STF

11/12/2008
Wilson Silveira - CRUZEIRO/NEWMARC PROPRIEDADE INTELECTUAL

"Muita gente recebe a Tribuna do Direito, mas talvez nem todos tenham dado a devida atenção à matéria sobre o assunto que esse tópico aborda, muito interessante. Shakespeare escreveu Hamlet entre 1599 e 1601. O Brasil, na época, descoberto que fora em 1500, era ainda muito novo. Por isso, a frase 'Há algo de podre no reino da Dinamarca' ficou restrita àquele país, porque não se sabia que um certo cheiro pútrido acabaria alcançando os demais, de uma maneira ou de outra. Essa história da Operação Satiagraha e seus desdobramentos, realmente está provocando mais do que um mero desassossego. Está espalhando uma terrível fedentina, que atingiu até o STF.

'A disputa entre ministros

Para se entender a gravidade da situação e os sintomas de crise institucional, é só prestar atenção no que disse, por exemplo, o relator do 'Caso Dantas', ministro Eros Grau: 'Contra bandidos, o Estado e seus agentes atuam como se bandidos fossem, à margem da lei. Juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais transformam a Constituição em um punhado de palavras bonitas, rabiscadas num pedaço de papel sem utilidade prática.' Segundo Grau, o que se tentou fazer no episódio Dantas foi intimidar o STF. Ele afirmou que a Imprensa divulgou encontros, que ele chamou de 'supostos', entre membros da Corte e advogados de Dantas, 'e que até hoje não foram confirmados'. O ministro Grau disparou torpedos jurídicos contra os casos em que policiais federais 'entram numa casa, prendem pessoas e apreendem bens, sem que se saiba qual está sendo a acusação'. Eros Grau também mostrou-se profundamente irritado pelo fato de ter recebido um ofício da Justiça Federal paulista no qual foi chamado, por equívoco, de ‘Eros Grau de Melo’. Para Eros, ‘é inadmissível’ que um membro do Judiciário desconheça os nomes corretos dos juízes da Corte. Um dos Mellos da Corte, o ministro Celso, decano do STF, também demonstrou sua idiossincrasia por De Sanctis, criticando o fato de o magistrado não ter prestado informações sobre o processo: 'A recusa constitui um comportamento insolente e insólito, no mínimo, para não dizer ilícito. Isso é muito grave. É um comportamento inaceitável, há de ser censurado.' O ministro Celso de Mello disse que considera 'indesculpável' que juízes demonstrem desconhecer a jurisprudência do STF. Mello ficou irritado com o fato de De Sanctis ter decretado 'regime de sigilo do processo ao STF', deixando claro o seu pensamento sobre o assunto: 'Quando um ministro do STF requisita informações, ele não está pedindo. Está ordenando.' Na ocasião, o pedido de habeas-corpus para Dantas (acusado de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro em crimes financeiros corrupção ativa) chegou ao STF antes do início da 'Operação Satiagraha', pois o banqueiro havia tomado conhecimento pela Imprensa de que estava sendo investigado pela Polícia Federal. Ao confirmar o habeas-corpus para Dantas, os ministros do STF desmentiram que tivesse acontecido, como sugeriram procuradores da República e delegados federais, a chamada 'supressão de instâncias'. Segundo os ministros, o pedido de habeas-corpus tramitou antes pelo TRF-3 e pelo STJ. Mas De Sanctis, ao decretar sigilo nos autos, vedou acesso ao conteúdo do processo para outros magistrados, inclusive do STF. Isso foi interpretado como 'atitude insolente', na avaliação do ministro Celso de Mello. No entendimento de Grau, o juiz De Sanctis teria decretado a prisão preventiva de Dantas, 'antes expressamente afastada, a pretexto de que, ao remexer guardados existentes na residência do paciente, encontraram-se dois papeluchos apócrifos'. Para Grau, quando De Sanctis decretou pela segunda vez a prisão de Dantas, 'nada mais fez do que desrespeitar a Suprema Corte por via oblíqua'. Nesse ponto, o ataque de Grau a De Sanctis foi frontal: 'Pior do que ditadura das fardas é a das togas. Não estamos num sistema inquisitório, baseado num único juiz.'  Outro ministro que lançou petardos verbais contra De Sanctis foi Cezar Peluso. Ele comprou uma briga contra todos os magistrados federais que assinaram um manifesto de solidariedade a De Sanctis, que ao mesmo tempo continha críticas ao presidente do STF, Gilmar Mendes. Dizendo que o juiz de São Paulo 'burlou a lei ao decretar a segunda prisão da Daniel Dantas', Peluso pediu que todos os juízes que assinaram o manifesto sejam investigados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e até propôs um enquadramento de ordem legal para colocar freios de contenção nos magistrados rebeldes: 'A figura que se invoca é da fraude legis (fraude à lei). Significa usar de tipos ilícitos previstos no ordenamento para obter efeitos proibidos.' Segundo Peluso, 'o Judiciário não foi criado para condenar, mas para julgar'. Sobre os juízes que se manifestam a favor de De Sanctis e contra Gilmar Mendes, foi peremptório: 'Os juízes, muitos noviços, não são corregedores do Supremo Tribunal Federal.' Para Peluso, é 'inconcebível' que um juiz, como De Sanctis, 'acabe por se transformar em parte visivelmente interessada num processo do qual é titular'. O ministro Carlos Ayres Britto tentou contemporizar os ânimos exaltados. Disse que não viu nenhum tom de insulto ou agressividade nas manifestações de De Sanctis nos autos. Chegou a falar que sequer vê como enquadrá-lo em algum dispositivo previsto pela Lei Orgânica da Magistratura. Na mesma linha amena de Britto, manifestaram-se os ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia, enfatizando que seria uma atitude ‘politizada demais’ questionar os juízes de primeira instância em nome da Corte. O presidente do STF, sugeriram, deveria fazer isso apenas em seu próprio nome. Mas Peluso se manteve irredutível. Mesmo assim, ficou acertado que o ministro Gilmar Mendes pediria ao CNJ informações sobre os resultados de um pedido de investigações sobre o juiz-alvo das represálias do STF. Em meio ao estoque de pedras legais lançadas contra De Sanctis, foi feita a votação do mérito e, por 9 votos contra 1, as liminares a favor de Dantas e sua irmã Verônica foram confirmadas. O outro Mello da Corte, Marco Aurélio, foi uma espécie de voz clamando no deserto. Fez bastantes elogios ao juiz De Sanctis: ‘O juízo de valor sobre as condutas do investigado vinculou-se a fatos concretos. Não houve desrespeito à decisão de Vossa Excelência.’ Mendes fez uma longa explanação para dizer que houve uma conjunção de forças para 'desmoralizar o Supremo', dizendo que Daniel Dantas foi libertado às nove horas de uma manhã e preso novamente às 15 horas do mesmo dia. O ministro Marco Aurélio lançou ironias para Eros Grau: 'O voto de Vossa Excelência é muito agradável para o paciente', ou seja, Daniel Dantas. Grau havia argumentado que 'prisão preventiva em situações que vigorosamente não a justifiquem equivale a antecipação do cumprimento de pena, pena a ser no futuro eventualmente imposta, a quem mereça, mediante sentença transitada em julgado'. Para Grau, 'a afronta ao princípio da presunção de não-culpabilidade é, desde essa perspectiva, evidente'. Assim, para ele, a decisão de libertar Dantas, determinada por Gilmar Mendes, teria sido 'irrepreensível'. Sobre os desdobramentos desse intrigante caso (intrigante talvez seja apenas um eufemismo), Eliane Catanhede escreveu a respeito, artigo que também deve ser lido, motivo pelo qual é reproduzido abaixo:

'Mundo de irracionalidade'

Eliane Cantanhêde

Al Capone extorquia, contrabandeava, vendia armas e bebidas ilegais, torturava e matava a sangue frio no século passado, nos EUA. Mas acabou sendo processado, condenado e preso por algo bem mais prosaico: sonegação fiscal e posse de armas.

Muitas décadas depois, no Brasil, Daniel Dantas é suspeito, principalmente, de um relacionamento extremamente heterodoxo com os Poderes da República, comprando, vendendo, articulando, desviando e manipulando a honra alheia, as decisões e os dinheiros públicos. Mas está sendo condenado agora pelo juiz Fausto De Sanctis também por algo bem mais prosaico: a tentativa de suborno contra policiais que o investigavam na Operação Satiagraha.

Nos dois casos, de Al Capone e de Daniel Dantas, o ponto em comum é o pragmatismo da Justiça. Se não é possível comprovar os assassinatos de um e os desvios bilionários do outro, as investigações embicaram para o que é de fato possível provar.

No caso do banqueiro brasileiro, de métodos e de personalidade absolutamente peculiares, há fitas de áudio e vídeo de seus, digamos, assessores Humberto Braz e Hugo Chicaroni, oferecendo propina em nome dele para os policiais em restaurante de São Paulo. Só que os policiais já haviam comunicado a Justiça e apenas fizeram o espetáculo para ser gravado e entrar para o processo - talvez para a história. Esses ‘assessores’ também foram condenados por De Sanctis.

As gravações justificaram uma batida nas casas deles e, na de Chicaroni, foi encontrada a bagatela de R$ 1,18 milhão em dinheiro, que seria para comprar os policiais. E, como bem registrou o juiz, ninguém até agora foi lá pedir a bolada de volta, como se fossem uns vinténs, ‘dado o mundo de irracionalidade em que vivem’.

Bem, estamos no Brasil, a Justiça brasileira é aquilo que estamos tão carecas, como De Sanctis, de saber. Portanto, esse imbróglio vai subir para várias instâncias e durar ainda muito e muito tempo. Talvez mais um século... Mas a sentença do juiz reequilibra um jogo cheio de emoções e com torcidas apaixonadas dos dois lados.

No início, houve um clamor popular contra Dantas e a favor da dupla De Sanctis - delegado Protógenes Queiroz. Depois, quando ficaram claros os buracos e os excessos das investigações de Protógenes, a balança se inverteu e foi ele que passou à berlinda, sendo afastado do caso e posteriormente até do cargo de elite na Polícia Federal.

Agora, com a decisão de primeira instância, Daniel Dantas está sendo condenado com provas consistentes e Protógenes continua respondendo dentro da própria corporação por arroubos ora juvenis, ora messiânicos. Nisso tudo, a Operação Satiagraha tem sido um grande aprendizado sobre direitos e deveres, bem e mal, impulsos e limites. Está, portanto, sendo de grande utilidade pública. Não só pelos seus méritos, mas muitíssimo pelos seus erros. E assim se consolida a democracia.  

(*) Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha em Brasília.

Resta, agora, continuar acompanhando os novos capítulos dessa novela. Daniel Dantas cumprirá a pena que lhe foi imposta pela justiça? Há um novo Habeas Corpus a caminho? Serão presos todos os juízes que se solidarizaram com De Sanctis? Protógenes será preso e deportado? Afinal, Daniel Dantas é mudo ou não? É verdade que o dinheiro apreendido com o braço direito de Dantas foi, de fato, impresso na Casa da Moeda? Lula sabia ou não? De quem era, afinal,  a cueca que transportava os euros? Em que circunstância e de quem era a voz da gravação feita pela polícia federal, com autorização da justiça, que diz, quase inaudível 'Tamo sifu'?. Sem dúvida, os próximos capítulos serão eletrizantes.'"

 

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