Migalheiros

16/12/2008
Nelson Castelo Branco Eulálio Filho

"'As paixões se tornam más e pérfidas quando são consideradas mal e perfidamente. Assim, o cristianismo conseguiu fazer de Eros e Afrodite – grandes potências capazes de se tornarem ideais – duendes infernais e espíritos enganadores, pelos martírios que fez surgir na consciência dos crentes por ocasião de todas as emoções sexuais. Não é pavoroso fazer de sentimentos necessários e regulares uma fonte de miséria interior e, dessa forma, querer fazer da miséria interior, em todo homem, algo necessário e regular? Além disso, é uma miséria mantida em segredo e, com isso mais profundamente arraigada: pois nem todos têm a coragem de Shakespeare, de confessar suas trevas cristãs nesse ponto, assim como ele o fez em seus sonetos. – Então algo, contra o qual se tem de combater, que se tem de manter dentro de limites ou, em certas circunstâncias, afastar inteiramente dos sentidos, deve ser sempre chamado mau? Não é próprio de almas vulgares sempre pensar mal de um inimigo? Em si os sentimentos sexuais têm em comum com os sentimentos da compaixão e adoração que aqui um ser humano, através de seu contentamento, faz bem a outro ser humano – não é tão freqüente encontrar na natureza arranjos tão benevolentes! E é precisamente isso que querem caluniar e corromper com a má consciência! Irmanar a geração do homem com a má consciência! – Por último essa demonização de Eros teve um desfecho de comédia: o 'demônio' Eros tornou-se pouco a pouco mais interessante aos homens do que todos os anjos e santos, graças aos cochichos e aos ares de mistério da Igreja em todas as coisas eróticas: ela fez com que, até em nossos tempos, a história amorosa se tornasse o único interesse efetivo que é comum a todos os círculos, em exagero inconcebível para a Antiguidade e que um dia ainda dará lugar à zombaria. Todas as nossas obras de poesia e pensamento, da maior à mais ínfima, são marcadas pela extravagante importância com que a história amorosa entra nelas como história principal, e mais do que marcadas: talvez por causa delas a posteridade julgue que em todo o legado da civilização cristã a algo de mesquinho e demente'. (F. Nietzsche - 'Aurora')."

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