Cirurgia de mudança de sexo

18/12/2007
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - OAB/SP 242.668

"Primeiramente, considerar a cirurgia de readequação do sexo de transexuais como uma questão puramente estética, como alguns têm considerado (não aqui no Migalhas, até o momento), é uma ignorância sem tamanho, um desconhecimento absurdo do tema (Migalhas 1.799 - 13/12/07 - "Migas 7" - clique aqui). Transexuais não fazem a cirurgia por 'frescura' ou 'pura estética', mas para adequarem seu sexo biológico a seu sexo psíquico, como forma de sanar o sofrimento subjetivo de se encontrarem em um corpo que consideram não ser o seu. Diferentemente de homossexuais, que estão satisfeitos com seu sexo biológico, os transexuais não estão, tendo a clara impressão de que nasceram no corpo errado, tendo inequívoco e inegável sofrimento subjetivo que pode levar a profundas depressões e mesmo ao suicídio se não realizarem a cirurgia (embora existam aqueles que não querem realizá-la). Feitos esses esclarecimentos preliminares, opino sobre o tema: entendo que a Douta Ministra se equivocou. O que achei grave na decisão foi ter ela reconhecido que realmente são 'relevantes' os argumentos invocados pela decisão do Tribunal inferior mas que ela não os analisava por tecnicalidade jurídica, na medida em que não seria o momento adequado. O reconhecimento da relevância encontra-se neste parágrafo: 'Observe-se, finalmente, que os relevantes argumentos deduzidos pelo Ministério Público Federal na ação civil pública em tela, no sentido da ocorrência de ofensa ao direito de liberdade dos cidadãos transexuais e aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proibição de discriminação por motivo de sexo, bem como as razões de decidir amplamente fundamentadas em fontes doutrinárias e jurisprudenciais, insertas no voto proferido pelo relator da Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS, Juiz Federal Roger Raupp Rios, porque dizem respeito ao mérito da referida ação, não podem ser aqui sopesados e apreciados, tendo em vista que não cabe, em suspensão, 'a análise com profundidade e extensão da matéria de mérito analisada na origem' (SS 1.918-AgR/DF, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 30.4.2004), domínio reservado ao juízo recursal'. Penso ser isso um formalismo exacerbado, tão condenado no Direito. Uma coisa seria ela afastar esses argumentos, no que estaria na sua liberdade de decisão (livre convencimento motivado) – onde penso que teria errado, mas pelo menos teria analisado a questão. Mas dizer que os argumentos são relevantes mas não enfrentá-los porque não seria o momento processual oportuno configura, data maxima vênia ao inegável saber jurídico da Douta Ministra, um grande equívoco, na medida em que, se são relevantes os argumentos, há no mínimo fumaça do bom Direito ou mesmo a verossimilhança necessária ao deferimento da antecipação de tutela. Cumpria à Ministra ter afastado a fumaça do bom Direito ou a verossimilhança, mas não o fez, estando aí seu grande equívoco na decisão. Não o fazer expressamente é o mesmo que não o fazer, embora o Judiciário costume entender diversamente. Não estou dizendo com isso que o argumento da 'reserva do possível' não seja ponderável no presente caso, mas uma coisa é certa: se o Direito está ao lado de transexuais no que tange a seu direito subjetivo à utilização do SUS, argumentos simplistas relativos a vontades arbitrárias das maiorias não terão nenhuma significação jurídica. Alguém que leve a sério a supremacia constitucional sabe que as normas constitucionais sobrepõem-se à vontade de quaisquer maiorias – em especial cláusulas pétreas como dignidade humana, igualdade, proibição de discriminação e liberdade. Sendo estas cláusulas interpretadas pelo Supremo de forma a garantir o direito de transexuais utilizarem o SUS, então as cirurgias deverão ser realizadas pelo mesmo. Ou se nega a existência de direito de transexuais utilizarem o SUS ou se o reconhece, sem deixar de apreciar o mérito da questão – a Ministra deveria ter reconhecido a verossimilhança ou afastado-a, sem deixar de apreciar a questão, ainda que numa análise superficial (prima facie) típica de decisões de antecipação de tutela. No mais, cumpre lembrar a advertência de John Rawls, para quem 'cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade pode sobrepujar' (Rawls 'apud' Vieira, Oscar Vilhena. A Constituição como reserva de justiça, Lua Nova, n°. 42, p. 62), donde, reitere-se, a vontade da maioria não significa muita coisa neste caso. Vivemos sob a égide do Direito, no qual a neutralidade judicial implica na aplicação do Direito independentemente de vontades majoritárias ou mesmo do próprio magistrado. Um Estado de Direito implica governo de leis, não de Homens – essa é a neutralidade que se espera do Judiciário. Se a maioria quiser algo diverso do Direito atual, que mude as leis ou a Constituição. Se a questão constituir cláusula pétrea, convoque-se nova Constituinte. Mas ignorar a Constituição sob o argumento dela contrariar a vontade majoritária implica em completo desprezo à teoria constitucional. 'Ordem de prioridade'?! Ora, tem prioridade quem chegou primeiro e marcou atendimento primeiro. Transexuais também são cidadãos e também pagam tributos, donde também são merecedores da tutela estatal como um todo – ou será que Wilson Silveira pensa que transexuais, apesar de pagarem seus tributos como quaisquer outros cidadãos, ou mesmo serem cidadãos financeiramente carentes como todos os outros financeiramente carentes, não poderiam usar dos serviços estatais ? A saúde é um direito de todos, inclusive de transexuais, que portanto também devem poder usar o SUS caso não tenham dinheiro para usar serviços médicos privados, como é mais do que evidente. Enfim, aguardemos o julgamento de mérito da ação."

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