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A Resolução 75 do CNJ e a importância da Filosofia do Direito

Fernando J. Armando Ribeiro

A crise de paradigmas que acompanha a própria evolução histórica do Direito na modernidade, enquanto rito de superação histórica, fez-se sumamente aguda no século XX - e mais especificamente no após Segunda Guerra - onde as soluções propostas pelo Estado de Direito viram-se defrontar com as alarmantes disparidades produzidas por tantas de suas próprias bases de sustentação.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Atualizado em 6 de janeiro de 2010 11:14


A Resolução 75 do CNJ e a importância da Filosofia do Direito

Fernando J. Armando Ribeiro*

A crise de paradigmas que acompanha a própria evolução histórica do Direito na modernidade, enquanto rito de superação histórica, fez-se sumamente aguda no século XX - e mais especificamente no após Segunda Guerra - onde as soluções propostas pelo Estado de Direito viram-se defrontar com as alarmantes disparidades produzidas por tantas de suas próprias bases de sustentação. Assim em um tempo de culto à razão e à produção do conhecimento científico, fizeram-se os juristas muitas vezes reféns de açodado tecnicismo, legando a um quase esquecimento o complexo e sofisticado arcabouço de sentidos que estrutura e conforma o Direito como ciência social e humana.

Assim, é com recobrada alegria que vemos a edição da Resolução 75 do CNJ (clique aqui). Esta, ao dispor sobre a uniformização de regras para a realização de concursos públicos para a magistratura nacional, veio a inserir como disciplinas obrigatórias das provas subjetivas a Filosofia do Direito, a Teoria Geral do Direito, a Teoria Política, a Hermenêutica e a Sociologia jurídica. A elevação das denominadas disciplinas zetéticas ao nicho de matérias obrigatórias do universo dos concursos públicos pode acarretar certas indagações, mas penso serem muito maiores as esperanças que esta renovação propicia. O esgotamento dos postulados positivistas e cientificistas dos séculos XIX e XX exige dos juristas o afastamento de toda concepção que possa ver no Direito um mero artifício técnico ou abstrato, isolado da sociedade e da história, infenso a questionamentos e problematizações.

Aristóteles dizia que a Filosofia começou com a perplexidade (thauma), isto é, com a atitude de assombro do homem perante a realidade, o que o leva a problematizá-la (aporia), iniciando por buscar a unidade na multiplicidade e a permanência na mudança até se atingir a euporia (solução).

Reconhecer a importância das disciplinas teóricas para o chamado operador jurídico é afastar um dos legados mais obtusos da tradição positivista. Esta, ao se estabelecer enquanto discurso de clarificação e cientificização do jurídico, em homenagem à construção epistemológica prevalente nas ciências naturais e exatas, esquecia-se de problematizar os seus próprios pressupostos e pré-suposições. Daí o seu afastamento da filosofia que, como ensina Joaquim Carlos Salgado, grande jusfilósofo mineiro, não é uma reflexão sobre a realidade imediatamente dada à consciência, mas uma reflexão sobre a realidade mediatizada pelo conhecimento científico. A filosofia é, nesse sentido, uma reflexão a partir do conhecimento científico do seu tempo, sendo intrínseca e necessariamente crítica.

Retornar à filosofia e ao nicho de disciplinas que lhe são conexas representa, a um só tempo, rechaçar o dogmatismo que, sob o argumento de garantir segurança e certeza, deixava de lado elementos insuprimíveis à manifestação do Direito e à própria condição humana, bem como assegurar a necessária inserção de toda produção cultural humana no mundo da vida. Acima de tudo, busca-se assegurar o fundamental predicado humano, essencialmente humano, de pensar.

Apesar de invisível, o pensamento tem força ingente sobre a vivência humana. Sócrates, um dos precursores do pensamento filosófico na Grécia antiga, chegou mesmo a compará-lo com os ventos. Apesar de invisíveis possuem uma força manifesta para todos, e sentimos sempre a sua aproximação e o seu impacto. Ademais, a história nos tem demonstrado a força das idéias e do pensamento como instrumento de transformação da realidade. Certamente, as revoluções modernas das quais resultaria a criação do Estado de Direito não teriam sido possíveis sem a força das idéias de Jean Jaques Rousseau, Montesquieu e Kant, assim como as transformações criadoras do chamado Estado Social, do qual brotariam os direitos sociais não teriam sido possíveis sem o impacto do pensamento socialista e da doutrina social da Igreja. É que, como nunca cansava de advertir o notável advogado Geraldo Ataliba, "nada mais prático do que uma boa teoria".

Com a rresolução 75 o CNJ vem a conectar-se a todo um movimento que se tem consagrado à laboriosa tarefa de repensar não apenas as possibilidades do fazer científico jurídico, o método e a práxis jurídica, como também a problematizar a própria questão do fundamento do Direito. Tem-se a partir daí a possibilidade de uma construção científico-jurídica que se distancie da abstração da pura epistemologia de feições positivistas, abrace a concretude da faticidade histórica, e realize-se como "acontecer" (Ereignen) da "problemático-judicativa realização concreta do Direito", na síntese feliz de Castanheira Neves.

O esquecimento da filosofia acarreta, como conseqüência direta o esquecimento hermenêutico, sendo responsável pelo déficit de racionalidade, eficácia e coerência que durante tanto tempo atingiu o Direito brasileiro, tornando por vezes a própria Constituição refém das aporias advindas da metódica das velhas teorias da interpretação. São visões abstracionistas e objetivísticas que terminam por continuar justificando conceitos como o de "normas constitucionais programáticas", identidade entre texto legal e norma e "vontade do legislador", dentre muitos outros exemplos.

O jurista que se esquece da filosofia esquece-se mesmo do fundamental, pois depois de Gadamer podemos dizer, sem nenhum exagero, que sem filosofia não há hermenêutica, e sem hermenêutica não há Direito, apenas textos!

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*Juiz Togado do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais; ; professor da PUC-Minas e Diretor do Departamento de Teoria do Direito do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais








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