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Abaixo a Cleptocracia: uma defesa da ética democrática e da moralidade eleitoral

Conforme já era esperado, o STF resolveu, em definitivo, a velha questão envolvendo a possibilidade de indeferimento do registro de candidatura de pré-candidatos que tenham cometido atos eticamente abomináveis.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Atualizado em 14 de agosto de 2008 14:25


Abaixo a Cleptocracia: uma defesa da ética democrática e da moralidade eleitoral

George Marmelstein*

Conforme já era esperado, o STF resolveu, em definitivo, a velha questão envolvendo a possibilidade de indeferimento do registro de candidatura de pré-candidatos que tenham cometido atos eticamente abomináveis. Basicamente, a decisão proferida na ADPF 144/2008, proposta pela AMB, confirmou o entendimento que já vinha sendo adotado pelo TSE, no sentido de que, em respeito ao princípio da presunção de não-culpabilidade, a Justiça Eleitoral não poderia indeferir o registro da candidatura com base em suspeita da prática de atos criminosos pelo pré-candidato ainda não decididos na esfera penal.

Com todo respeito que se deve ter pela mais alta Corte do país, entendo que a referida decisão representa um grande passo para a consolidação de vez da cleptocracia que já infecta as instância de poder há algum tempo no Brasil.

O que se tem observado, atualmente, é que pessoas sem o mínimo de preocupação com o interesse público e sem a menor idoneidade moral estão se candidatando com o único propósito de enriquecer, de utilizar o cargo em proveito próprio, de mamar nas tetas do governo e - vejam que interessante - tudo isso para financiar sua próxima eleição.

Pesquisa recente realizada pela "Transparência Brasil" demonstrou que o patrimônio dos políticos brasileiros cresceu cerca de 50% nos últimos dois anos, levando-se em conta as eleições de 2006. Antes disso, um importante estudo feito pelo jornalista Fernando Rodrigues, chamado "Políticos do Brasil" (ed. Publifolha), comprovou que os ocupantes de cargos eletivos ficam cada vez mais ricos a cada eleição, demonstrando que ser político não é apenas uma vocação, mas um ótimo investimento. Não é à toa que os custos necessários para financiar uma campanha sejam tão elevados. Para vencer uma eleição, não é preciso ter uma história de vida, nem ter qualquer afinidade com os eleitores, basta ter dinheiro e um bom marketeiro (bem pago, diga-se de passagem).

Um Desembargador Eleitoral, que atuou nas eleições de 2006 em Alagoas, me confidenciou que, no dia seguinte do pleito, dezenas de eleitores compareceram ao Tribunal Regional Eleitoral para reclamar do seu candidato. Não era para denunciar e sim para reclamar: o candidato havia prometido cem reais para quem votasse nele e só pagou cinqüenta. Os eleitores, que cumpriram a sua parte, estavam indignados. O problema é que a indignação não era com a compra do voto em si, mas sim porque não receberam o que lhes era "devido". O TRE acabou virando uma espécie de "DECON" para os eleitores que venderam seu voto e ficaram de mãos abanando!

E se um processo criminal é instaurado contra o político nesse meio termo, nenhum problema: o seu cargo também serve para dificultar a punição, seja porque existe o foro privilegiado, seja porque o poder influencia o resultado do julgamento. Assim, o político nem vai preso, nem perde a chance de continuar lucrando com o cargo público. É um círculo vicioso sem fim: os candidatos se valem do crime para financiar sua campanha e, quando eleitos, se valem do cargo para garantir a impunidade.

E ainda criticam a divulgação da "folha corrida" dos candidatos "sujos". Ora, o mínimo que se deseja numa eleição é que o povo seja corretamente informado sobre a história de vida do candidato. Democracia sem informação não é democracia. A lista elaborada pela AMB só peca por não divulgar da forma mais ampla possível o histórico "processual" de todos os candidatos. O ideal seria que a população tivesse acesso à integra dos processos criminais (e de improbidade administrativa) contra todos os candidatos para que cada indivíduo pudesse, por si próprio, firmar a sua convicção a respeito da idoneidade ética dos políticos.

Alguém pode levantar a bandeira da presunção de inocência ou de não culpabilidade e dizer: mas esses respeitáveis cidadãos não possuem qualquer sentença penal condenatória transitada em julgado contra eles. Logo, eles não podem sofrer qualquer restrição em seus direitos políticos enquanto não houver condenação penal definitiva.

Percebam como essa dimensão que está sendo dada à presunção de inocência é incoerente: se eu atropelar alguém, posso ser condenado a reparar os danos causados mesmo que não haja condenação criminal definitiva. Basta que eu responda a uma ação indenizatória, e o juiz cível, analisando as provas dos autos, se convença de que eu agi com culpa. O mesmo ato ilícito gera duas sanções: a penal e a civil - que são, em regra, independentes entre si. Então por que um candidato que tenha praticado um ato eticamente abominável não pode sofrer uma sanção eleitoral enquanto não transitar em julgado o processo criminal?

Até agora não vi nenhum jurista abordar a questão sob essa ótica. E me parece tão clara! É tudo uma questão de diversidade de instância: o juiz eleitoral não precisa aguardar o julgamento do juiz criminal para firmar seu convencimento. Ele pode analisar as provas que existem contra o candidato e decidir se ele tem ou não condições éticas mínimas para ocupar um cargo político. Não foi assim que ocorreu com o Collor? Ele não perdeu os direitos políticos antes do trânsito em julgado do processo penal? Por que só ele?

O princípio da presunção de não-culpabilidade deve ser conjugado com a cláusula do devido processo: ninguém pode ser considerado culpado sem o devido processo legal. O devido processo não é necessariamente o devido processo penal. A pessoa pode sofrer restrições em seus direitos após ser condenado em um devido processo cível ou um devido processo administrativo ou em um devido processo eleitoral.

Dentro dessa lógica, pode-se dizer que ninguém pode ser considerado inelegível sem o devido processo eleitoral. O devido processo eleitoral é o processo de impugnação de registro, no qual o pré-candidato poderá exercer o seu direito de ampla defesa, com todos os recursos inerentes, para demonstrar que eventuais provas que pesem contra ele não são suficientes para desqualificar a sua idoneidade e a sua moralidade para ocupar um cargo político.

Infelizmente, contudo, não adianta mais chover no molhado, pois o STF não acolheu essa tese e, por enquanto, só resta lamentar. Mas como bom nordestino, meu lamento não pára por aqui. Sigo adiante:

Lá no Rio de Janeiro, as diversas milícias estão coagindo os moradores de determinadas favelas a votarem em dado candidato. É na base do "vota ou morre". Pior do que os currais eleitorais dos coronéis na época da república do café com leite, onde a chibata prevalecia e voto de cabresto era a regra.

É a cleptocracia surgindo. O governo dos bandidos. O bandido "favelado" causa mais indignação. Para ele, há o exército e a polícia. Mas o bandido de paletó e gravata, com seus mensalões e mensalinhos, já estão em Brasília há bastante tempo. Só não ver quem não quer. Ou melhor: todo mundo sabe, mas parece que ninguém se incomoda.

Li recentemente o livro "Mcmáfia: crime sem fronteiras" (ed. Companhia das Letras), de Misha Glenny. É um livro espetacular para se compreender como o crime organizado utiliza o aparato estatal para enriquecer. Durante muito tempo, o apoio estatal às organizações criminosas ocorria de forma essencialmente ilícita, através de subornos, corrupção, ameaças, extorsões, prevaricação etc. Hoje, pelo contrário, há uma simbiose entre o lícito e o ilícito. Leis são feitas para facilitar os negócios escusos. Os criminosos mais bem-sucedidos não se escondem no submundo da sociedade. Eles transitam nos melhores restaurantes, moram nos melhores apartamentos e ocupam os mais altos cargos do Estado. Alguns são até tratados por "excelência"!

Aí vem o discurso do "Estado Polícia" ou "Estado do Terror", comparando as atuações da Justiça Federal de primeira instância com a política de segurança pública nazista. Até parece que é a mesma coisa. O nazismo perseguia, essencialmente, os opositores políticos, os inimigos do regime, as minorias, os oprimidos. O que está havendo, no caso dessas "megaoperações", é justamente o contrário. São os poderosos, a elite do crime, os amigos do rei que estão sendo investigados. E são investigados, de um modo geral, com todas as garantias previstas na Constituição (clique aqui) e nos tratados internacionais de direitos humanos. É respeitado o juiz natural que analisada cada pedido formulado pelas partes, inclusive os pedidos de interceptação telefônica e de busca e apreensão domiciliar, os acusados são assistidos pelos melhores advogados, todos os recursos para instância superior são garantidos, não se podendo falar, nem de longe, em "Estado de Exceção".

É certo que há, eventualmente, abusos policiais e judiciais que devem ser censurados. Não é razoável que uma pessoa sem histórico de violência seja algemada só pra ser humilhada. Não é razoável que a imprensa seja chamada para "cobrir" os mandados de prisão temporária e de busca e apreensão, expondo desnecessariamente a imagem dos acusados. Não é razoável que os advogados sejam impedidos de terem acesso aos autos do inquérito quando as prisões já tenham sido efetivadas. Nem é razoável que a prisão temporária ou preventiva seja utilizada como uma execução antecipada da pena. Não se pode tolerar que existam pressões psicológicas ou torturas físicas para obtenção de confissões. Também não se podem aceitar escutas ilegais ou qualquer outra forma de prova ilícita para condenar.

Por outro lado, o que tem se visto hoje é um abuso na invocação de direitos fundamentais para barrar qualquer tentativa de investigação. Naturalmente, não há qualquer violação a direitos fundamentais quando um magistrado determina uma quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico, caso fique demonstrada a necessidade da medida. O direito à privacidade não significa um escudo para impunidade. Não é razoável que um escritório advocatício seja um ambiente impenetrável e um verdadeiro esconderijo de provas e de elementos do crime. Enfim, os direitos fundamentais não podem servir para acobertar práticas ilícitas e garantir a impunidade.

Esse tipo de raciocínio não tem nada de fascista, nem vai contra os direitos fundamentais. A impunidade sim é uma clara violação dos direitos fundamentais, conforme reconhecido por diversos tribunais internacionais de direitos humanos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, vem sistematicamente considerando que a impunidade dos criminosos, entendida como a falha em seu conjunto de investigação, persecução, captura, processo e condenação, ofende os direitos das vítimas. Há, portanto, uma obrigação do Estado de "investigar seriamente, com os meios ao seu alcance, as violações cometidas no âmbito de sua jurisdição, a fim de identificar os responsáveis, impor-lhes as sanções pertinentes e assegurar à vítima uma adequada reparação" (Caso Velásquez Rodrigues).

Vale lembrar que os crimes mais graves quase sempre representam violações aos direitos fundamentais. Por exemplo, um homicídio brutal, praticado com crueldade e frieza, é uma violação clara ao direito fundamental à vida. Um estupro é um manifesto desrespeito à integridade física e moral da mulher e, portanto, uma afronta à sua dignidade. Um seqüestro viola a liberdade; um roubo, a propriedade. Uma apropriação indevida de verbas públicas significa privar boa parcela da população de receber os direitos sociais garantidos constitucionalmente. E assim por diante.

O direito penal é, nesse sentido, um instrumento de proteção de direitos fundamentais, sobretudo nos casos em que o bem jurídico-penal protegido for um valor constitucional. Quando um indivíduo pratica um crime no qual o bem jurídico é um valor ligado à dignidade da pessoa humana é dever do Estado agir para que essa violação a direitos fundamentais seja punida. E quanto mais importante for o bem jurídico violado, mais intensa deve ser a punição.

Logo, punir os ilícitos penais, ao contrário de representar uma violação a direitos fundamentais, significa, antes de tudo, uma forma de proteger esses direitos, até porque nenhum direito fundamental deve ser interpretado no sentido de autorizar a prática de atividades que visem à destruição de outros direitos ou liberdades, conforme prevê o artigo 30 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em outras palavras: o exercício de direitos fundamentais não pode ser abusivo a ponto de acobertar práticas ilícitas/criminosas cometidas em detrimento de outros direitos fundamentais ou de valores constitucionais relevantes.

Tudo isso está sendo dito sem mirar em um caso concreto específico, nem se pretende atacar qualquer pessoa em particular. É algo que se diz "de um modo geral", "por assim dizer". Por isso, não estou acusando especificamente quem quer que seja, até porque não disponho de elementos para tanto.

Por ora, é só. E abaixo a cleptocracia!

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*Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional






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