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A encruzilhada da advocacia

Lendo e ouvindo, pela internet, a explicação clara e irretorquível do atual presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil - Luiz Flávio Borges D'Urso -, sobre alguns casos de desonestidade na remuneração de advogados que prestam serviço de assistência judiciária, sinto-me mais do que motivado para, como mero cidadão - e por um sentimento natural de justiça -, dizer algumas palavras em favor dessa difícil profissão, a advocacia.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Atualizado em 10 de setembro de 2008 15:14


A encruzilhada da advocacia

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

Lendo e ouvindo, pela internet, a explicação clara e irretorquível do atual presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil - Luiz Flávio Borges D'Urso -, sobre alguns casos de desonestidade na remuneração de advogados que prestam serviço de assistência judiciária, sinto-me mais do que motivado para, como mero cidadão - e por um sentimento natural de justiça -, dizer algumas palavras em favor dessa difícil profissão, a advocacia.

No caso em referência, é patente que a OAB/SP nenhuma culpa tem no episódio. Por sinal, quando li a reportagem, em importante jornal paulistano, também observei um certo divórcio entre matéria e manchete. Esta induzia a existência de conivência ou, pelo menos, de relaxamento do órgão de classe, o que não ocorre, pelo que se apurou até agora. Como se vê, nem mesmo jornais de grande tradição, como "O Estado de São Paulo", estão livres de alguns "escorregões", certamente fruto da pressa - normal em todo jornal diário - no examinar a compatibilidade rigorosa entre matéria e título. De qualquer modo, um perigo para a reputação, porque altíssimo percentual de leitores de jornais "informa-se", lendo apenas os títulos. Se a advocacia já é espinhosa, em termos mundiais - sua tarefa diuturna é ser "do contra", afrontar interesses - no caso brasileiro essa dificuldade é hoje triplicada.

Justificando minha neutralidade no julgamento da advocacia brasileira, digo que estou inscrito na OAB- SP mas praticamente não advogo. Em um caso ou outro redijo alguma peça mais delicada, de "cristal" - as aspas poderiam ser dispensadas, mas convém não correr o risco das interpretações literais -, em que um movimento mais brusco na redação pode trincar a taça do Direito. Não advogo, primeiramente, porque não preciso, na feliz condição - para alguns, privilegiada, com vencimentos integrais - de magistrado aposentado. Segundo, porque a advocacia, pelo menos no Brasil, exige um absurdo esforço burocrático, físico, braçal, "pernal" - anda-se muito... - desaconselhável para pessoas com mais de 70 anos. Se o advogado não tiver uma equipe de jovens "andarilhos" em excelentes condições físicas, dublês de despachantes, gênios da informática, telefonia e outros aparelhos, infatigáveis preenchedores de guias, é melhor pendurar as chuteiras. Mesmo porque o ato de aposentar esse calçado fará com que alguém mais moço - e mais necessitado - receba um pagamento que seria destinado ao ex-magistrado que advogasse ativamente.

Outra justificativa para não advogar intensamente relaciona-se com a verdadeira - porém mal rotulada - "deformação profissional", causada pela profissão de juiz. O tal uso do cachimbo que "entorta a boca", como já ouvi, equivocadamente, mais de uma vez. Juízes, segundo essa opinião, continuariam, mesmo aposentados, com a "deformação mental" ou "mania" de ver os dois lados de toda questão. Propensão inadequada à profissão de advogado, pelo menos na concepção corriqueira, universal, da sua missão. Certamente, daqui a muitas décadas será diferente.

De fato, o hábito profissional de neutralidade, por muitos anos, geralmente deixa um vinco, ou calo, no juízo. Essa marca, porém, deve ser vista mais como virtude, do que como deformação de espírito, desde que o ex-magistrado não se ponha, ridiculamente, como um guru, a emitir juízos pretensiosos e definitivos - sobretudo não solicitados - sobre todas as pessoas e questões. O advogado é, geralmente, procurado para lutar, não para julgar. Dizer a um possível cliente que a parte contrária também tem razão é o mesmo que lhe jogar no rosto um copo de água gelada. Essa sinceridade é interpretada como "ausência de combatividade". A procuração não será outorgada. O cliente, de modo geral, quer alguém que brigue por ele, sem muitas perguntas sobre o "porquê". Ex-casais, freqüentemente, brigam pelos filhos - guarda ou pensão -, por motivos bem diferentes dos mencionados. O cliente não quer a opinião de um filósofo compreensivo, nem, muito menos, de um juiz que o julgue antes do outro, o verdadeiro, estatal. Seria uma inflação de "juízes".

De modo geral, é melhor que magistrados aposentados não advoguem. Cedam espaço a quem mais precisa. Lecionem ou escrevam livros, jurídicos ou não. Todo ser humano tem talentos múltiplos. Tornaram-se juízes assim como poderiam ter sido médicos, engenheiros, romancistas, professores, poetas, pianistas, pintores, historiadores e jornalistas, fossem outras as circunstâncias. Raros foram os juízes que só poderiam ser úteis nessa bonita profissão. Mesmo os advogados não fogem dessa alternância de talentos. Não "são" advogados, "estão" advogados. Tanto assim que, havendo oportunidade, muitos ingressam na política ou ambicionam integrar o quinto constitucional. Quando conseguem isso, revelam-se tão bons juízes quanto os magistrados de carreira. Fenômeno mental que sempre me impressionou.

Muitos magistrados de carreira são contra o "quinto constitucional" apenas porque isso lhes parece um "furar fila", um privilégio, um "começar por cima", uma injustiça para com os juízes que só atingem o topo depois de longa peregrinação pelas "instâncias inferiores". Não, a meu ver, porque advogados e promotores tenham se revelado maus julgadores. Agora, quanto a políticos - ou com evidentes ambições políticas -, ou atores natos, esses não deveriam ser jamais juízes porque a ânsia por holofotes e "variações de enfoques" os faz falar demais, talvez antenados a palcos mais altos e excitantes. Enjoam da monotonia dos julgamentos. São pessoas imaginosas e a função judicial não é propícia a contínua criatividade. Somente vez por outra há oportunidade - e conveniência... - para algum "estalo" inovador. Uma frustração para as mentes agitadas que despejam novas concepções jurídicas com a naturalidade das metralhadoras. Uma metralha semanal atordoaria o mundo jurídico, e com ele todos os cidadãos, desnorteados como "cegos em tiroteio".

Talvez a explicação para a maior facilidade para o advogado se transformar em bom juiz - quando, para o juiz, é mais difícil se tornar advogado típico - esteja no fato do senso de justiça ser inato, "orgânico", em todo ser humano. Dormita, mas não morre nunca no advogado. Já a parcialidade induzida, profissional, é algo cultivado. Não é inata, mas imposta pela característica do trabalho da advocacia, que obriga uma extrema valorização do direito do cliente e esquecimento das razões "do outro", aí incluída a sociedade como um todo. Um advogado militante não pode se dar ao luxo de, a todo momento, se preocupar em não causar alguma injustiça à parte contrária. Se causar, paciência, a culpa será do juiz, ou da lei. Se, ganhando injustamente uma causa - por sorte ou habilidades técnicas -, não se meta a sugerir ao cliente para que, por um sentimento de justiça, indenize o lado contrário. O cliente ouvirá esse pedido em silêncio mas pensará que seu patrono enlouqueceu. "Pedir isso depois de tanta luta?!" Se com cabelos brancos, então, é o Mal de Alzheimer chegando. Nesse ponto, a arbitragem e formas assemelhadas de solução de litígio são um passo acima na longa escada de aperfeiçoamento da justiça, porque o árbitro privado, mesmo não sendo juiz profissional, é obrigado a zelar pelo direito de ambas as partes. A arbitragem, no Brasil, ainda está algo emperrada porque o sistema legal enseja, com a abundância de recursos, uma demora que beneficia demais a parte devedora. "Por que vou aceitar uma arbitragem - que decide rapidamente - se posso, na justiça estatal, jogar minha dívida para um futuro incerto?"

Um advogado que continuamente rejeite causas, por excesso de pudores éticos, terá dificuldade para sobreviver. Em questões tributárias, não serão os contribuintes "certinhos", que cumprem à risca - mesmo espumando - suas pesadas obrigações fiscais que irão procurar o advogado. Na área penal, sobretudo, aqueles que procuram o criminalista não são, em sua maioria, pessoas inocentes, vítimas de um engano da vítima ou da polícia. E advogar para pessoas pobres é economicamente desastroso. O advogado precisa viver, tem família para sustentar. A advocacia criminal é intelectualmente fascinante - lida com os abismos do desespero, do ódio, da frustração e também da ganância doentia - mas essa "beleza literária" da advocacia criminal não sustenta ninguém. Para o advogado vencer na profissão - e se não vencer economicamente será desprezado socialmente - terá que, em linguagem popular, "ajudar" pessoas mal-intencionadas a desfrutar de um dinheiro que não era seu e não foi obtido honestamente. Se ficar rejeitando clientes ricos, outros profissionais agradecerão esse excesso de escrúpulo. Se só quiser defender inocentes, terá que praticar outras atividades. Mas não foi para essas outras coisas que ele estudou Direito.

Quando fiquei sabendo que mais de quatrocentos mil advogados trabalham, no Estado de São Paulo, prestando assistência judiciária - porque o Estado não dispõe de número suficiente de defensores públicos - fiquei desagradavelmente impressionado com a baixa média mensal de ganhos dos advogados que prestam esse serviço. Se precisam trabalhar praticamente de graça - só recebem do Estado quando o processo se encerra -, para que cursaram uma faculdade e prestaram Exame de Ordem? Não seriam vítimas de uma espécie de estelionato educacional?

Aprovo a já longa luta da OAB para a diminuição ou, pelo menos, para a não proliferação das Faculdades de Direito. Excesso de formandos significa excesso de desempregados, frustrados, revoltados, atormentados. As italianas "Brigadas Vermelhas", terroristas de poucas décadas atrás, explicavam-se, também - não era simples conflito de ideologias -, pela ausência de perspectivas para gente diplomada. Aí é natural que tais desempregados forçados pensem em "reformar a sociedade". Pelo método mais rápido conhecido, o violento. "Já que a sociedade não nos aceita, tratemos de modificar a sociedade. Depois de tanto estudo, não vou ficar limpando chão ou privadas". Para eles, havia "algo de errado" na sociedade. E havia mesmo. Só que com o terrorismo as coisas só pioravam. De desempregados passavam a ser terroristas criminosos, perseguidos e baleados. O "recheio" teórico marxista era mais uma construção mental para encobrir o sentimento de frustração.

Algum tempo atrás escrevi criticando o Exame de Ordem. Minha crítica não era quanto ao Exame, em si, mas quanto ao excesso de dificuldade das questões. Capaz até, eventualmente, de reprovar algum velho desembargador ou presidente da própria OAB, que não sabe tudo sobre todos os ramos do Direito. Um exagero na dificuldade das questões poderia sugerir mais uma reserva de mercado do que o zelo pela boa defesa técnica da sociedade. Uma alternativa para garantir o ponto de equilíbrio na dificuldade das questões seria a banca examinadora incluir professores - não advogando -, juízes e promotores, pessoas nem um pouco interessadas na reserva de mercado.

Uma boa alternativa para as injustas dificuldades da advocacia estaria em "copiar", com algumas alterações, a sistemática inventada pelos médicos. Mais orientada para prevenir doenças - com exames periódicos ou atenta aos primeiros sintomas. Os médicos criaram os "planos de saúde", em que o associado tem uma sensação de segurança. Paga um "x" previsível por mês, e conta com todo tipo de especialista. O mesmo seria recomendável para a advocacia - em função mais preventiva do que postulatória -, porque também nela já não basta entender uma ou duas especialidades. Esse sistema de defesa mais abrangente já existe, mas somente com relação a empresas, não a nível individual. A reação da OAB a essa idéia, porém, não foi favorável. Esquecida que o judiciário brasileiro já está por demais sobrecarregado para aceitar novos milhões de demandas e assim dar mais trabalho aos advogados. E quanto menos demandas tem um país, melhor. Toda ação judicial significa um emperramento no vasto mecanismo.

Finalmente, uma palavra especial aos criminalistas. Tenho criticado, mesmo sem autoridade acadêmica - nunca quis ser professor - a interpretação de que o réu "importante" só pode ser "detido", ou "garantido contra fugas" depois da condenação com trânsito em julgado. Hermenêutica que redunda em quase total impunidade para uma classe mais privilegiada, porque os recursos disponíveis são tantos que fica ao gosto do réu escolher - em local seguro e confortável -, se deve fugir ou se apresentar. Esse "favorecimento" a prováveis aproveitadores tem atraído a antipatia de boa parte da população, revoltada com o "tratamento desigual".

O "endurecimento da lei", um anseio da sociedade majoritária, poderia, de fato, dar mais trabalho e preocupação aos criminalistas, mas teria um lado positivo: valorizaria e sofisticaria a profissão do advogado criminal. Hoje, no Brasil, a coisa está muito fácil. Mesmo profissionais com ralos conhecimentos do Direito Constitucional, Penal e Processual Penal conseguem o mesmo resultado obtido pelo criminalista de profundos conhecimentos gerais e jurídicos. Basta tumultuar, não perder prazos e recorrer de tudo para obter o mesmo resultado: a grande demora, com conseqüente prescrição ou fuga do réu, talvez pela morte natural. Nos EUA a advocacia criminal é muito valorizada, bem paga, porque exige um especial talento por parte do profissional. A advocacia criminal é bonita, envolve todo tipo de conhecimento. Anda de mãos dadas com a psicologia, a medicina e a filosofia e só desaparecerá quando o homem se transformar em anjo. Algo bem remoto. Basta abrir o jornal.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo





 

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