Circus

11/5/2010
Cleanto Farina Weidlich – Carazinho/RS

"Esse homem é um perigo, ... ontem assisti o 'Avatar', do festejado J. Cameron, ... vi nele a virtude dos filmes longa, que não me deixam pegar no sono. Quanto ao tema, ... nada de novo, ... não vi nada contrariar a máxima, ... 'de que todo o poder emana do cano de uma arma'. A outra, ... mencionei essa minha agenda, para dizer que na ressaca desses fatos, chego ao meu office, e novamente, ... me encontro com o mistério, ... um Circus não lido, curtido, aprendido, ensaiado, alto, imponente, culto e rico, como sempre (Circus 180 - 7/5/10 - "Ser Poeta" - clique aqui). Uma viagem pelo lúdico, real, concreto e abstrato, mundo da poesia, da cultura, do humor, substrato de uma alma rara, dessas que nascem poucas a cada século. Embora já tenha manifestado isso pessoalmente, reitero à grande e amiga platéia dessa maravilhoso mundo do 'Circus', ... se fosse um líder religioso, ... eu renunciaria a minha 'fortuna', ... para ser - como de fato já me sinto e sou - seu discípulo, ... assumindo por ora, as vezes de catecúmeno. Cordiais saudações! P.S.: e por falar em poesia, ... uma passagem que lembra um pouco o seu significado, ... é aquela em que o carteiro, pede ao poeta, para que pare de dizer o seu poema sobre o mar, ... que ele já está sentido o enjôo. E ainda sobre esse romance - encontro de almas poéticas - Como Mário é um poeta in re, nas coisas, ele vive seu poema nas coisas mesmas. Ele não o capta das coisas através da mediação da escrita, mas o capta diretamente nas ondas, no som dos sinos, nos ventos, na batida do coração do filho e mesmo no céu estrelado, como se estivesse refazendo a criação. Esse é o poema mais radical e vital que pode existir. O grande, único e sintético poema nas coisas que Mário pariu como um filho, dentro de um carrinho de bebê, com a mesma força que gerou sua vida singular, é este:

Número um:

ondas em Cali Sotto. Pequenas.

Número dois:

ondas grandes.

Número três:

vento nos rochedos.

Número quatro...

vento nos arbustos.

Número cinco...

redes tristes do meu pai.

Número seis...

o sino da igreja. Com padre.

(Belo. Não havia notado antes

como era tudo tão belo).

Número sete...

céu estrelado na ilha.

Número oito...

o coração de Pablito.

É a poesia na vida mesma. A vida do poeta Mário é um poema. Ele não vê cada coisa como separada, mas antes as enxerga todas como manifestações de algo maior que as transcende. Isso é o que se pode chamar, sem erro, uma visão amorosa. Para um poeta desse talante todas as coisas, por menores que sejam, não existem autônomas e separadas umas das outras, mas estão sempre solidárias no Amor maior que faz tudo existir. Por isso, ele diz enfaticamente a Neruda que "a poesia não pertence àqueles que a escrevem, mas a quem precisa dela", na cena em que este último se recusa a fazer uma poesia para Beatriz Russo. Ele concebe seu poema sozinho, longe do Mestre, pois, como dissemos anteriormente, a vida não nos é dada pronta. Ela é um a fazer que só pode ser realizado pela pessoa mesma. Um outro não a pode viver. Este é um grande exemplo de vida inventada com a imaginação e no impulso da força de Amor. Uma vida que vale a pena ser vivida. Uma vida que é criação e, portanto, é poiesis - uma ação poética. Uma vida exemplar, pois ensina que a vida não nos é dada feita, nem como possibilidade; e por isso mesmo nós é que temos de inventar essas possibilidades a cada instante. Mas, a vida se compõe, também, da brutalidade do real. O poeta nas coisas morre numa manifestação política organizada pelo partido comunista. Apresenta-se novamente a contraposição entre o social e o íntimo; entre as exigências da coletividade e as da consciência individual. De certo modo, Mário contraria sua vocação ao participar de um ato político. Na verdade, ele não está ali como ativista partidário, mas como poeta que vem ofertar um poema ao mestre. Ele não prioriza as forças sociais e políticas que estão em jogo em torno dele. Neruda não recebe o poema-oferta porque, como poeta, não está pronto ainda para ouvi-lo, pois está enleado nas coisas do Mundo. Ele só pode tomar conhecimento do ensinamento poético contido no poema de Mário lá, no mesmo lugar onde sua introspecção começou, no ambiente da ilha, que pode ser vista como centro interno e ordenador para o próprio Neruda. Afinal de contas, ele chegou ali exilado pelas vicissitudes de um mundo, que poderíamos denominar exterior e profano. Por isso, ele volta para a ilha com Matilde onde conhece Pablito, filho de Mário com Beatriz Russo, e ouve o poema de Mário, filho da vida e da poesia. São dois poetas se fazendo. O poeta das coisas aprende a reconhecer e integrar em si o outro tipo de poesia, senão seus poemas serão apenas técnicos e literariamente corretos. Enquanto o poeta nas coisas desenvolve os seus meios de expressão e a técnica. Assim, Neruda é, sem dúvida, o mestre e poeta do Amor. No entanto, Mário Ruopollo também é um poeta do Amor. Mas, de tal ordem que seu poema tem uma qualidade vital, básica e primordial. Tudo que foi dito aponta para a existência de uma complementaridade entre a poesia que é representada por Neruda e aquela representada por Mario Ruopollo. Temos, portanto dois tipos de poetas e por conseqüência dois tipos de poesia. Existe uma troca de sabedorias entre Neruda, o poeta das coisas e Mário Ruopollo o poeta nas coisas. Assim, além da existência de uma relação explícita, tipo Mestre e discípulo, entre Neruda e Mário existe e se desenvolve, de modo interno e implícito, outra relação onde Neruda, no final, é quem termina por aprender com Mário. O filme, portanto, pode e deve ser enfocado, também, do ponto de vista do desenvolvimento de Neruda. Ele é um indivíduo que foi exilado do mundo e colocado numa ilha onde tem a chance de encontrar através de um humilde vivente a verdadeira Poesia, aquela nas coisas, que não o havia tocado ainda, apesar de sua fama e do prêmio Nobel. Imagem e texto confirmam essa conclusão. A imagem é a última do filme onde Neruda relembra sua relação com Mário, emocionado e mínimo em frente à imensidão do mar, sob a altura majestosa do rochedo, completamente absorvido pela poesia nas coisas. O texto, (transcrito abaixo em tradução provisória), é o poema feito por Neruda em homenagem ao amigo, que aparece depois dos créditos do filme, no qual ele reconhece honestamente que só naquela instante encontrou a Poesia.

E foi naquela Época...

A poesia chegou me procurando.

Eu não sei, não sei de onde ela veio,

se de um inverno ou de um rio.

Eu não sei como nem quando.

Não, não eram vozes,

não eram palavras, nem silêncio;

mas de uma rua eu fui chamado abruptamente

dos ramos da noite, dos outros,

no meio de um tiroteio violento,

e num retorno solitário lá estava eu

sem um rosto... e ela me tocou.

Pablo Neruda, o poeta das coisas."

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