dr. Pintassilgo

Santo Amaro

Depois de tanto verde, passo a ver-te, oh maior cidade do Brasil. Sobrevoei canaviais, jabuticabeiras, ipês e rosas. Agora, minhas asas evitam choques com galhos de árvores contadas e abraçam letreiros e outdoors competitivos, que apagam a cinza fumaça que nem mais incomoda os nervos e pulmões de aço.


Nossa cidade mais cosmopolita, tantas vezes homenageada e cantada, faz de meus dizeres mero apêndice, ainda que fartamente dosados de boa-vontade. Mentes muito mais prodigiosas que a desta pequena ave canora souberam lhe dimensionar com versos, música ou prosa.


Desvendada pelas tantas pessoas que se juntaram, por todas as culturas que a formaram, fez-se de Vila metrópole, cheia de charmes ocultos, delirante, gigantesca obra sem começo nem fim. Com começo, mas sem fim (ainda!) faço desta minha pequena divagação uma tentativa de lhe desvendar.


Vejo São Paulo como a mulher trabalhadora, que cuida dos seus e de si. Sabe que é bela, mas o tempo lhe é urgente e inibe que se preocupe com o encaixe perfeito do batom nos lábios. Mas me não engana esse aparente desleixo, pois esta senhora, quando a lua exige sua vez de reinar, transforma-se em diversas personagens, díspares, e confunde quem a vê.

 

Chego em Santo Amaro cortando entre velhos e novíssimos edifícios e sobrevoando pessoas que nem mesmo notam aviões, muito menos notariam este pintassilgo.


Bairro que já foi uma cidade. Cidade de muitos nomes.


Nada mais representativo do gigantismo dessa representante malfadada “Aldeia Global” (e o professor Marshall McLuhan certamente, se estivesse vivo, escolheria São Paulo para ser o rosto de sua expressão máxima).


Santo Amaro, de tantos nomes, foi tragada pela Piratininga. A pena de Armando de Salles Oliveira, num decreto, fez a cidade, da noite para o dia, acordar um bairro.


Mas que nem por isso deixou de cultivar sua história, que pulsa e anda por suas pernas, que, por ter sido um dia cidade, manteve eterno destaque...


Outrora comarca independente, Santo Amaro é agora um entre tantos fóruns na especial Comarca São Paulo. E o gigantismo que marca a metrópole pode ser visto aqui, onde em 18 varas tramitam atualmente incríveis 160.469 feitos, perfazendo uma média de endoidantes 8.445 processos por magistrado.


Percebo também o quanto as questões hoje qualificadas pelo Direito como de "Famílias e Sucessões" são aqui de tão grande volume, sendo que cinco varas cuidam especificamente de processos desta natureza.


Apesar do pânico que acometem os cidadãos, inerente aos grandes centros e fruto de uma crescente insegurança, minha passagem pelo Fórum de Santo Amaro é acolhedora. Permitem, ao contrário da velha Itapetininga (prefiro esquecer a desmedida acrimônia com que fui tratado!), que eu voe, voe, voe...


Vejo que a lhaneza da interiorana cidade de Santo Amaro, hoje bairro, resiste ao pânico das megalópoles.


O fato de ter sido amalgamada à Capital, deixando de ser cidade para se tornar bairro paulistano, não conferiu a Santo Amaro uma conotação de pequenez. Ao contrário, deu-lhe um ar de canteiro de preservação histórica e de orgulho, em meio à confusão de sons, sinais, cores de objetos e pessoas : essa imensa Torre de Babel, na qual todos se esforçam ao menos para falar a mesma língua.


E, pelo patronímico do ilustre magistrado que me atende com cortesia, dr. Joel Paulo Souza Geishofer, vejo que aqui em Santo Amaro as coisas não mudaram. Ainda bem !


Com efeito, tendo embarcado na nau holandesa Maria em 1827, desembarcaram no litoral paulista em 1828 os primeiros colonos estrangeiros vindos de Bremen, na Alemanha. E, em aviso ministerial de 21 de março de 1827, foi concedida a cada família 400 braças quadradas.


Pelo que sei (dr. Pintassilgo também é cultura) aportaram 149 famílias e 72 pessoas avulsas todos imigrantes alemães que, enviados para Santo Amaro, constituíram a colônia sob a direção do dr. Justino de Melo Franco. Eram os Forster, Schunck, Hannickel, Helfstein, Klein, Teisen, Klauss, entre outros. Vinham com o espírito de ficar, e não meramente explorar.


Pelo que vejo no Fórum, de fato eles aqui – para grandeza de nossa diversificada nação brasileira – fincaram fundas raízes.


Mas voltando ao ilustre magistrado, que a bem da verdade nem sei se a origem é germânica (mas que serviu de gancho para mostrar minha sapiência de embornal), ele conta em agradável colóquio, depois de falar sobre os problemas jurisdicionais, dos erros da imprensa ao pegar uma notícia achando-a um furo, mas que depois se torna uma grande barriga.

 

E, diz o magistrado, muitas vezes pode se fazer um julgamento errôneo das pessoas, em especial do juiz.


Conta-nos um caso de um colega de toga que merece atenção dos migalheiros.

"Antes cuidando de uma vara de menores, o magistrado, dotado de profundo humanismo, tinha percebido - depois de diuturno trabalho com crianças e principalmente em adoções - que quando os pais adotivos eram estrangeiros havia quase certeza de adaptação, talvez pelo critério primeiro que tenha motivado o casal a atravessar o oceano. Ou seja, a vontade única de adotar um filho, um filho. Os estrangeiros não colocavam senões. O magistrado acompanhava o dia-a-dia dessa criança, à distância física, mas com olhos presentes. Mantinha constantes contatos com estas famílias e seus adotados Depois de avaliada a família, o sentimento de que a adoção para estrangeiros era vantajosa para a criança já lhe era claro, limpo, sem nenhuma dúvida. E dizia : “o meu dever é procurar pais para crianças, e não crianças para pais, assim como para as famílias estrangeiras não importa de onde vêm as crianças, para mim não importa de onde são os pais”.

 

Foi o que bastou para um estulto veículo de comunicação, sem nem sequer pensar em ir à casa do juiz, na mesma alameda Barros, na Santa Cecília, sem nem procurar ver o que ele fazia quando sentenciava no oeste paulista, na pequena Junqueirópolis, e mais tarde em Tietê, para julgá-lo e, pior, condená-lo como um exportador ilícito de seres. O dissabor não lhe tirou de sua magnífica missão, que continuou e continua laboriosa. Mas trouxe, certamente, chateações inúmeras.

Eu, que já pude planar pelo Estado inteiro, pois resolvi fazer uma panorâmica antes de iniciar o trabalho a mim confiado pelo amado Diretor, ouvi apenas encômios e panegíricos acerca deste juiz. Contaram-me, até, que quando magistrado no oeste paulista ele trocava, no fim de semana, a caneta pela colher de pedreiro, ajudando nos mutirões fazendo casas aos desfavorecidos.


Por isso, tendo aprendido com nosso amantíssimo líder a tratar com devido cuidado as informações, aproveito para em nome de toda a Redação de Migalhas louvar a carreira deste brilhante magistrado, hoje já aposentado, e de sua digníssima esposa. O dr. Joel Paulo Souza Geishofer, ao falar no caso, respeitosamente omitiu o nome do colega. E, nem poderia imaginar o quanto há de proximidade desta Casa com o juiz. Mas, ao sair do gabinete do dr. Joel, tive de pedir desculpas pelos olhos molhados. Toldado por momentos pueris, tive de voltar a fazer mágica para conter a emoção, que agora, ao escrever, posso, com todo carinho, colocar ao homenagear a pessoa do dr. Antonio Augusto e sua querida esposa d. Eliana."

Deixo Santo Amaro. Avistando o movimentado Largo 13, pretensiosamente penso que deixei uma migalha na história de Santo Amaro ao contar este fato, sobre um honrado juiz de Direito que ocupou a 1ª vara cível deste Foro Regional.

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