Violência

21/1/2008
Fredy Correa - radiojornalista em São Paulo

"Dia 13 de dezembro passado o Comando de Policiamento de Área-Norte CPA-M-3 da Polícia Militar do Estado de São Paulo completou mais um aniversário, coisa de uns 31 anos, se não me falha a memória. Os órgãos de imprensa foram convidados. Compareceram dois jornais de bairro da região norte (Semanário e SP Norte) e a Rádio da Cidade. Empunhando aquele microfone, enfrentei os últimos dois quilômetros que me separavam da nova sede (avenida General Ataliba Leonel, no Carandirú-Capital/SP) daquela instituição, sob chuva torrencial. No caminho, em desabafo, como faço às vezes, liguei o gravador e 'dividi' com quem um dia possa ouvir aquela fala, meu desespero por ter compromisso e, mesmo estando próximo ao local de destino, ter de amargar o marasmo do trânsito paulistano. Desliguei o gravador. Precisava guardar espaço para a entrevista com o comandante que havia me convidado. Afinal, um CPA como aquele reúne quatro batalhões de seiscentos homens cada um e é responsável pela cobertura de 200 km2. Uma área maior do que muitas capitais brasileiras. Meu anfitrião, Cel. PM José Hermínio Rodrigues, recebeu-me, circunspecto. Em análise prévia pareceu-me um sujeito por demais sóbrio; daqueles que são 100% policiais. O mestre de cerimônia agradeceu aos presentes à concorrida solenidade, destacando a presença de uma emissora de grande porte e longo alcance com sede na Avenida Paulista. Ao perceber que minha presença lisonjeava, de fato, os anfitriões, confesso que senti uma pontinha de orgulho. Afinal, faço o seguimento 'comunidades' há 20 dos meus 35 anos de radiojornalismo. Entrementes, a finalidade principal de minha visita devia-se à entrevista previamente agendada com o Coronel Hermínio. Ouvi dizer que, 'linha dura', Hermínio, vinha desbaratando quadrilhas, especialmente as ligadas ao tráfico ilícito de substâncias 'estupefaciantes'. Passados longos 60 minutos de agradecimentos daquele Comandante aos vários seguimentos da sociedade local, conseguimos nos isolar na sala do entrevistado onde pude gravar dez minutos, dos quais oito foram ao ar, na íntegra, no dia seguinte, dia 14, às 6h02, pelos 1.370 Khz-AM da nossa emissora. Em resumo, a matéria tratou de números que demonstravam o trabalho daquele comandante e seus homens na luta pela manutenção da paz social. Com os microfones desligados, perguntei ao Coronel sobre as quadrilhas que ele havia desarticulado. Insinuei que havia rumores de que alguns desses 'bandidos' faziam parte da corporação ao que o coronel usou dois argumentos para que eu desviasse do assunto proibido: o primeiro argumento foi uma fala estudada:' - É assunto intra-corporis!' e o segundo, e bem mais convincente: um olhar frio, misto de reprovação e austeridade, daqueles olhares que alguns de nós, mortais convencionais, teriam que estudar durante anos para poder desenvolver. Argumentei que o problema não se restringiria à corporação já que os atos dos meliantes de coturno atingiriam em cheio a sociedade. Resposta: Vamos cortar o bolo! E fomos. A cerimônia havia começado as quatro e os ponteiros marcavam sete e meia quando, ainda sob a luz (e a chuva) do horário de verão, deixei aquela unidade. Antes de sair, fiquei no carro por alguns minutos ouvindo a entrevista que havia feito com exclusividade. No dia seguinte, suprimindo somente o trecho de dois minutos em que o Coronel Hermínio desejava em nome dos homens do CPA-M -3 um 'Feliz Natal e um ano novo cheio de paz e segurança', a matéria foi ao ar. Elogios da direção. Afinal, saímos do campo de interesse do entrevistado e passamos para o campo de interesse sub-liminar da população, como, por exemplo, perguntando 'se a retirada de 1.500 homens do policiamento ostensivo, (no âmbito da cidade de São Paulo), para se dedicarem tão somente à faina diária da indústria de multas, não prejudicaria o combate ao crime, propriamente dito'. Meu veredito após a entrevista: O Coronel era intrépido, intimorato e corria o risco de ser inviável. Explico: a coragem de enfrentar o crime organizado, especificamente o interna corporis, podia levar ao seu afastamento. Assim pensei por que todos esses anos na livre imprensa (livre sou eu, a imprensa nem tanto) descortinaram panoramas nem sempre vislumbrados pelos telespectadores, leitores e radio-ouvintes. Ou não é verdade que a estatística oficial é manipulada? De volta à hoje: debruço-me sobre o teclado, ainda inconformado com o covarde assassinato do Cel. Hermínio ocorrido na última quarta-feira, e passo a 'migalhear' este pequeno esboço de reação. Impossível não lembrar dos coturnos, batendo, soturnos, contra o cimento, cadenciados pelo sub-comandante. O olhar atento do promotor de justiça, que agora é Deputado Estadual, as honrarias ao ex-oficial daquela corporação que agora milita nas tribunas da Assembléia Legislativa paulista. O que será que ambos, corajosos, pensam do crime? Será que, como eu, sabem que o coturno leva a paz? Será que, como eu, lembram que, nos bancos escolares aprendemos que o verbo 'levar' tem sentidos ambíguos: leva, no sentido de entregar, distribuir e, leva, no sentido de levar embora, retirar? Ah, esses coturnos! Provavelmente, os disparos concentrados na região da cabeça visavam fechar, de pronto, aquele olhar que emitia luz de comando. E profunda seriedade. Daquela seriedade da qual toda a sociedade precisa. O covarde atirador também usava coturno. A prudência manda não pré-julgar. Entrementes, como sei, dos fatos, um pouquinho mais do que a maioria, digo-lhes: o coronel sabia o risco que corria ao mandar punir os corruptos. Seu comando, possui, portanto, a lista dos que têm, sobre si, a chamada suspeição concreta. Resta saber se vai seguir o exemplo de coragem de seu ilustre membro tragicamente desaparecido. Entro em meu 'quarto de cacarecos' e retiro de uma empoeirada caixa, meu par de coturnos que serviram pela e para a defesa da pátria há 34 anos atrás e pergunto-me: Fui eu que mudei ou será que foram os coturnos que mudaram?"

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