SC - Candidato obtém direito de concorrer às vagas da UFSC destinadas a negros

4/12/2007
José Roberto F. Militao – advogado

"Prezados Migalheiros, a respeito da R. Sentença e das políticas de 'cotas raciais' no Brasil, como ativista contra o racismo, faço aqui alguns comentários e compartilho minhas reflexões, haja vista a relevância dessa questão e que interessa a todos os brasileiros (Migalhas 1.791 – 3/12/07 – "Em SC" – clique aqui). Na condição de advogado afrodescendente fui convidado a Brasília na 2a. feira, 26/11, exatamente para debater na Câmara dos Deputados - Comissão Especial sobre o Estatuto da Igualdade Racial constituída pelo Presidente, Dep. Arlindo Chinaglia, exatamente para debater com os defensores de 'cotas raciais', com o devido respeito, questão essa das Leis raciais, que sob minha ótica, além de inconstitucionais, ferem de morte a nossa responsabilidade ética com as futuras gerações - especialmente com os afrodescendentes - se a gente permitir a entrega de uma sociedade racializada pelo Estado. Como pessoa de cor (renego a designação de 'raça negra' que sonega a nossa humanidade e foi imposta pelo racismo) sou antigo defensor de políticas públicas de Promoção da Igualdade, que a doutrina consagrou como Ações Afirmativas que visa reduzir desigualdades sociais decorrentes de discriminações históricas, na forma preconizada pelo magistério de Serge Atchabahian: 'as ações afirmativas são medidas privadas ou políticas públicas objetivando beneficiar determinados segmentos da sociedade, sob o fundamento de lhes falecerem as mesmas condições de competição em virtude de terem sofrido discriminações ou injustiças históricas'. (Princípio da Igualdade e Ações Afirmativas. São Paulo: RCS Editora, 2004). Praticada desde a Índia em 1949, as AAs ganharam prestígio com a 'Lei de Direitos Civis - Civil Rights - nos EUA e mereceu estudos dos principais juris-filósofos desde John Ralws (Uma Teoria da Justiça, 1971), saudada e avaliada por J. Habermas, N. Bobbio, R. Dworkin, Manoel Gonçalves F. Filho, Fábio Comparatto, Joaquim Barbosa, Carmem Lúcia e outros notáveis juristas. Entretanto, Ações Afirmativas não se confundem com 'cotas raciais' nem devem servir para consolidar pelo Estado a crença em 'raças' humanas. Devem, pelo contrário, atuar contra as discriminações históricas, visando neutralizá-las, e ao mesmo tempo, ir destruindo a crença em raças, ou o machismo, o sexismo, a homofobia. Defendi perante os nobres Deputados que a destruição do racismo exige a abstenção do Estado que em hipótese alguma pode considerar a crença em raça para fins de direito ou de privilégios. Disse em meu depoimento, e desafiei a bancada favorável, a exemplificarem no mundo - desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos - depois da África do Sul (1948) e Índia (1949) em qual país tem ocorrido legislação acolhendo a crença em raças humanas. Mesmo nos EUA, a legislação de Ações Afirmativas a partir de 1.946, veio na verdade, revogar as antigas Leis de segregação e separação racial. As políticas de Ações Afirmativas na Azânia - África do Sul - de Nelson Mandela, não é uma Lei racial e se destina a promoção dos humanos pretos (blacks). Sempre comunguei com Ortega Y Gasset, o grande filósofo espanhol, além do aforisma 'eu sou eu e minhas circunstâncias', deixou outro preceito que considero determinante para todos: a atual geração tem o dever de entregar às futuras um ambiente social melhor do que a que recebeu. Digo isso, porque a experiência da história humana comprova intensivamente que sempre que o Estado acolheu a idéia de 'raças humanas' o fez para dividir a humanidade e oprimir. Nós não somos 'raça negra', somos humanos da cor preta conforme diziam nossos avós - homens de cor -, e como sabemos desde o sociólogo Oracy Nogueira, em 1953, no Brasil o que discrimina é pela cor (marca) ao contrário dos EUA onde ela ocorre pela raça (origem). Em relação à sentença da Justiça Federal de Santa Catarina, na verdade é uma concessão de liminar, apresento algumas críticas, pois ela deverá ser reformada pelo Tribunal Regional Federal devido à desnutrição de fundamentos e equívocos manifestos. Hoje é inadmissível que o Magistrado continue a conferir à isonomia a restrita interpretação de igualdade formal. A CF/88 consagrou a vontade do povo para que o Estado tenha também função ativa para remoção das desigualdades sociais, não basta apenas que o Estado se abstenha de intervir na vida das pessoas. Ele também deve atuar para mudar o 'status quo', por isso que Ações Afirmativas têm amplo acolhimento na ordem legal dos EUA, Canadá, Austrália, França, Inglaterra, África do Sul e até na Finlândia, porém, sempre sem considerar a 'raça', apenas considerando a cor, a origem, o sexo, as condições físicas, a opção sexual etc. Creio que a Sentença divulgada sirva para chamar a atenção para o conflito também jurídico das medidas raciais e especialmente demonstrar ao setor racialista do movimento negro o tamanho do equívoco ao postular políticas públicas raciais. Como advogado e ativista contra Leis raciais, ela contempla e acolhe (em parte) minhas teses jurídicas, porém, mas... porém, por razões puramente de técnica processual e de embasamento doutrinário, tenho sérias ressalvas, especialmente quando o Juiz caminha para a análise sociológica, é falha nos fundamentos, o que propicia ao Recurso da outra parte (a Universidade) bons argumentos baseados na doutrina geral de Ações Afirmativas. Portanto, com o devido respeito, não irei exibi-la como bandeira de uma 'vitória', pois é bastante frágil como Decisão nessa matéria nova e polêmica em nossos Tribunais. Por exemplo, o Magistrado não trilha a boa trilha das Ações Afirmativas que devem ser acolhidas como doutrina de direito sem a necessidade da 'raça jurídica' incompatível com as regras da CF/88. Pior ainda é que o Juiz prolator, também ele acredita em 'raça humana', e por isso não afasta o conceito de 'raça', e trabalha em seus fundamentos com a designação 'negro', embora entre aspas. No item 12 afirma: 'E diga-se o óbvio: ser negro não é o motivo determinante - por si só - de inferioridade intelectual'. E prossegue sempre admitindo a condição de 'negro' como identidade racial, portanto, admitindo o que não podemos admitir: a 'raça' humana não consiste em qualificação para diferenciação humana. O mesmo entendimento viciado considerando o 'negro' como raça, prossegue nos itens 14., 15, 16 etc. No item 20, S. Excia. aponta no correto caminho da desqualificação de 'raça', mas no item 21, apenas conclui a dificuldade de saber quem é negro no Brasil, o que, com o devido respeito, é uma grande bobagem: todo mundo sabe quem é 'negro'. Com tal premissa, deduz-se, por decorrência, se possível a identificação do 'negro' a seleção racial seria admissível? Pior ainda, no item 25, por evidente falha na base sociológica do raciocínio, argumenta contra obviedade da dívida social aos afro-brasileiros. Ora, essa dívida social aos afro-brasileiros é histórica e mais que evidente e documentada por todos os índices oficiais. A questão que se nos coloca é sócio-filosófica também: como - por qual tipo de política pública - devemos saldar a dívida histórica, e se devemos apenas fazê-la em face dos afrodescendentes e qual a forma mais eficaz e com menor custo no presente e no futuro em razão dos efeitos colaterais e sem produzir estigmas negativos, conflitos e ódios baseados na falsa crença racial. Não basta ignorar a existência da cultura do racismo que ao lado do machismo, do sexismo e homofobia, produzem discriminações históricas. As políticas universais, nem no Brasil nem nas sociedades capitalistas mais ricas, não deram conta para as desigualdades históricas. Não basta acenar com a igualdade formal (a isonomia), pois ela fez todo o sentido no Iluminismo consagrado pela Revolução Francesa e pela Declaração de Independência nos EUA, no século XVIII, em face do 'ancién régime', em que a realeza e aristocracia viviam com privilégios e Leis especiais: todos são iguais perante a Lei. O mundo ainda está compreendendo o que dizia J.J.Rousseau em 'O Contrato Social', que em face da inevitável desigualdade social a Lei e o Estado devam promover e induzir a igualdade material. Destarte, S. Excia. comunga com aqueles que não consideram válidas a atuação ativa do Estado por Ações Afirmativas em hipótese alguma, assim a Sentença avança - indevidamente, por não ser papel do Juiz - para recomendação da exclusiva política universal (item 27), já praticada desde a República, sem eficácia real, sem nenhuma concessão a políticas especiais de promoção da igualdade. Na parte da análise da constitucionalidade e dos princípios de adequação, proporcionalidade e razoabilidade que são argumentos poderosos a apreciação está perfeita. Portanto, como argumento, nesse tema polêmico o Judiciário está dividido, assim como dividida ficará a nação e o que devemos é permanecer atentos para que o Estado não legisle considerando raças humanas e cotas raciais, pretendido pelos Projetos de Leis raciais em debate no Parlamento, reiterando que no Brasil o que discrimina é a cor (marca) e não a origem racial como ocorre nos EUA. Neste sentido, o ideal é um 'Estatuto de Promoção da Igualdade' que não exige adjetivos, ou se o exigirem, que o seja da Igualdade Civil, jamais racial. Quem acredita em raça, não crê em igualdade. Abraços, 'Não é possível subjugar homens sem logicamente os inferiorizar de um lado a outro. E o racismo não é mais do que a explicação emocional, afetiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorização. Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal'. (FANON, Frantz. Racismo e Cultura, I Congresso Escritores Negros, Paris, 1956)."

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