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Asas da Liberdade

Em muitas vezes, para mim, estar num avião voando é conhecer bem de perto a liberdade e viver as descobertas e criações que essa parceria com a liberdade me oferece.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Atualizado em 24 de novembro de 2009 11:30


Asas da Liberdade

Edson Vidigal*

Em muitas vezes, para mim, estar num avião voando é conhecer bem de perto a liberdade e viver as descobertas e criações que essa parceria com a liberdade me oferece.

Já nem me lembro da primeira vez que entrei num avião no rumo de algum lugar.

Por muitos anos, desde menino, sabia de cor e salteado nome por nome as estações e as breves paradas do trem que gastava um dia inteiro entre São Luis e Teresina, eu passageiro embarcado em Caxias, ou em São Luis no trem para Teresina.

No Alto da Siriema, onde os meninos com baladeira no pescoço como se fosse um crachá iam caçar passarinhos, pousavam os aviões do Loide Aéreo, da Aeronorte, depois da Real Aerovias, enfim os da Varig.

Eu corria admirado querendo entender como aqueles peixes prateados de barbatanas enormes engoliam tanta gente e depois voavam.

Já frequentava a escola, mas lá não havia ninguém que me explicasse um porque sequer, um porque ao menos que fosse para eu entender como e porque os aviões voavam.

As escolas para crianças ainda hoje são muito assim, que nem os governos - não estão aptas ou não gostam de dar explicações.

Naquela ansiedade querendo entender só me restava ir toda tarde, um pouco depois da hora do almoço, ao Alto da Siriema ver a descida e a subida dos aviões. Algumas vezes falei às pessoas que saíam e com as pessoas que entravam no avião e, incrédulo, vi que elas falavam!

Com um canivete e talo de buriti fiz um aviãozinho com hélice, mas quando ventava ele escorregava para trás. Passaram-se muitos anos até eu saber que a hélice do avião gira em sentido contrário.

De outra feita, em férias na casa da minha mãe em Coroatá, sim, eu morava em Caxias sob as vistas do meu pai na casa de Dona Ló e seu Zeca Baiano, no Beco do Urubu, de outra feita, nas férias em Coroatá, construí um avião que me coubesse.

Fazia um esforço mental enorme e a minha invenção não voava. Ninguém me disse na escola que para voar tinha que ser um avião de verdade, com asas, rodas, hélice e motor.

Assim que pude, já ganhando como jornalista, me dava ao luxo de morar em São Luis, onde estudava e fazia agitação estudantil, e ao mesmo tempo exercer mandato de Vereador da Oposição em Caxias. Chegava por cima, falava na Câmara o que bem entendia e depois estufado de razões no lado esquerdo do peito voltava para São Luís de avião.

Nem havia completado 20 anos de idade quando o golpe militar de 1964, por seus asseclas, me cassou o mandato e me prendeu, carimbando-me como perigoso elemento subversivo.

Acho que vem daqueles tempos da infância e da militância política nascente essa descoberta desse meu usufruir pleno da liberdade nas viagens de avião.

Já nem sei quanto em milhões de milhas viajei, mas me lembro bem dos detalhes de cada momento bom e dos curtos instantes maus de cada viagem que vivi e passei pelo mundo afora.

Agora mesmo estou indo de Brasília para São Paulo com volta marcada para ainda hoje. Ontem eu estava em São Luís e amanhã novamente.

Há uma senhora ao meu lado, circunspecta em seu par de óculos de grau, lendo com a maior atenção um calhamaço e marcando trechos com um lápis.

Tiro do meu olhar um anzol de curiosidade e fisgo no calhamaço dela um conto, alguma ficção, ou não, que ela está lendo.

O calhamaço deve ser o original de um livro que ela vai levar a algum editor, certamente, ou é ela mesma a editora ou aquela pessoa severa que aprova ou recusa os originais que, ainda assim, teimam em serem livros?

Olha - você não imagina o quanto essa privacidade de uma poltrona no corredor ou na janela de um avião sustenta as reflexões nessa liberdade até soberba de voar, voar, voar. De não ter asas nos braços e ainda assim voar.

Obrigado, Alberto! Alberto Santos Dumont.

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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA





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