a faticidade de sua existência, mas a regulação intersubjetiva que reconhece seu exercício23 ".

Restando, de tal modo, caracterizada a posse com natureza jurídica de Direito Obrigacional.

3.3 Posse enquanto fato jurídico

Configurando a terceira dimensão da posse, tem-se aquela advinda de um fato, chamada de posse natural, sendo aquela que está desvinculada de qualquer titularidade.

A expressão "posse natural" revela dois sentidos, ambos com a característica de posse originária; a primeira proveniente da ocupação, não legitimada por relação jurídica contratual, de direito real ou administrativa; a segunda, todavia advêm da situação anteriormente legitimada por uma relação jurídica a qual se transformou em posse natural por uma causa superveniente, mudando o caráter da posse.

A posse, conforme Azevedo24, pode tanto ser um "simples estado de fato, (quando exercida sem ser promanada de direito pré-existente), como pode ser um estado de direito, quando o fato de seu exercício deriva de um direito subjetivo que lhe é anterior. Em última análise, a posse, encarada em si mesma, poderá ser mero estado de fato ou situação de direito".

Identifica-se esta situação possessória, assim como fora feito nas duas dimensões possessórias colacionadas anteriormente, não apenas investigando o acontecimento que propiciou sua efetivação, mas principalmente, o que a legitima. No tocante a forma de aquisição, a posse fato se difere da posse jurídica (obrigacional ou real), por ser originária, ou seja, não guarda "relação jurídica com nenhum possuidor ou proprietário anterior25".

Deste modo, quando alguém toma posse de certo imóvel, pretendendo lá constituir sua moradia, por exemplo, temos a posse natural, ou originária, não respaldada por nenhum direito real ou obrigacional. Conforme Torres26, aqui a posse se encontra "desvinculada da existência de qualquer direito como suporte de existência, ou seja, da situação de conteúdo de algum direito, por ter nascido como fato independente e isolável".

Certamente, na posse oriunda da ocupação, não se pode falar em uma natureza jurídica de direito obrigacional ou real, o que a sustenta é uma situação de fato, não vinculada a nenhuma titularidade, por isso uma natureza fática.

Resta, agora, perquirir se esse fato ganha trânsito no campo jurídico ou se trata apenas de fato material.

A teoria dos fatos jurídicos, matéria pertinente á teoria geral do direito27, ganha acentuada relevância para o estudo da posse, nas palavras de Pontes de Miranda28, ao se tratar da posse "a diferença entre mundo fático e o mundo jurídico passa a ser da máxima importância. É o clímax da discussão, porque em nenhuma outra matéria se torna mais nítida a coloração de parte do mundo fático, que do resto dele se separa, fazendo o mundo jurídico".

Para constatar se um determinado acontecimento pode ser considerado um fato jurídico, é preciso identificar a incidência de uma norma neste, é o chamado suporte fático (Tatbestand) da regra jurídica, isto é, "aquele fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sobre o qual a regra jurídica incide29[...]".

Sendo necessário, antes de prosseguir, aportar o conceito de fato jurídico como sendo o "fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica, portanto, o fato de que dinama, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não diname, eficácia jurídica30".

Dito isto, retornando ao exemplo de um indivíduo que se aposse de um bem, nele passando a residir, sem ser repelido pelo eventual proprietário, não sofrendo nenhuma agressão por terceiros, resta a questão: esta posse teria suporte fático suficiente para incidência normativa? Em outros termos, houve a juridicidade?

Para Pontes de Miranda, a resposta seria negativa. No seu entender tal tomada de posse seria mero fato social, um acontecimento sem o suporte fático necessário para ser juridicizado. "Quem toma posse do terreno sem qualquer oposição está no mundo fático, e mantém-se no mundo fático: se alguém vem a opor-se, as suas atitudes - que são do mundo fático - interessam ao direito como elemento fático que podem ter ligações com o mundo jurídico31[...]".

A ocupação, como posse natural, só se tornaria um fato jurídico, se ocorresse incidência da norma de proteção, "somente depois de haver ofensa ao princípio Quieta non movere é que se pode pensar na entrada da posse, no mundo jurídico. Somente depois dessa entrada é que se pode pensar em ius possessionis 32".

Todavia é forçoso discordar do jurista alagoano, pois a posse descrita no exemplo é um fato já juridicizado. O suporte fático do acontecimento é suficiente para recepcioná-lo no mundo jurídico.

Moreira Alves33, também se opõe à idéia de que a posse em tal estado seria mero fato (não jurídico) porquanto "é a ordem jurídica que caracteriza a posse em si mesma, independentemente de seus efeitos, tanto assim que a distingue da detenção e da mera relação de justaposição entre pessoa e coisa. Isso significa que ela ingressa no mundo jurídico antes mesmo de produzir qualquer efeito jurídico [...]. Essa circunstância mostra, também, que nada prova, em favor da tese de que posse é fato fora do mundo jurídico [...]".

Além disso, a relação possessória emana notável valor social e econômico para deixar de ser valorada pelo Direito. Destarte, evitando delongas, aporta-se o argumento essencial para demonstrar que na tomada de posse já se vislumbra situação jurídica, mesmo sem sobrevir à regra protetiva; trata-se da função social da posse ou inserção social da posse.

A função (inserção) social da posse, tema que será tratada em outra oportunidade, alicerça com segurança a idéia de que a posse por si mesma já é iluminada pela ordem jurídica. O comando normativo, constante no Artigo 5º inciso XXIII da CRFB/88, não é destinado apenas à propriedade (ligada à titularidade), mas sim às diversas formas de apropriação.

Como explana Teori Albino Zavascki34, "por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário".

Destarte, a partir da ocupação, a posse é juridicizada e passa a ser iluminada pelo princípio constante no texto constitucional, artigos 5º, XXIII e 170, III, podendo ser classificada como um verdadeiro fato jurídico (lato sensu).

Ana Rita Vieira Albuquerque35, também se manifesta acerca da influência daquele princípio na natureza jurídica da posse, pois "se antes a natureza jurídica da posse era apenas determinada pelos efeitos jurídicos da relação material do homem com a coisa, hoje esta natureza jurídica tem que ser também vista sob outro ângulo, aquele da função social da posse".

3.4 Posse como Direito da Administração

A quarta e última dimensão do fenômeno possessório é aquela que advém de ato administrativo decorrente da ocupação temporária36 e da requisição administrativa37 , estando inclusa em um regime publicista. Pelas suas peculiaridades, possui natureza jurídica diversa das anteriores, porque não se trata de um direito real, obrigacional, nem de fato jurídico.

Na ocupação temporária e na requisição administrativa, a tomada de posse é procedida pelo ente público, consistindo em um ato administrativo. Entretanto, ao contrário do apossamento procedido por particular, o que legitima a posse, na presente situação, é mais do que o fato jurídico (lato sensu) que lhe deu origem, sua natureza jurídica não é fática, uma vez que está atrelada a "instituto" do direito administrativo, do qual decorre sua natureza.

Explica-se: a posse como Direito Real ou Direito Obrigacional tem sua origem em fatos jurídicos. Por exemplo, um contrato de locação compreende a espécie de Fato Jurídico denominado Negócio Jurídico, contudo, este Fato Jurídico, dada as suas características, passa a se identificar com o chamado Direito Obrigacional, sendo esta, portanto, sua natureza jurídica.

Note-se que, nestes casos, tanto na posse como direito real ou no direito obrigacional, "o possuidor não é tutelado pela situação fática em que se encontra, mas pelo fato do nascimento de relações jurídicas oriundas de direito subjetivo patrimonial que é proveniente de um título. Ambos são possuidores jurídicos, em razão de uma titularidade (direito real) ou de um contrato (direito obrigacional)38".

De igual sorte, isto ocorre no caso em análise, através de um ato administrativo, o possuidor, pessoa jurídica de direito público interno, conquista a posse, porém a justificativa de sua proteção, sua legitimidade, é sustentada por um direito da administração, que também apóia o próprio ato administrativo.

Todavia, não se ajusta neste caso, por exemplo, a desapropriação indireta, uma vez que nasce de um fato e "quando o particular não pleiteia a indenização em tempo hábil, deixando prescrever o seu direito, o Poder Público, para regularizar a situação patrimonial do imóvel, terá que recorrer à ação de usucapião"39, uma vez que a afetação do bem particular não constitui forma de aquisição da propriedade.

No escopo de localizar a natureza jurídica pertinente a este exercício possessório, investiga-se qual o direito, se existente, que tenha dado causa à posse e que a legitime, no caso a Ocupação Temporária ou a Requisição Administrativa, provenientes da intervenção do Poder Público no patrimônio privado de seus administrados.

Não cabe, neste escrito, abordar tais formas de intervenção, contudo não podemos deixar de apontar alguns contornos essências da matéria.

Acerca da ocupação temporária e da requisição administrativa, constata-se a existência de características que as distanciam, em parte, de outras formas de intervenção ou limitação do Estado na Propriedade, porquanto o que importa aqui, é o poder fático de ingerência sócio-econômica sobre o bem.

O tema trazido à baila, bastante controverso, diga-se de passagem, foi muito bem trabalhada em artigo de José Maria Pinheiro Madeira40. Sugere-se este escrito como leitura.

Um ponto essencial à identificação da Natureza Jurídica desta manifestação da Posse, é que tanto na ocupação temporária quanto na requisição administrativa "o ente interveniente não realiza contrato com o proprietário do bem ocupado. O Estado entra com a sua força, subjugando a vontade do particular41".

Sendo pertinente a ressalva de Gasparini42, especificamente quanto à ocupação temporária, ao afirmar que "a utilização consentida pelo proprietário mediante certa remuneração ou mesmo sem qualquer retribuição não é ocupação temporária. Para que se tenha esta é necessário a compulsoriedade".

Verifica-se, conseqüentemente, que natureza jurídica da posse, nos casos citados, não é de Direito Real, de Direito Obrigacional ou Fática (como posse natural).

Nestes casos, a posse tem seu exercício balizado por normas administrativas e a legitimação de sua aquisição relega a vontade do particular, o que pode ser atribuído ao princípio da supremacia do interesse público.

Ao pesquisar a Natureza Jurídica dos dois instrumentos jurídicos postos à disposição da administração, Madeira43 conclui:

"não nos parece haver lugar para dúvidas quanto ao fato de que a ocupação temporária é forma autônoma de intervenção do Estado na propriedade".

Entretanto, no tocante aos bens imóveis, a intervenção pode incidir apenas na posse, sem afetar o exercício das faculdades do proprietário, caso este exista.

Tal acontecimento poderia ser vislumbrado, se a intervenção ocorresse em área não "registrada" ou, ainda que exista a respectiva matrícula, é possível que aquele que sofre a interferência estatal no seu exercício fático socioeconômico sobre o bem, não seja proprietário da área, tampouco seu exercício possessório esteja legitimado por direito real ou obrigacional, ou seja, quando se tratar de possuidor originário (posse fática).

Neste sentido, tais formas autônomas de intervenção do Estado podem recair tanto na propriedade, como apenas na posse, aliás, percebe-se que a posse se vincula muito mais aos institutos mencionados, justamente por ser o que busca a administração em tais modalidades de apossamento, e não a propriedade como ocorre na desapropriação.

Surge agora um problema de cunho terminológico, no escopo de denominar a quarta natureza do fenômeno. Sem dedicarmos um elevado grau de preciosismo à cientificidade da nomenclatura empregada, não estando à denominação utilizada, livre de ataques, pode-se dizer que a dimensão da posse aqui investigada, sustentada pela requisição temporária ou ocupação administrativa, como formas de intervenção do Estado na posse, tem natureza Jurídica de Direito da Administração.

Há, nesta opção, o intuito de destacar que sua legitimação, sua sustentação legal, que emana de um direito concedido à Administração Pública, sofre imposições quanto ao conteúdo de seu exercício por força do regime jurídico que disciplina a matéria.

Como dito, a denominação utilizada, não está livre de ataques, porém, por ora, presta-se para designar a quarta natureza jurídica da posse aqui identificada.

Por fim resta esclarecer que o contrário, isto é, o particular em posse de bem público não se insere aqui, mas em direito real, uma vez que estes tem previsão legal como concessão de uso especial para fins de moradia e concessão de direito real de uso.

Considerações finais

Ao se estudar posse, alguns momentos devem ser esclarecidos e algumas questões iniciais devem ser questionadas: por que estudar a natureza jurídica da posse? o porquê da posse no ordenamento?

Uma resposta simples a estes questionamentos seria porque a posse surte efeitos. Surtindo efeitos jurídicos, estes devem ser regulados de acordo com a natureza jurídica da posse. Daí a relevância e a complexidade de se caracterizar a natureza jurídica da posse.

Ao se detectar a natureza jurídica da posse, as análises dos efeitos se tornam mais compreensíveis, a exemplo da natureza jurídica, advinda de um direito real e de um fato jurídico, pois para a primeira, nem todos os efeitos são abrangidos, porém para a segunda, todos os efeitos se tornam relevantes.

Em sendo assim, de suma importância saber qual a legitimidade, isto é, quando do nascimento da posse, qual direito a tutela. Foi neste pensamento que se propôs as quatro naturezas jurídicas para a posse. Ao se descobrir a natureza jurídica da posse, os demais conteúdos de que trata a posse, tornam-se mais esclarecidos e didáticos.

Destarte, a tutela que alberga a posse, isto é, a natureza jurídica da posse, é de suma importância para a teoria possessória, uma vez que os reflexos desse direito tem relação direta com seus efeitos.

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Referências Bibliográficas

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Zavascki, Teori Albino. A Tutela da Posse na Constituição e no Novo Código Civil. In: Martins-Costa, Judith. A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002

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1 Malgrado a Natureza Jurídica da Posse seja o objeto deste estudo, não há pretensão de elaborar uma análise completa das teses que almejam elucidar o tema, tarefa que certamente não seria possível em poucas dezenas de páginas. Além do mais, é bom ressaltar que o intuito aqui não é o de elaborar um esboço histórico da doutrina destinada à matéria, mas, sim, apresentar a existência de uma natureza jurídica plúrima no fenômeno possessório.

2 A discrepância, segundo Alves, possui raiz romanista: "no direito romano clássico, a posse era simples fato (res facti), mas no direito justinianeu, deixou de sê-lo, aproximando-se de um direito [...]" (Alves, José Carlos Moreira. Posse - estudo dogmático. vol. II, 1. Tomo.1999. p. 79).

3 Entre pátrios, Lafaytte Rodrigues Perereira: "é, pois, força reconhecer que a posse é um fato e um direito: - um fato pelo que respeita à detenção, um direito por seus efeitos" (PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1943. p. 40).

4 É bom alertar que "Savigny inicialmente proclama la natureza de hecho del posesión; pero a partir de la 5ª edición de la famosa obra formula la conocida teoría de que si bien en sí mesma es un hecho, engendra consecuencias juridicas constitutivas de verdaderos derechos" (Gil, Antonio Hernández. La Posesión. Madri : Editorial Civitas, 1980. p. 47).

5 Rizzardo, Arnaldo, Direito das Coisas. Rio de Janeiro : Forense, 2006. p. 28.

6 Alves, José Carlos Moreira. Posse - estudo dogmático. vol. II, 1. Tomo.1999. p. 83.

7 Jhering, Rudolf von. Teoria Simplificada da Posse. Tradução: Ricardo Rodrigues Gama. 1ª ed. Campinas : Russell Editores, 2005. p. 40.

8 Jhering, Rudolf von. Teoria Simplificada da Posse. 2005. p. 46.

9 Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direitos Reais. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2006. p. 35.

10 Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direitos Reais. 2006. p. 35.

11 Cordeiro, António Menezes. A posse: perspectivas dogmáticas actuais. - 2. ed. - atualizada. Coimbra: Almedina, 1999. p. 160.

12 Cordeiro, António Menezes. A posse: perspectivas dogmáticas actuais.1999. p.160.

13 Azevedo, Renan Falcão de. Posse - efeitos e proteção. Caxias do Sul/RS : EDUCS, 1984. p. 40.

14 Os vários sentidos da posse também são mencionados por outros autores, dentre eles Antonio Hernández Gil, tratando a posse como: conteúdo de certos direitos; requisito para aquisição de direitos reais; e a posse por si. (GIL, Antonio Hernández. La Posesión, 1980. p. 33-34).

15 Azevedo, Renan Falcão de. Posse - efeitos e proteção. 1984. p. 40.

16 Aronne, Ricardo. Titularidades e apropriação no novo Código Civil brasileiro - Breve ensaio sobre a posse e sua natureza. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O novo código Civil e a Constituição. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003. p. 237.

17 Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direitos Reais. 2006. p. 37.

18 Aronne, Ricardo. Código civil anotado - direito das coisas - disposições finais e legislação especial selecionada. São Paulo : IOB Thomson, 2005. p. 27.

19 Aronne, Ricardo. Titularidades e apropriação no novo Código Civil brasileiro - Breve ensaio sobre a posse e sua natureza. 2003. p. 227.

20 Não ocorre com a Hipoteca.

21 Neste aspecto, "quando possuidor e dono são uma única e a mesma pessoa, a posse é evidentemente, um sinal exterior do direito de propriedade" (Azevedo, Renan Falcão de. Posse - efeitos e proteção. 1984. p. 35).

22 Conforme prevê o Artigo 1.197. A posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto, de acordo com o Código Civil.

23 Aronne, Ricardo. Titularidades e apropriação no novo Código Civil brasileiro - Breve ensaio sobre a posse e sua natureza. 2003. p. 232.

24 Azevedo, Renan Falcão de. Posse - efeitos e proteção. 1984. p. 40.

25 Melo, Marco Aurélio Bezerra de. Novo código civil anotado direito das coisas. 3. ed., rev., apl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 23-24.

26 Torres, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse - Um confronto em torno da Função Social. 2007. p. 301.

27 Mello, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico : plano da existência. -14. ed. ver. - São Paulo : Saraiva, 2007. p. XXV.

28 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo X. Campinas: Bookseller, 2001. p. 29.

29 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. Campinas: Bookseller, 2001. p. 66.

30 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. 2001. p. 126.

31 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo X. 2001. p. 29

32 Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo X. 2001. p. 37

33 Alves, José Carlos Moreira. Posse - estudo dogmático. vol. II, 1. Tomo.1999. p. 100.

34 Zavascki, Teori Albino. A Tutela da Posse na Constituição e no Novo Código Civil. In: Martins-Costa, Judith. A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002. p. 844.

35 Albuquerque, Ana Rita Vieira. Da função social da posse e sua conseqüência frente à situação proprietária. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2002. p. 180.

36 A ocupação temporária "se caracteriza pela utilização transitória, gratuita ou remunerada, de imóvel de propriedade particular, para fins de interesse público" (Di Pietro, Maria Sylva Zanella. Direito administrativo. - 19ª ed. - São Paulo: Atlas, 2006. p. 145).

37 "A requisição administrativa pode apresentar-se sob diferentes modalidades, incidindo ora sobre bens, móveis ou imóveis, ora sobre serviços, identificando-se, às vezes, com ocupação temporária e assemelhando-se, em outras, à desapropriação; é forma de limitação à propriedade privada e de intervenção estatal no domínio econômico; justifica-se em tempo de paz e de guerra" (Di Pietro, Maria Sylva Zanella. Direito administrativo. 2006. p.147).

38 Farias, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direitos Reais. 2006. p. 37.

39 Di pietro, Maria Sylva Zanella. Direito administrativo. 2006. p.195.

40 Madeira, José Maria Pinheiro. Institutos afins à desapropriação. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2008.

41 Madeira, José Maria Pinheiro. Institutos afins à desapropriação. 2002.

42 Gasparini, Diogenes. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 623.

43 Madeira, José Maria Pinheiro. Institutos afins à desapropriação. 2002.

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*Professor da Graduação das disciplinas na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, professor do Mestrado da disciplina Propriedade como princípio constitucional, no Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica - CPCJ/UNIVALI

**Advogado





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