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Pensão alimentícia: o terço salarial contra as famílias fundadas no amor

Estou certo de ter lido de antropólogos que as mulheres da pré-história tendiam instintivamente a escolher os parceiros levando em conta características que lhes transmitissem a expectativa de sobrevivência: o melhor macho caçador, por exemplo, oferecia o atrativo de segurança para o sustento da futura prole.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Atualizado em 15 de outubro de 2008 11:43


Pensão alimentícia: o terço salarial contra as famílias fundadas no amor

Mário Gonçalves Júnior*

Estou certo de ter lido de antropólogos que as mulheres da pré-história tendiam instintivamente a escolher os parceiros levando em conta características que lhes transmitissem a expectativa de sobrevivência: o melhor macho caçador, por exemplo, oferecia o atrativo de segurança para o sustento da futura prole. Não deixa de ser uma escolha baseada no interesse econômico puramente. Essa característica era mais valorizada do que outras. O mais afável, o mais belo eram "naturalmente" vencidos pelos machos mais "capazes". Darwin encontrou neste tipo de evidências o material especulativo para a sua teoria da seleção natural. Os mais fortes eram (ou ainda são) os selecionados, assim os mais fracos com o passar do tempo extinguiam, propiciando a melhora da espécie.

Mas naquele tempo sobreviver significava muito menos que hoje. Sobreviver significava comer suficientemente, dormir à salvo de predadores, agasalhar-se e procriar, o que era um desafio constante, dada a hostilidade do meio ambiente selvagem.

A tecnologia criada pelo homem trouxe o domínio e o controle sobre essa hostilidade natural. Mas as relações interpessoais, por sua vez, tornaram-se muito mais complexas. Viver bem, ser "feliz", hoje é diferente. A seleção natural trouxe muitas novas exigências.

Infelizmente essas exigências estão trabalhando contra a desejada perenidade das famílias e é isto que desconfio ainda não ter sido devidamente percebido. É fato que o índice de divórcios ultrapassou estatisticamente 50% do número de casamentos. É uma epidemia. Onde está o problema?

Dos mais conservadores aos mais liberais, todos concordamos que a família (não só a sua criação, como principalmente a sua manutenção) é importantíssima para o tecido social. A Constituição Federal (clique aqui) e o atual Código Civil (clique aqui), como o anterior, nunca divergiram neste princípio. Mas algo sucede que as famílias não vingam, apesar da lei.

Certamente não há uma única causa. Há, porém, uma concausa que vem sendo displicentemente ignorada até aqui.

Perdoem-me aqueles que não pensam e não agem na esteira da anomalia que a partir de agora será prognosticada. A experiência que inspira esta especulação tem foco no casuísmo judicial. Algo como analisar a saúde pública a partir do prisma dos freqüentadores de hospitais. Pessoas sãs não procuram hospitais a não ser por prevenção. São minoria.

Falo mais especificamente de um "cacoete" jurisprudencial herdado da aplicação do anterior Código Civil - e que ainda prevalece - de se fixar as pensões alimentícias invariavelmente em um terço do ganho mensal do pai e ex-marido, em prol do filho e/ou da ex-mulher. O raciocínio é simplista: numa família de três pessoas (pai mãe e um filho), presume-se que o pai gaste 1/3 do seu ganho para prover o filho. Então, uma vez desfeito o casamento, deve manter o mesmo nível de sustento.

Não há bobagem maior. Em primeiro lugar, onde se verifica que um filho consuma cartesiano 1/3 da renda mensal do pai? Pode perfeitamente representar mais, como pode representar menos. A lei atual, como a do anterior Código Civil, sempre prestigiou o binômio possibilidade-necessidade, mas é curioso a força que tinha e ainda tem esse "cacoete" do 1/3.

O grande dilema é este. Ou melhor, a conseqüência que isto traz na formação e manutenção das famílias.

Quem ignora que há uma generalizada desconfiança nas relações amorosas por conta desta inflexível perspectiva? Não há quem faça um "plano A" sem cogitar internamente um "plano B". A cogitação deste "plano B" é alimentado pelo fantasma do 1/3.

A repetição da tal fórmula está tão consagrada na história jurisprudencial em se tratando de pensão alimentícia, que não há um só leigo que não a conheça. Você pode constatar isto em qualquer estrato social, mesmo nos mais modestos. Entre brincadeiras há sempre a advertência de algum amigo ou parente, algo jocosa, algo premonitória: "cuidado com esse casamento; se você se separar ela levará um terço do seu salário para sempre!". Já existe até um estigma para homens separados que pagam pensão alimentícia, que corre à boca pequena entre as mulheres e possíveis novas pretendentes: "esse aí tem P.A." (sigla de "pensão alimentícia"). O valor do "mercado sentimental" desse "P.A." é desvalorizado. É uma espécie de "capitis diminutio" na disputa por novas parceiras, principalmente as que nunca se casaram e divorciaram: "você que engula minhas "cobras e lagartos", afinal nada pode ser pior do que um "P.A.!"

Tudo não porque se tem um filho de um casamento desfeito, mas porque o tal cacoete do 1/3 dá margem para a ex-mulher infernizar duas décadas e meia a alma do ex-marido (os filhos podem ter pensão até a formação em nível superior, então essa indireta submissão aos caprichos e ao humor da ex-mulher dura quase 1/4 de vida: troque o carro, seja promovido no trabalho etc., e a 'ex' estará à espreita, considerando-se sua eterna "sócia" graças à jurisprudência irracional do 1/3, o que acaba também por desestimular o desejo de evoluir profissionalmente: o vampirizado tende a se acomodar).

Na seleção natural do mercado amoroso, não há mulher que ignore essa realidade do "P.A.", que, justamente por isto, é discriminado em relação aos não-P.As. Terão os "P.As." maior dificuldade de refazer suas vidas sentimentais, ou de tentar construir uma nova família (mesmo com outra mulher divorciada e com filhos: estatisticamente a quase totalidade de credores de pensão alimentícia é de ex-esposas; quando um ex-marido postula pensão é tão raro que vira manchete, tratado como uma anomalia: o sujeito merece um estudo sociológico ou é "aproveitador" ou "vagabundo").

Esta cultura invencível - penso que ainda não se diagnosticou desta maneira - está traumatizando a sociedade e trabalhando contra a formação, manutenção e até reconstrução de famílias. Todos desconfiam de todos por causa disto. É só escutar as conversas de café da tarde em qualquer grupo. A preocupação mais ou menos enraizada é saber se o enamorado tem condições financeiras de garantir a futura família, ou se esse mesmo enamorado é só uma promessa fadada ao insucesso. Foca-se o financeiro. Amor em segundo plano, na melhor das hipóteses.

Até o conhecidíssimo "golpismo" (o casamento por interesse patrimonial) é uma fobia alimentada em boa parte por esse cacoete do 1/3, que ignora quanto efetiva custa a criação digna da prole.

Aliás, confunde-se dignidade com opulência financeira, e provavelmente por isto o mundo esteja crescentemente materialista e pouco ético. Vale-se quanto se pesa. Respeitam-se as marcas da riqueza (confundidas com sucesso) e desprezam-se os valores espirituais de uma sociedade sadia. É daí que nascem os políticos corruptos, os ladrões, os latrocidas, os seqüestradores etc. É a mesma matéria-prima. A moral da grana. A dignidade está mais no dinheiro do que no carinho: quanto mais se tem, mais digno se é. Minha bisavó profetizava, horrorizada já numa época em que a crueza da ganância era mais hipócrita que hoje, repetindo um dito popular: "olha bem onde amarras teu burro!"

Se você tem filhos, certamente em algum momento terá com que se preocupar seriamente. A tendência da pensão de 1/3 é estimular as escolhas dos parceiros por interesse puramente financeiro ou por medo. ninguém quererá fazer filhos e formar famílias com pobres. Se o casamento arruinar, ai menos tem-se um provedor à altura e de deixar o INSS rubro. Assim descartam-se os párias: um terço de pouco é nada. O grande negócio é selecionar o seu "terço satisfatório". O amor é um detalhe secundário e assim as famílias multiplicam-se no mesmo receituário lamentável do cacoete do 1/3.

A operação matemática é primária: dividir por três o padrão de vida do mancebo e verificar se o resultado é aprazível. Se o pretendido atende outros requisitos é de menos, e assim as famílias tendem a serem formadas entre pessoas sem o menor grau de afinidade e cumplicidade. A maldita conta vale para todos os estratos sociais: um terço do salário de um pobre pode perfeitamente ser muito para um miserável. Assim se "democratiza" o pior dos sentimentos por toda a pirâmide, apodrecendo o tecido social. Provavelmente isto explique (mas não justifique) recém-nascidos lançados em latas de lixo e em rios e esgotos: a mãe viu-se no desespero ou na pouca-vergonha de ter que sustentá-lo sozinha. É o desamor alimentado pelo interesse econômico mais cru.

Esse 1/3 estimula a formação de castas e de preconceitos, daí porque a expressão "pária" aqui até assume um sentido quase literal: pobre não entra e rico não sai.

Esta advertência não constitui nenhuma novidade em doutrina de Direito de Família, especialmente quando os maiores especialistas criticam a Súmula 379 a pretexto de fomentar o parasitismo da ex-mulher:

"Aliás, a Súmula 379, caracterizando-se pelo seu "acentuado paternalismo", e refletindo a interpretação "nitidamente influenciada pelas legislações alienígenas", vem, na observação de Brandão Lima, "criando e incrementando a proliferação de uma perniciosa casta social - as parasitas do vínculo matrimonial -, além de fechar cada vez mais as portas da separação consensual" (YUSSEF SAID CAHALI, Divórcio e Separação, RT, 11a. edição, São Paulo, 2005, pág.215).

Os juízes de varas de família têm uma enorme responsabilidade não só jurídica como social para mudar este quadro. O Código já mudou, inspirado na Constituição de 1988, guindando a mulher à mesma condição do homem. Mesmo no anterior Código já existia a equação possibilidade-necessidade. Falta implementar de coração e sem medo essa igualdade. Quando isto acontecer, o índice de casamentos por interesse (e, conseqüentemente, de divórcios) diminuirá, e, assim, o prognóstico constitucional que prestigia os núcleos familiares e a sua manutenção terá eficácia plena.

Aqui também a advertência não tem nada de original para a melhor doutrina:

"A fixação do ponto de equilíbrio ou proporcionalidade entre os recursos do alimentante e as necessidades do alimentando é tarefa, contudo, que às vezes se torna difícil, na medida em que ao juiz sempre assalta a preocupação, de um lado, de não incentivar exigências absurdas do alimentando e a própria ociosidade destes e, de outro, de contornar as manobras maliciosas a que, em certas ocasiões, se permitem os alimentantes para, através da ocultação de suas verdadeiras rendas, furtarem-se ao pagamento de uma prestação alimentícia justa e proporcional a seus efetivos ganhos.

Em tais casos, uma investigação profunda, através do crivo da prova - das condições fáticas já referidas -, é importante e necessária quando se tiver de avaliar, por exemplo, se se está diante de um desemprego malicioso, procurado pelo alimentante através da espontânea rescisão do contrato de trabalho, para criar situação destinada a embasar pedido de redução da obrigação alimentar, ou se, ao contrário, o julgador se depara com situação de absoluta dificuldade, no momento, de obter o alimentante emprego no saturado mercado de trabalho.

Por outro lado, é importante avaliar se o credor dos alimentos, sendo válido para o trabalho e tendo habilitação qualificada, não estaria preferindo a ociosidade para exigir sustento do alimentante.

Na aferição de tais situações, presente deve estar sempre o arbítrio bonus viri do Juiz de Família, seus conhecimentos de ordem geral e o descortino que o mesmo deve ter dos problemas sociais dominantes" (Áurea Pimentel Pereira, Divórcio e Separação no novo Código Civil, Renovar, 11a. edição, Rio, 2004, pág. 143/144).

Fui criado com muito menos do que 1/3 do que hoje ganho. E com dignidade. Possibilitou o que hoje sou. Talvez principalmente por isto, aprendi dar valor ao "difícil". Muito mais do que um terço de dignidade em comparação com o terço que meu pai provavelmente ganhava. Porque o terço que conta, o da humildade da minha mãe, e da sua ética, foram suficientes. É deste amor que o mundo está carente. Não das loterias em que se transformaram as pretensões judiciais de alimentos, que criam miríades de lucro fácil, legiões de sanguessugas, vampiros e parasitas. A simplicidade costuma ser melhor conselheira do que a bonança.

Enquanto não se atenta para essa cadeia viciosa, multiplicar-se-ão anciões com ninfetas numa hipocrisia de sangrar os olhos. As famílias do futuro. De viúvas herdeiras ou pensionistas ociosas desde cedo (afinal esses casamentos não duram quase nada...). Os filhos? Títulos de crédito como outros quaisquer.

É preciso superar a tendência atávica das uniões por interesse e atingir o grau de civilidade das uniões baseadas no amor sincero. A base está na família, não no dinheiro que a corrói ou sustenta. Mas o Judiciário precisa combater exemplarmente a contaminação das famílias pelo interesse financeiro mesquinho.

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*Advogado do escritório
Demarest e Almeida Advogados












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