dr. Pintassilgo

Araraquara

Inspirado pela minha visita ao sossego terapêutico de Ribeirão Bonito, o vigor enche minhas asas e novamente corto os céus do Estado bandeirante. Não sinto a molenga, talvez contagiado por esta terra, onde o que se faz é forjar ; terra de vocação para o trabalho e luta desde o período desbravador. E, claro, já pensando na figura pétrea do amado Diretor, com sua tez esculpida a formão, escondendo a ansiedade nas mãos dentro dos bolsos : - na certa, espera pos alvíssaras.

Sinto que o vento cessa ; o sol já manda um sinal de que hoje vai impor-se sem comiseração. Não reclamo, pois ainda romântico que sou, agradeço a ele por me presentear sempre com dois momentos sublimes : sua erguida e seu refugiar. Com efeito, aqueles que possuem o apanágio de se admirar diante dessa verdadeira festa da natureza sentem a grandeza da criação e do amor, a despeito da camada grossa de efeitos especiais de que nos recobrem hoje. Ah ! Quão pobres nossas vidas !

Quando sinto sua força, e apurando meu sentido de direção, vejo ao longe Araraquara. Sim ! Só pode ser. Onde mais ele brilharia tão intenso e não teria nenhum pudor de amainar seu calor, senão em seu latíbulo ? Ah ! Araraquara, a Morada do Sol !

Será então devaneio que, nesta terra, Hélio, o Deus Sol, guarda seu carro, guiado por garanhões mágicos, reluzentes e cegantes, trazendo à reboque o lindo crepúsculo alaranjado ?

Quando reflito sobre o mito, penso na pobre figura de Faetonte, filho de Hélio. Este, orgulhoso de ter descoberto que possuía um herdeiro, permite que o filho guie seu carro ao menos uma vez. Por demais animado e cheio de ambição, Faetonte descontrola a imensa biga, espalhando fogo de juízo final nos céus ! Temendo o pior, Zeus o fulmina com um raio, restabelecendo a ordem que lhe convinha. Penso nisso. E reflito : - se minha missão é buscar a luz, símbolo da Verdade, devo fazê-la com esmero e parcimônia, para não sucumbir ao desvario. Pena que grande parte dos homens não possui o mesmo cuidado, arriscando-se – é o mal da soberba - ao mesmo destino de Faetonte. Ah... “dúbios archotes....”

Com o carro de Hélio ainda cruzando o firmamento, chego a Araraquara. Que missão aprazível ! Terra de escritores, artistas e também de personagens dos tempos rudes, antigos de fotos amareladas e bigodes fartos ; homens que andaram na história com coragem e galhardia !

A começar pelo seu fundador, Pedro José Neto. Por muito tempo considerado um foragido, veio a história riscar de seu pergaminho (ou seria melhor um caderno interminável ? ) essa pecha ! Na verdade, José Neto pagou o preço por desafiar desafetos poderosos, os coronéis que andavam (?) pelo Brasil. Sentindo um desfecho cruel a buscar sua vida, entra em fuga pelo interior do Estado. Ao romper o caudaloso rio Piracicaba, funda, tempos após, esta magnífica cidade.

E refletindo novamente sobre a dupla face dos homens (oh, sina minha!), sou informado por um adorador da terra que aqui Mário de Andrade, “em uma semana de rede e muito cigarro : 16 a 23 de dezembro” de 1926 deu à luz ao “Macunaíma”. Na Morada do Sol pungente, do lumaréu, eis que nasce o herói sombreado, alma malhada de dubiedade, sem um traço de pureza : onde não há matiz sequer de um caráter que possa situá-lo no Bem ou no Mal.

É possível ainda lobrigar uma luz rubra na história da cidade, tingida que fora pelo sangue dos sergipanos Brito, executados diante da vendada Justiça (como, aliás, são muitas!), retirados da delegacia e linchados em plena rua. Fato este que está merecendo um estudo histórico e apurado. Quando já se fazia quase uma década da proclamação da República, uma rixa monarquista tumultua a cidade, que na época contabilizava pouco mais de uma dezena de milhar de habitantes.

Porém, como em toda epopéia, obstáculos não poderiam deixar de impor-se. Neste caso, a grande muralha foi a pesada Hidra, aqui travestida de burocratismo. Em primeiro momento, fui impedido de alar pelo corredores do prédio do Fórum estadual. Foi montada uma verdadeira paliçada, impedindo minha despretenciosa entrada. Motivo : não queriam minha objetiva visão por ali. E pronto !

Ora, pensei, eis aí um dos problemas do Judiciário : - toldou-se a noção do que é res publica !

Ato contínuo, como me era ordenado caso tivesse algum óbice, entrei em contato com o grupo de secretárias que prestam serviço para nosso amantíssimo Diretor. Foi o que bastou. O agastamento foi findo graças à intervenção do nobre líder, combativo e sagaz, que pôs termo ao entrevero ao iluminar os que lá colocavam empecilho, explicando em detalhes a nobreza de minha missão, não sem antes, óbvio, de coarctar o já tão amesquinhado exercício de potestade.

Finda a arenga e conhecido o Fórum estadual, vou descansar minhas asas, e dar bicadas em água fresca. Escolho o belo jardim defronte a igreja, recheado de frondosas árvores. No silêncio da pacatez interiorana, sinto ouvir o barulho do trem a parar em Tutóia, carregado de sonhadores que buscam na estação final em Colômbia, no Rio Grande, seu futuro.

Mas como a fala é inestimável e não nego um colóquio, entro em longa conversa com um notável advogado : Dr. Miguel Tedde Neto. E seria este causídico, com nome de arcanjo, e com um quê de Migalhas, que me ajudaria nesta busca cervantesca.

Quis a cruel fortuna que este causídico pertinaz, amante do saber e do Direito, fosse privado de contemplar o deus Hélio ; de exercer seu saber na brancura das páginas das doutrinas e leis.

Mas diferente de Faetonte, que sucumbiu ao excesso da luz, Dr. Tedde Neto não deixou que sua ausência lhe ferisse o ânimo ; não se permitiu adentrar ao breu do Hades, para onde vão todos os homens de poucos brios. Não ! Amando o Direito e honrando sua vocação acima de tudo, agigantou-se.

De fato, ele não necessita da luz física, da clarividência óbvia. Dr. Tedde Neto tem luz própria ; tal qual o próprio sol. É um luminar da ciência jurídica. Uma luz que não vacila como a das velas acesas ante ao vento. Diante de sua inspiradora presença, vejo que minha busca da Verdade, da luz, não deve ser mirada na claridade de atos tão somente, mas na que reside ou por vezes se esconde no coração dos homens. E achei essa no coração e na pessoa do Dr. Miguel Tedde Neto.

Em sua gentileza, em seu saber.

E foi aqui, na Morada do Sol, onde a luz escolheu dormitar, que descobri que a centelha da “Verdade”, o lampejo que busco, não é visível aos olhos apenas. Proveniente do coração dos homens, é preciso também senti-la.


Lembrando como Mário de Andrade ultima seu "Macunaíma", e haurido do afortunado aprendizado que agora irá me guiar, repito, por hoje bem satisfeito, : “tem mais não”.

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