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O STF e o IPTU progressivo antes da EC 29/00 - possível e relevante viragem jurisprudencial no excelso pretório

Gustavo Hasselamnn

Os administrados, notadamente os municipalistas e os contribuintes, acompanharam, com muito entusiasmo , em junho de 2008, o voto - vista do Ministro Eros Grau, no RE\562045, versando a possibilidade da progressividade das alíquotas do ITCD - Imposto estadual, incidente sobre Transmissão causa Mortis, tendo em vista os princípios da capacidade contributiva e igualdade, independentemente de ser o tributo real ou pessoal.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Atualizado em 11 de maio de 2009 11:43


O STF e o IPTU progressivo antes da EC 29/00 - possível e relevante viragem jurisprudencial no excelso pretório

Consequências relevantes: resgate das igualdade formal e material e justiça social em relação aos contribuintes; mitigação das dificuldades financeiras dos municípios, aprimorando o nosso ainda frágil pacto federativo

Gustavo Hasselamnn*

1 - Introdução - os julgamentos da corte suprema que prenunciam a viragem jurisprudencial

Os administrados, notadamente os municipalistas e os contribuintes, acompanharam, com muito entusiasmo, em junho de 2008, o voto - vista do Ministro Eros Grau, no RE 562045 (clique aqui), versando a possibilidade da progressividade das alíquotas do ITCD - Imposto estadual, incidente sobre Transmissão causa Mortis, tendo em vista os princípios da capacidade contributiva e igualdade, independentemente de ser o tributo real ou pessoal. Esse voto - vista inaugurou divergência com o voto do Relator, Ministro Ricardo Lewnadowsk. Embora a matéria debatida no caso seja de interesse direto dos Estados membros, o reflexo na progressividade do IPTU, mesmo antes da EC 29/00 (clique aqui), é inevitável e já se verifica, como adiante demonstrado.

O julgamento foi interrompido com um pedido de vista do Ministro Carlos Britto, quando já tinham sido colhidos os votos, na esteira do proferido no voto - vista do ministro Eros Grau, dos Ministros Carlo Alberto Direito, Carmem Lucia e Joaquim Barbosa. O pedido de vista do Ministro Carlos Britto, a par do seu interesse em aprofundar os estudos sobre o tema, decorreu, inclusive, da ponderação da Ministra Carmem Lucia, no sentido de que esse julgamento seria histórico, posto que implicaria em substancial modificação na orientação até então prevalecente na Corte.

Insta salientar que, nessa assentada, o Ministro Marco Aurélio, cujo voto ainda não foi proferido, externou sua posição na senda do voto - vista do Min Eros Grau, assinalando que, tocante ao IPTU, nos julgamentos de turma, já vinha ele, o Ministro Marco Aurélio, adotando entendimento contrário ao enunciado da súmula 668 (clique aqui) da Corte, que admite a progressividade do IPTU apenas após a edição da EC 29/00. Esse entendimento do ilustre Ministro Marco Aurélio, está escudado, sobretudo, no princípio da capacidade contributiva, incidente seja nos caso de impostos pessoais, seja no de reais.

Esse julgamento, ainda parcial, mas com o prenúncio de que vingará a tese divergente inaugurada com voto-vista do Ministro Eros, terá, e já está tendo, reflexo na vetusta, embora, até o momento dirimida pela súmula 668, discussão sobre a possibilidade da progressividade do IPTU mesmo antes da edição da EC 29/00.

Tanto isso é verdade que, em março p. passado, o STF, através do seu plenário, no AI 712743 (clique aqui), da relatoria da Ministra Ellen Gracie, reconheceu a repercussão geral, convertendo o AI em RE, cujo tema de fundo é a possibilidade da progressividade do IPTU antes da EC 29/00.

De tudo isso se pode inferir que o assunto em questão ainda não está pacificado, podendo ocorrer a alvissareira revisão, com a revogação da súmula 668 do STF, da jurisprudência do Excelso Pretório, o que, a par de fazer coro com as melhores doutrina e jurisprudência pátrias, que de há muito vêm trilhando o novel caminho ora descortinado, resgatará, ou ao menos abrandará, a higidez dos princípios da capacidade contributiva e igualdade formal e material, sem embargos do princípio federativo e os postulados da proporcionalidade e razoabilidade, com as conseqüências prática de permitir aos municípios o ingresso de tributo sabidamente devido (IPTU progressivo antes da EC 29/00), fazendo frente às sérias dificuldades com que sempre se depararam e, agora, em especial, em virtude da grave crise que assola o mundo, que repercutiu, inclusive, na redução recente do FPM que lhes era devido.

Sem sombra de dúvidas, o assunto interessa, outrossim, aos Estados membros, como antes demonstrados, também fragilizados, ainda que menos do que os municípios, num sistema federativo em que a mola mestra se traduz no seguinte: para a União tudo ou quase tudo; para os Estados pouca coisa e, por fim, para os Municípios nada ou quase nada.

2 - Considerações preliminares filosóficas, jus - filosóficas e dogmáticas

Vivemos em nosso País, na senda das demais democracias ocidentais, uma quadra muito singular e especial, em que se desvela a centralidade do direito Constitucional e o ingente prestígio das cortes constitucionais.

Superado, ao menos em grande medida, o embate entre positivismo e jus - naturalismo, o direito passa a ter um caráter crítico e emancipador, operando, ou devendo operar, profundas mudanças na realidade social.

Embora ainda subsistam fortes pressões neo - positivistas, afeitas a uma dogmática constitucional conservadora e atrelada a razões de estado, consoante assinalado pelo jurista Clémerson Merlin Cléve, em Revista de Direito Constitucional e Internacional, 2006, vol. 54, o contraponto emerge, segundo o mesmo Autor, de uma dogmática constitucional emancipadora, mediante a qual a jurisdição deve concretizar e materializar, com máxima efetividade, os direitos individuais e sociais, realizando as promessas ainda não cumpridas, em grande medida, de um Estado que se pretende Democrático e de Direito, encartadas e extraídas da carta política de 1988.

O STF, como guardião maior da CF (clique aqui), vem, a olhos vistos, com o emprego de uma autêntica hermenêutica filosófica e da faticidade, nas pegadas dos filósofos Heidegger e Gadamer, criando e construindo um direito que melhor atenda aos reclamos da sofrida sociedade brasileira. Nesse diapasão, não têm sido poucas as intervenções do STF na construção de um direito que melhor socorra e assista a um país ainda periférico como o nosso, a exemplo dos julgados relativos à fidelidade partidária, evolução dos institutos do mandado de injunção e da ADPF, admissão da progressão de regime em crimes hediondo, dentre outros avanços em matéria penal, intervenção em lei orçamentária, regulamentação do uso de algemas, etc., etc., etc.

Chama-se isso, para alguns, de ativismo judicial. Entendemos, depois de muita reflexão que, se deixarmos de lado os absurdos da escola francesa da exegese, bem assim as doutrinas positivistas e neo - positivistas, o juiz sempre e a todo momento, sobretudo em matéria constitucional (que trabalha, em larga medida, com princípios e modelos jurídicos abertos e plásticos), cria, a partir do texto, a norma jurídica para os casos concretos, mesmo em se tratando de processos objetivos no STF. Nesse sentido, cabe referir a um tradicional trabalho do jurista Mauro Cappelletti, intitulado "Juízes Legisladores", 1999, Ed Sergio Fabris.

Pensamos, e não estamos sós nesse mister, que o STF, à míngua da atuação do legislativo, como no caso do mandado de injunção, tratando-se de direitos fundamentais e obrando de forma razoável e proporcional, deve, como tem feito, intervir sim, suprindo as omissões do legislativo e executivo, sem que com isso se possa falar, em sentido pejorativo e em detrimento do princípio da separação de poderes (que merece uma nova leitura nos dias que correm), de ativismo judicial.

Pois bem. Em tema de filosofia, com flagrante imbricamento na filosofia do direito, sem desviarmos muito do foco do presente trabalho, cabem as considerações adiante expendidas.

De fora parte a metafísica tradicional, assentada nos binômios matéria/forma, essênciasubstância, ente/ser, essência/existência, essencialismo/nominalismo etc, vale trazer a lume os grandes achados da filosofia da linguagem e da hermenêutica filosófica, que muito servem a um direito crítico e emancipador, na esteira do pensamento de Wittgenstein, Heidegger e Gadamer.

No campo da linguagem, sem embargo da sua categorização, ao longo da história, por importantes filósofos, seja como co - natural à idéia ou pensamento, seja como instrumento do pensamento (Platão e Hobbes), seja como convenção (para a filosofia analítica), não se pode negar, com arrimo em Heidegger e Gadamer (respectivamente, em Ser e Tempo e Verdade e Método), que a linguagem é um modo de ser humano, vale dizer, é um existencial humano, ou ainda, é com ela - a maior e mais importante forma de comunicação simbólica - que nos tornamos humanos.

Vale transcrever as seguintes lições dos grandes filósofos Heidegger e Hegel;

"As palavras e a linguagem não constituem cápsulas, em que as coisas são empacotadas para comércio de quem fala e escreve. É na palavra, na linguagem, que as coisas chegam a ser e são." (Heidegger, M. Introdução à metafísica. Rio, 19969. p 44)

"A linguagem nos dá às sensações e intenções uma segunda existência mais alta do que imediata, uma existência universal, que tem vigor no domínio da representação." (Hegel, G W F, Enc. P. 459)

Ademais, muito embora sua indiscutível e indispensável importância para a condição humana, ela, a linguagem, possui imperfeições e limites, ensejando, ao mais das vezes, dúvidas, contradições, paradoxos, melhor dizendo, interpretações variadas. Daí porque, ao que parece, os grandes humanistas, como Sócrates e Cristo, nada escreveram, mas tiveram seus ensinamentos transmitidos por Platão e pelos apóstolos, ainda assim, nesse último caso, mediante parábolas e metáforas.

De outra parte, salta aos olhos que a linguagem é um objeto histórico - cultural, sujeito, portanto, às vicissitudes e condições de tempo e lugar.

E aqui uma consideração relevante e pertinente para o tema em apreço: o direito como fenômeno sócio - cultural, bem assim a sua ciência, se faz pela e na linguagem. Não há direito nem ciência do direito fora da linguagem.

Ainda em tema de filosofia do direito, cabe aludir a dois grandes juristas pátrios, o professor Tércio Ferraz e o saudoso professor J.J Calmon de Passos.

O primeiro, em sua obra Introdução ao Estudo do Direito, 4ª Ed, pags. 35 a 38, aponta a incapacidade da linguagem definir a essência das coisas, para os essencialistas, bem como para os que vêem a linguagem como convenção - que se propõem a investigar os usos lingüísticos, nos aspectos sintático, semântico e pragmático (semiótica) -, a absoluta impossibilidade de definir-se as coisas do mundo com precisão. Ele, primeiramente, alude a objetos palpáveis e tangíveis, como mesa, casa, etc., para, ao depois, assinalar a dificuldade maior e insuperável quando se trata de conceitos abertos e indeterminados, tais como direito, justiça, interesse público, etc.

Já o professor Calmon, em suas aulas que tivemos a honra de assistir na graduação e pós, na UFBA, dizia que as palavras não transformam, só por si, a realidade. Dizia ele, por exemplo, que não basta a Constituição Federal aludir à cidadania que, num passe de mágica, nos tornaremos cidadãos.

Na esteira do professor Calmon, dizemos nós que assiste razão tanto a Konrade Hesse, com a sua "A força normativa da Constituição", como a Lassalle, esse com temperamentos, na medida em que a constituição tem sim força normativa, que deve ser alcançada na luta político - jurídica, não sendo um mero pedaço de papel como dizia Lassallle, mas, todavia, com Lassalle, a correlação dos fatores reais de poder interferem também na concretização das normas constitucionais.

Nesse particular, vale referir o ilustre professor Marcelo Neves, em sua "A Constitucionalização Simbólica", 2007, para quem, em suma, a falta de eficácia das normas constitucionais no Brasil decorrem, seja da corrupção sistêmica, seja do abuso na edição de emendas constitucionais.

Em qualquer caso, é fato que a linguagem da Constituição, além de não alcançar essenciais sociais, é impotente, per si, para modificar a realidade social.

No campo da hermenêutica filosófica, a figura de Gadamer, inspirado no seu mestre Hedegger, assume, sobretudo para uma hermenêutica constitucional construtiva e emancipadora, tão cara e importante para os países periféricos como o nosso.

Gadamer retoma os estudos da hermenêutica tradicional, que era pautada, basicamente, na literalidade e autoridade dos textos religiosos e bíblicos, para avançar, na trilha de Heidegger, para a hermenêutica da faticidade.

Segundo Heidegger, na sua ontologia do ser, o homem, decaído no mundo, é tocado pelos demais objetos que com ele se deparam, fazendo - o compreendê-los. Daí a grande lição: o homem, mesmo antes de entender ou interpretar, compreende, vale dizer, tem uma primeira impressão, que pode ser modificada por reflexão posterior mais atenta ou acurada.

Por outro lado, no processo de compreensão, o homem não parte de um marco zero: ele já traz consigo uma pré - compreensão, oriunda da tradição, de suas experiências pretéritas (vigor de tecido, segundo Heidegger), daí a impossibilidade da tão decantada, pelo positivismo, neutralidade axiológica nas ciências do espírito, como o direito.

A hermenêutica da faticidade ou filosófica se opõe flagrantemente ao método dedutivo da modernidade, que tanto inspirou a escola de exegese, bem assim os vários tipos de positivismos, que significava - tal método dedutivo, em suma, a partir da vontade da lei ou do legislador, sem distinguir texto de norma - a aplicação pelo o julgador, silogisticamente, do texto normativo aos casos concretos. Isso não impedia, devido a complexidade e dinâmica da realidade social, uma série de decisionismos e arbitrariedades pelos julgadores.

O professor, jurista e pós - doutor pela universidade de Coimbra, Lenio Luiz Streck, em magistral obra por ele organizada, intitulada "Olhares Hermenêuticos sobre o Direito, em busca de sentido para os caminhos do jurista", repudiando a ética do discurso de Habermas e Günter, reverencia sobremodo a hermenêutica da faticidade de Hedegger e Gadamer, apontando o item que é percorrido pelo jurista crítico na sua lida diária, a saber: o operador do direito primeiro compreende, depois interpreta e aplicar simultaneamente a norma, extraída do texto, ao caso concreto, verbis:

"Para interpretar, necessitamos compreender; para compreender, temos que ter uma pré - compreensão, constituída de estrutura prévia - que se funda essencialmente em uma prévia visão (vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgrif) - que já une todas as partes do sistema, como bem ressaltou Gadamer." (ob cit., pags. 327 e segs.).

Na mesma obra, o Professor Lenio, aponta que é incindível a interpretação da aplicação do direito. Vê-se, pois, que a hermenêutica da faticidade, rompe, efetivamente com o método dedutivo, silogístico e positivista da modernidade, com certeza para melhor, na medida em que, dentro dos limites mínimos do texto, libera o operador do direito para criar a norma para o caso concreto, a partir deste, dentro deste, e com este, promovendo uma maior justiça social.

Pensamos que, dentre as correntes epistemológicas da filosofia do direito, a que melhor se coaduna com a atende à hermenêutica, inclusive a constitucional, emancipadora, da faticidade e filosófica, é teoria tridimensional do direito, que teve, e tem, no saudoso professor Miguel Realle, um dos seus maiores corifeu. Com efeito, o direito, como entendemos positivistas, não pode ser visto somente como norma, nem tampouco como fato social puro, a exemplo da escola histórica radical. Ele é, efetivamente, fato, valor e norma.

Ainda nesse particular, o ilustre jurista e Ministro do STF, Eros Grau, em seu "Direito Posto, o Direito Pressuposto e a Doutrina Efetiva do Direito" (em "O que é filosofia", Ed Manole, 2004, pags. 33 e segs.), aponta, trazendo à colação a dialética hegeliana e na esteira do professor Realle, a necessidade de considerar na análise do direito não só o aspecto normativo, como também os aspectos social, político e axiológico, que pululam na realidade da vida.

3 - A orientação do STF consubstanciada na súmula 668

Como diziam os filósofos pré - socráticos, nada vem do nada ou do acaso. O que, efetivamente, deu ensejo ao enunciado da citada súmula?

No cotejo exegético dos artigos 145, p 1º, 156, p. 1º e 182, cap. II, Título VII, da CF - prevendo textualmente, respectivamente, o respeito, no caso da progressividade dos impostos (o STF já admite, hoje, dos tributos em geral), à capacidade contributiva do contribuinte, e os outros dois artigos versando a possibilidade do IPTU apenas para realizar a função social da propriedade - o STF firmou o entendimento, com base na tese defendida pelo ex - Ministro Moreira Alves, civilista por excelência, no RE 153.771-0, inspirado na doutrina Italiana, segundo o qual a progressividade não condiz com os impostos reais.

Muitas vozes e magistrados, desde o início, se levantaram contra esse entendimento, porfiando a proeminência e a supremacia do princípio da capacidade contributiva quando cotejado com uma simples, formal e importada distinção, consubstanciada numa regra e não em um princípio, frise-se, entre impostos reais e pessoais (art. 145, p. 1º, da CF). Nesse sentido, confira-se Marco Aurélio Greco. IPTU e Função Social da Propriedade, Revista de Direito Tributário, SP, nº 52, PP 110 -121, 1990; Sacha Calmon Navarro, em Manual de Direito Tributário, 2ª Ed Rio de Janeiro, Forense, 2002; dentre outros, como Geraldo Ataliba, Mizabel Derzi, Hugo de Brito Machado etc., etc.

Adveio a EC 29/00, no particular, ao nosso sentir, dotada de caráter meramente expletivo - na linha de sufragar uma progressividade que sempre foi permitida pelo constituinte originário, conforme, aliás, sempre vem decidindo o Ministro Marco Aurélio nas Turmas e, com certeza, será agora, no citado julgamento plenário, coerente com sua posição de sempre -, que permitiu a progressividade das alíquotas do IPTU em razão do valor do imóvel, restaurando o império dos princípios da capacidade contributiva e da igualdade, formal e material.

Ocorre que o STF, interpretando dita EC, assentou que a progressividade só poderia ocorrer posteriormente a ela, tese contra a qual sempre divergiu o Min Marco Aurélio, o que deu ensejo à edição da súmula 668.

Em primeiro lugar, cabe pontificar que as nossas doutrina e jurisprudência sempre fizeram a distinção entre regras e princípios, estabelecendo, na seara constitucional (embora não haja hierarquia dogmática entre um e outro) uma hierarquia axiológica entre os princípios em relação às regras. Esse entendimento, se não pacífico, é, em nosso direito, majoritário (confira-se Gilmar Mendes e outros, apud Gomes Canotilho, em Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2007, pag. 32). Pois bem

No caso, a citada súmula do STF, ao albergar a progressividade apenas depois da EC 29/00, acabou por prestigiar uma regra, a que estabelece a distinção entre tributos reais e pessoais, em detrimento do princípio da capacidade contributiva e, diretamente ou por arrastamento, dos princípios da igualdade, do pacto federativo, da proporcionalidade (nas suas três vertentes: em sentido estrito, adequação e necessidade), bem assim em desfavor da justiça distributiva, tão decantada pelo estagirita Aristóteles.

4 - A possível viragem jurisprudencial do STJ

Como mencionado, o STF - ao admitir a repercussão geral no AI 712743, convertido em RE, tendo em conta, também, o RE 562045, cuja divergência, em matéria semelhante, foi inaugurada pelo Ministro Eros Grau, com votos na mesma linha de mais 3 Ministros, sendo certo que o Ministro Marco Aurélio já tem posição firmada no mesmo sentido, o que totalizaria 5 votos a favor da progressividade do ITCD e, via de conseqüência, do IPTU, mesmo antes da EC 29/00, o que implicará na revogação da súmula 668 -, poderá rever, em decisão histórica, jurisprudência nele já sedimentada.

Antes de mais nada, se cogitássemos de um conflito entre uma regra, vale dizer o art. 145, p. 1º, no que distingue imposto pessoal de real, com os citados princípios constitucionais, em especial o da capacidade contributiva, estes obviamente, preponderariam sobre aquela.

Ocorre que, em obséquio às considerações filosóficas e jus - filosóficas supra, na esteira de uma hermenêutica constitucional emancipadora e da faticidade - que vê na linguagem não um instrumento capaz de alcançar a essência das coisas ou de modificá-las (atentando contra a ordem natural das coisas), mas um modo de ser humano (Heidegger), indispensável á condição humana e ao direito -, forçosa seria a conclusão de que não se deve distinguir imposto real de pessoal.

Com efeito, a diferença entre imposto real e pessoal decorre de uma importação imperfeita de modelo jurídico estrangeiro, introduzido, com a devida vênia, por argumento de autoridade do ilustre Ministro Moreira Alves. Essa distinção não encontra paralelo no direito brasileiro.

Deveras, se ficarmos no plano da linguagem, consideradas as considerações acima, pode - se divisar alguma essência ou semântica nas expressões imposto real e pessoal, à luz do nosso direito? A resposta, ao nosso ver, é, desenganadamente, negativa. Em primeiro lugar, tais expressões, além de conceituais, plurissignificativas, indeterminadas, não se referem a qualquer coisa tangível no mundo da vida. Aludem a algum conceito, apenas conceito, que poderia ser extraído do nosso direito positivo. Todavia, nele elas não podem ser inferidas.

Essa expressão, imposto pessoal, encontradiça no art. 145, p 1º, da CF, estaria, se fosse o caso, se reportando à natureza jurídica de um tributo, que na verdade é uma idéia, um conceito, que precisaria existir, ao menos no plano infraconstitucional.

Ocorre que não se pode encontrar tal natureza jurídica dos impostos - a saber, imposto real - nem na CF, nem no CTN (clique aqui) ou em qualquer outro diploma legal. O que correu foi uma importação, inadequada e alheia ao método fenomenológico de interpretação, velho vezo cultural nosso, que nada tem a ver com a realidade brasileira e, o que é pior, briga com ela frontalmente, na medida em que iguala os desiguais, atenta contra a justiça distributiva aristotélica e contra o pacto federativo, neste último caos ao, mais uma vez, desprestigiar o município no concerto da Federação brasileira.

Por outro lado, o efeito do imposto, no caso o IPTU, perseguir o imóvel nas mãos de quem quer que seja, é apenas um efeito, que não tem o condão de emprestar-lhe natureza jurídica diversa.

A única alusão que podemos identificar como pedra de toque dos tributos em geral e sobre sua natureza jurídica está, dentre outras estipulações do CTN, na definição de tributo inscrita no art. 3º. Já o art. 4º estabelece a natureza jurídica do tributo depende do fato gerador e da respectiva obrigação tributária.

Tais noções, a saber, natureza jurídica, fato gerador, obrigação tributária, relação jurídica tributária, etc., são conceitos, idéias, extraídos da teoria geral do direito, sem correspondência na realidade fenomênica.

Em tais noções não se divisa a ideai de impostos ou tributos reais ou pessoais, mesmo que possível fosse perquiri sobre suas essências ou semântica

Como cediço, a constituição traça a regra matriz dos tributos, cabendo ao legislador complementar definir os seus diversos elementos, inclusive o seu fato gerador e, por fim, aos entes federados a competência de instituí-los

Na esteira da CF, o que se pode divisar, no campo da linguagem, de concreto ou tangível, com correspondência na realidade da vida, são os fatos eleitos pelo constituinte como significativos de riqueza e, portanto, passíveis de tributação: prestação de serviços, propriedade, renda, etc. No caso do IPTU, segundo o art. 156, I, o elemento material da regra matriz constitucional é "a propriedade predial e territorial urbana".

Nada, em nosso direito autoriza, assim, tal distinção entre tributos reais.

De outra banda, não há relação entre pessoa e coisa. Sempre, ao fim e ao cabo, o tributo recai numa pessoa, de existência real ou ideal. Nunca a coisa é sujeito da relação jurídica.

São essas as lições de Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito. Armênio Amado, 1974, pag. 190, preleciona:

"Também o direito sobre uma coisa é um direito em face de pessoas. Quando, para manter a distinção entre direito real e pessoal, se define aquele como o direito de um indivíduo a dispor por qualquer forma de uma coisa determinada, perde-se de vista que aquele direito apenas consiste em que os outros indivíduos são juridicamente obrigados a suportar esta disposição, quer dizer: a não impedir ou por qualquer forma dificultar; que, portanto, o jus in REM é também um jus in persona. De primária importância é a relação entre indivíduos"...

Assim, com os contributos da filosofia e da dogmática podemos, sem precisarmos cogitar, em linha de princípio, de um conflito real entre regra e princípio no caso em exame, afirmar que tal distinção entre imposto pessoal e pessoal não se sustenta.

Por outro lado, como antes mencionado, a distinção em tela, em princípio, segundo jurisprudência do STF, teria que ser extraída não da lei infraconstitucional, mas sim do próprio texto da CF, na medida em que o Excelso Pretório a todo tempo pontifica que não se deve interpretar a Carta a partir das leis que lhe são submetidas.

Não é demais lembrar, com o Ministro Gilmar Mendes (ob cit., pag. 24), que, em rigor de verdade, inexiste a figura do legislador racional, pois nas leis, como decorrentes de produção humana contêm, pululam contradições, paradoxos, antinomias, cabendo ao intérprete saná-los.

Destarte, no art. 145, p. 1º pode - se divisar qualquer coisa, menos a distinção entre imposto real e pessoal, que teria sido importada, repita-se, equivocadamente, do Direito italiano.

Poder-se-ia sim, sem desassombro, em homenagem aos métodos de interpretação constitucional da unidade da constituição e da máxima efetividade, que o art. 145, p. 1º, ao referir a imposto com caráter pessoal, estaria outorgando ao legislador constitucional um mandado de otimização do princípio da igualdade ou da capacidade contributiva, no sentido de, tendo em conta as condições próprias do contribuinte, em especial econômicas, proceder às devidas distinções entre eles.

Demais disso, a hermenêutica da faticidade, para qual cada caso, per si, tem relevância e peculiaridades, está a permitir agora que o STF reveja sua posição e, consequentemente, acabe por revogar a súmula 668, o que, em qualquer caso, mesmo se desconsiderássemos a insubsistência de tal distinção, culminaria por reverenciar, como o fez o Ministro Eros no citado voto - vista, os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, que devem prevalecer sobre uma simples regra que parece tentar, à primeira e enganosa vista, distinguir imposto rela de pessoal.

O resgate do pacto federativo, bastante estiolado sobretudo em detrimento dos Municípios, onde, de fato, os administrados vivem e moram, também está nas mãos dos ilustres Ministros do STF, principalmente considerando os efeitos da crise que a todos assolam, inclusive e principalmente aos munícipes.

No caso em exame, não fosse a hermenêutica da faticidade que - ao contrário do método dedutivo e, positivista e silogístico - permite, a partir da compreensão, interpretação/aplicação do direito (sempre interpretação de direito e fatos conjuntamente), o entendimento encerrado na citada súmula 668 ficaria engessado, envernizado, nunca passível de revisitação.

A hermenêutica da faticidade, segundo professor Lenio, permite, pode, inclusive, quebrar os rigores das súmulas vinculantes, do que no caso não se cuida:

"Assim basta que as interpretações adjudicadas a cada caso venham acompanhadas da necessária justificação (motivação). Dizendo de outro modo: a súmula vinculante é também um texto jurídico e, por isso, não acarreta maiores novidades no plano hermenêutico" (Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica, 2005, Ed Unisinos, pag. 176)

No julgamento do citado RE, o Ministro Eros, embora, implícita ou explicitamente, admita a diferença entre imposto real e pessoal, realça e faz valer, par divergir do Relator, a proeminência dos princípios da igualdade e capacidade contributiva.

5 - Conclusão

Assim, à guisa de conclusão, adstritos às premissas acima apontadas, sobretudo porque não divisamos diferença entre tributos reais e pessoais, bem assim ao entendimento de que os princípios da igualdade, capacidade contributiva devem prevalecer se conflitantes com a suposta regra inscrita no art 145, p 1º, da CF, como assim tendo em conta os postulados da proporcionalidade, em suas três matizes, e razoabilidade, e o ideário aristotélico da justiça distributiva, entendemos que o STF tem uma oportunidade ímpar de fazer justiça social, mitigando a frágil posição dos municípios na federação, tudo isso ao rever e revogar, se for o caso, a súmula 668, em qualquer caso permitindo a cobrança do IPTU progressivo, mesmo antes da EC 29/00.

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*Procurador do município do Salvador/BA






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