Anencefalia diante dos tribunais

19/7/2004
João Cirilo

"Como sempre se está vivendo, agora sob o manto de uma ação de descumprimento de preceito fundamental e o tema nela ventilado, a anencefalia, notável rebuliço em assunto que a rigor não deveria oferecer nenhuma dificuldade, pelo menos sob o ângulo jurídico. Em primeiro lugar note-se o caso levado à análise do Promotor Hermann Lott (clique aqui): o veículo processual fora um alvará; nada mais distante do que uma formal e nebulosa ação com fincas em lei ordinária reguladora de um dispositivo constitucional igualmente nebuloso. Tal fato por si já demonstra a quantidade de caminhos que o sistema jurídico oferece, sendo que no mais das vezes levam a insondáveis encruzilhadas. O mérito não fica por menos. A grande questão da anencefalia, pelo que se sabe e é repetida na ação de descumprimento de preceito fundamental, não é o feto em si, mas sim a probabilidade latente de pôr em perigo a vida da gestante. Ora, o art. 128 do vetusto Código Penal já diz, desde os idos de 1940, que é necessário o aborto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Se a parturiente correr risco de vida causada pela anencefalia do feto, parece que basta uma intervenção médica para materializar o difícil, mas necessária providência, que se é legítima até mesmo em fetos saudáveis, mais ainda naqueles condenados à morte ao nascer ou - não raro - antes do nascimento. Diz mais citado artigo. Diz que gravidez resultante de estupro também não é punida: pelo que sei, este dispositivo sim, flagrantemente inconstitucional não só nunca foi assim rotulado como a doutrina ainda o entende "sentimental", "ético" ou "humanitário". E tanto o aborto necessário como "humanitário" dispensam intervenção judicial, ficando ao arbítrio do médico sua efetivação. Como se vê, atitudes simples, que não deveriam e nem mereceriam causar tanto rebuliço como o que se vê sobre o caso. A impressão que me causa é uma crônica má vontade, preguiça ou medo de decidir, buscando-se no Estado-juiz, como se ele estivera acima do bem e do mal, o que está longe de ocorrer, as decisões que dependem essencialmente do conhecimento e da atitude firme de outrem. Este é um problema médico e como tal deveria ser tratado. Envolver questões jurídicas nesse tema pode causar graves precedentes, como já anotado, entre outros, por Ives Gandra Martins, com a argúcia que sempre lhe distinguiu, em matéria nesta "migalha" de hoje, dia 16 de julho. Obrigado pelo espaço e atenção,"

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