Jornal do Brasil 3/9/2010 Glamúria Moutinho "Prezado Diretor, Tenho acompanhado um tanto perplexa esta polêmica em torno do relacionamento entre peixeiros e jornais. E vou pedir licença aos experientes juristas que aqui comparecem para a intervenção de uma modesta professora sexagenária, ainda assim antenada nos modernos meios de comunicação. Nos velhos tempos em que eu criava três filhos com o meu labor no magistério, nem todo dia conseguia comprar o jornal cotidiano. Então, muitas vezes, ao desembrulhar o peixinho de sábado trazido da feira da Paulo Barreto, aqui em Botafogo, eu perdia alguns minutos lendo algum artigo do JB que me interessava. E o danado do Seu Manuel, com seu jeito meio rude de peixeiro da Beira, parece que acertava ao escolher a embalagem. Junto com o tambaqui, lá vinha um poema do Thiago de Mello. Ao desembrulhar o peixe para uma moqueca capixaba, saboreio uma crônica do Carlinhos Oliveira. Quando disse que ia preparar um prato mais sofisticado, aparece o badejo embrulhado numa crônica da Clarice Lispector. Tenho certeza de que as páginas do JB eram escolhidas a dedo, e como tinha senso de humor aquele português bigodudo! As lulas que comprei no fim dos anos 70 vieram com um artigo sobre aquele sindicalista barbudo que andava agitando o ABC paulista. E quando falei que o peixe daquele dia seria acompanhado por batatas ao murro, deparo-me com a foto do General Figueiredo, proclamando: 'prendo e arrebento'! No mais, que saudades vou sentir daqueles pedaços de jornal sujos de escamas e com cheiro de maresia... as colunas do Castelinho, as sacadas do Zózimo, o Informe JB, as críticas teatrais do Yan Michalski, a Susana Schild comentando filmes, as vociferações do Tinhorão contra a americanização da nossa música. E os artigos de Grace Dantas no Caderno de Ecologia, as resenhas literárias no Ideias, a diagramação limpa e moderna do Caderno B. Lembro-me bem da maior satisfação que um pacote do Seu Manuel me deu. Taurina, às vezes exagerada, eu tinha feito uma extravagância para comemorar meu aniversário: comprei uma lagosta. Mas o maior presente foi a embalagem: uma crônica do Drummond, com a Carta aos nascidos em maio. Foi uma festa memorável. Obrigado, poeta gauche! Obrigado, meu saudoso JB! Espero, senhores causídicos, que eu tenha vendido meu peixe..." Envie sua Migalha