Decisões – O preço das palavras

25/2/2008
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Parodiando Vinícius, os mal educados que me perdoem, mas educação é fundamental. Ao menos nos dias de hoje, em que a justiça anda atenta aos casos de gente mal educada, punindo-as sem piedade, da maneira que a justiça age, às vezes de uma maneira, às vezes de outra, como se diz por aí, criando uma série de jurisprudências. Recentemente, o maestro John Neschling, regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, perdeu a ação que movia contra o escritor e crítico, Marcus Góes, que o chamou de 'feio'. Na decisão o juiz indaga: 'Chamar alguém de feio, chato, caipira, pode ser considerado ato ilícito e, por conseguinte, sujeitar o agressor a uma compensação pecuniária a favor da vítima?' E, conclui o magistrado, que as provocações foram 'pueris, sem maior potencial ofensivo', já que chamar alguém de feio não é um 'ato ilícito capaz de causar dano moral'. O que convenceu o juiz, segundo a sentença, é que 'ao dizer que o autor é feio, é nítido que o réu estava apenas expressando sua opinião', e que 'esta atitude simples, por sua própria natureza, não fornece elementos para que uma outra pessoa se convença da suposta feiúra do destinatário das declarações'. No mesmo dia, um jovem, em Pontal, foi multado, em R$ 14.880,00, pela Secretaria da Justiça do Estado, com fundamento na Lei 10.948/2001, após chamar de 'veado', um homem de 48 anos, homossexual declarado, em um posto de gasolina da cidade (Migalhas 1.842 - 21/2/08 - "Multa"). No caso, foi considerado que houve 'constrangimento de ordem moral, em razão de sua orientação sexual, na modalidade de vexame, humilhação, aborrecimento e desconforto'. As duas notícias, no mesmo dia, criam uma situação interessante, pois que se pode chamar de feio alguém que não se sente feio, mas não de 'veado' alguém que, de fato é um homossexual, o que sugere algumas indagações, já que perguntar não ofende e, além do mais é de graça. Por exemplo, seria apenável chamar de ‘veado’ um não homossexual? Ou essa atitude simples, pela sua própria natureza, não fornece elementos para que uma outra pessoa se convença da suposta veadice do destinatário das declarações? Ou, por outro lado, chamar de feio um homossexual, causa constrangimento de ordem moral, na modalidade de vexame, humilhação, aborrecimento e desconforto? Ou não? Um heterossexual chamado de 'veado', pode se servir da Lei contra homofobia para buscar ressarcimento pela humilhação, aborrecimento e desconforto? Realmente, essas indagações são inquietantes, principalmente à vista da recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, em comunicado CG nº. 117/2008, publicou as conclusões aprovadas no congresso que versou sobre o tema 'Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) – Um ano de vigência, avanços e retrocessos, sob o ponto de vista prático, na opinião dos operadores do direito', realizado em 12/12/2007 que, em seu item 8 decidiu: 'O parágrafo único do artigo 5º da Lei Maria da Penha não se estende à pessoa do sexo masculino vitimizada em relação homoafetiva'. Em outras palavras, no recesso do lar, nas famílias, nessas novas famílias modernas, constituídas por dois pais ou duas mães, como queiram, quando houver violência doméstica, não vale a Lei Maria da Penha, que só reconhece, para os efeitos da Lei, a violência contra a mulher, praticada por homem, ou seja, do marido contra a esposa. Então, no lar, e não no posto de gasolina, você não pode chamar o companheiro de 'veado', mas pode bater nele... e chamar de feio, se quiser. Uma coisa é certa, com a proliferação dessas novas famílias, a Lei Maria da Penha deve ser aditada, para contemplá-los também. Outro tipo de ofensa, como se sabe, já é punido, como no caso da atriz Vera Gimenez, mãe da apresentadora Luciana Gimenez que, em momento de raiva, discutiu com o porteiro de seu prédio, em Botafogo, que se recusou a carregar uma mala, alegando que estava com o 'pulso aberto', ofendendo-o com expressões do tipo 'crioulo safado, crioulo filho da puta e seu merdinha'. O destempero custou-lhe 'as penas do art. 140 caput combinado com o art. 141, restando a pena final de 13 dias-multa no valor mínimo legal (art. 140 caput – detenção de um a seis meses). A pena menor foi condenada à ex-esposa que, por meio de e-mails a clientes e concorrentes do ex-marido, afirmava que o mesmo não tinha 'mente aberta' e, mais que isso, não passava de 'um merda, mentiroso e bandido'. Foram, ao todo, duas mil mensagens. O M.M. Juiz da 24ª Vara Criminal de São Paulo condenou-a a onze dias-multa, no valor unitário de um salário mínimo por crime de injúria. Se o chamasse de 'feio', teria ficado de graça e, tivesse usado o termo 'veado', poderia ter ficado bem mais caro. 'Preto safado e preto nojento' foi como um ex-juiz classista xingou, e ainda cuspiu no rosto de um taxista, por ter sido orientado a apagar o cigarro aceso dentro do táxi, no Distrito Federal. A 3ª turma do TJDF aplicou-lhe a pena de R$ 10 mil. Mas, no caso, foi o xingamento mais o cuspe, não se sabendo qual o percentual atribuído a qual ofensa individualmente. Em Minas Gerais, uma cliente do Bradesco, dirigindo-se a uma das caixas, para dela reclamar, apontando-lhe o dedo, passou a ofendê-la usando termos como 'macaca' e 'crioula', na frente de outros clientes. A 7ª Câmara do Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou a agressora à indenização, por danos morais, no valor de R$ 10 mil. Um pouco menos recebeu um vigilante de um clube também de Minas Gerais, ofendido por um sócio com palavras como 'macacão, negão e crioulão', ameaçando-o, ainda, de resolver a pendência na 'porrada'. A pena, imposta pela 12ª Câmara Cível do TJ de Minas Gerais condenou o agressor a R$ 7,5 mil, apesar da ameaça de resolver na 'porrada'. Como se vê, apesar dos superlativos, a pena foi menor. Já a jornalista Ana Paula Damasceno de Souza, também de Minas Gerais, que é loira, e foi chamada de 'loira burra’ pelo goleiro do Santos Futebol Clube, teve ganho de causa, perante a 27ª Vara Cível de Belo Horizonte, que obrigou o jogador a pagar-lhe R$ 15 mil pela ofensa. Se fosse chamada de burra, mas não fosse loira, não se sabe o que aconteceria. Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, a 10ª Câmara Cível do TJ condenou um marido a pagar a indenização de 15 salários mínimos para sua ex-mulher por tê-la chamado, publicamente de vagabunda e prostituta, após 14 anos de união estável. Após tanto tempo, deveria já saber, mas não poderia dizer, é claro. No trabalho também não pode. Um funcionário do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e Ministério Público da União no Distrito Federal (SINDJUS-DF) recebeu, por decisão da 4ª Vara do Trabalho do DF, R$ 70 mil por ter sido chamado de 'burro e incompetente' por seu chefe, na frente de outros funcionários do sindicato. O mesmo sindicato já fora condenado em outras ocasiões, em R$ 20 mil e R$ 8,5 mil, respectivamente em caso de assédio moral. E o sindicato, deve ter sido levado em conta, existe exatamente para defender os trabalhadores, mesmo os burros e incompetentes. A recíproca, porém, parece não ser verdadeira, de vez que a 1ª turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo concedeu sentença favorável ao servente de pedreiro que, durante uma discussão com seu chefe, disse para ele 'se ferrar', após o que foi demitido por justa causa. Na decisão foi observado que o servente 'é pessoa humilde e não tem em suas palavras o mesmo peso de ofensa que as proferidas por pessoa culta'. Assim, se você for 'culto', piora sua situação ao ofender alguém. Maior, ainda, foi a indenização a que foi condenada a Federação Nacional dos Policiais Federais, R$ 80 mil, por danos morais, ao seu ex-diretor Paulo Lacerda, por ter publicado em seu site expressões como 'diretor Lamerda', 'energúmeno', 'arrogante', 'deletério', 'zero à esquerda’, entre outras. Essa foi a maior pena da pesquisa aqui feita. Mas, na verdade, o trocadilho é bom. Na UNB, um professor foi condenado administrativamente a suspensão, mas a pena foi convertida no pagamento de multa de 50% de seu salário que é de R$ 3.500,00, por ter se referido aos negros de sua classe como 'crioulada' e mencionar, em vez de afro-descendente, 'afro-negão'. E agora, para alívio dos juizes de futebol, suas mães estão a salvo. Já é jurisprudência pacífica. A 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou dois diretores do América de Minas Gerais a pagar, 15 mil de indenização a um árbitro e seu auxiliar por ofensas feitas por gestos e palavras, após a marcação de um pênalti. Não foram aceitos os argumentos da defesa no sentido de que os xingamentos são prática comum em estádios de futebol e que nem o técnico e nem o dirigente tiveram intenção e nem vontade de causar dano moral aos árbitros. Difícil vai ser punir todos os freqüentadores insatisfeitos do estádio. E o prêmio vai... para o ex-diretor da Polícia Federal Paulo Lacerda, que abocanhou R$ 80.000,00! Para um país emergente, até que dá para quebrar o galho. Mas, é interessante notar que, justamente nos casos em que existe lei própria, contra o racismo e homofobia, as indenizações concedidas foram menores, por motivos que talvez valha a pena considerar. Talvez, até, porque esse tipo de questão, de ofensa moral, deva ser analisado caso a caso, de acordo com as circunstâncias, as pessoas envolvidas, o momento, etc. e não, simplesmente, a condição do ofendido ou do ofensor, simplesmente, até porque honra não se atribui por decreto e nem dano moral se avalia por lei. Mas, de qualquer forma, uma coisa é certa, vale mais a pena ser educado e conter os ânimos. E, principalmente, as palavras, já que isso pode custar caro. Se você não conseguir se conter, e tiver que xingar alguém, 'feio' é só o que não oferece risco. Pelo menos existe suporte legal para defesa."

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