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A abertura da Copa do Mundo

Jorge Antunes

A crônica do compositor traça um relato hipotético de como seria a abertura da Copa do Mundo: uma profusa exibição da cultura popular brasileira. Por isso, defende a presença da arte erudita no evento.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Atualizado em 9 de novembro de 2011 16:04

Jorge Antunes

A abertura da Copa do Mundo

O espetáculo é maravilhoso. O mundo inteiro, boquiaberto, à frente da televisão, assiste à Abertura da Copa do Mundo no estádio do Corinthians, em Itaquera.

Ao som de uma batida grave, em ritmo periódico semelhante ao de um drum'n'bass, dez mil ratos gigantes saem rastejando sincronicamente das laterais do estádio e invadem o gramado pouco a pouco. A enorme superfície se cobre com as ratazanas enormes. De repente, ao mesmo tempo em que acontece grande explosão de fogos de artifício e centenas de saraivadas entrecruzadas de raios laser, as ratazanas se abrem e surgem dez mil passistas de todas as escolas de samba de São Paulo. Eram eles que se escondiam dentro das ratazanas.

Ato contínuo, milhares de tambores, repiques e tamborins aparecem nas mãos dos sambistas. Então, uma monumental sinfonia de polirritmia percussiva invade os lares do mundo em retumbantes ressonâncias.

No céu surgem oito helicópteros que, com formação própria de uma esquadrilha da fumaça, com sincronismo perfeito, trazem, içada, uma enorme plataforma circular com cerca de quatrocentos metros quadrados. Mil volumes arredondados e amarelos, aparentemente pegajosos, estão simetricamente dispostos sobre a plataforma. Os volumes se mexem de modo aleatório, dando-nos a impressão de ondas de vermes gigantes de outro mundo.

Os tamborins e os repiques se calam. Ao som de um tutti majestoso dos tambores, os enormes volumes amarelos se rasgam. De dentro surgem mil mulatas belíssimas, com tapa-sexos de lantejoulas e nada mais sobre o corpo. A plateia e o mundo ecoam, em uníssono, um "hoooooooooo" jamais ouvido na face da Terra.

No centro da plataforma, também ornadas de lantejoulas reluzentes, estão nove cadeiras de roda. Não dá para reconhecer todos os ocupantes. Um deles é Joãozinho Trinta que está na cadeira do centro. Dentre as outras oito que rodeiam o mestre, é possível reconhecer a careca reluzente do Herbert Vianna. Outro é Marcelo Rubens Paiva. Em outra cadeira dá para reconhecer, pela barba, o Marcelo Yuka. Em outra está o governador que sofrera um acidente na semana anterior. No gesso de seu braço esquerdo - ninguém vê, mas eu soube - está um autógrafo de Gisele Bündchen. Ainda não chegou o momento de ela entrar.

De dois helicópteros simetricamente dispostos nas pontas do octaedro, surge grande e emocionante surpresa. Os dois soltam um cabo de aço. Na ponta de cada cabo pende uma caixa de acrílico transparente, mas às escuras. Luzes se acendem e o público explode em aplausos: numa caixa está Padre Marcelo. Na outra está a Xuxa.

Em cena cinematográfica, um enorme globo surge no centro e no alto, entre a plataforma de mulatas e os passistas no campo. Os jornais haviam anunciado esse efeito especial, fazendo segredo da tecnologia utilizada. O globo se abre irradiando raios de luzes coloridas em 360 graus. Dentro do globo está Zeca Pagodinho com um copo de cerveja na mão direita. Ele manda beijos para todos. Detém-se demoradamente, com seus gestos afetuosos, na direção da tribuna de honra onde estão os membros da comitiva da Fifa e os representantes dos patrocinadores internacionais. Pelé se levanta e aplaude freneticamente. Ele puxa Dilma pela mão, para que também ela se levante. Mas ela é relutante e continua sentada.

Epa! O aparelho de TV começou a tremelicar. Nunca pensei que um aparelho tão novinho pudesse pifar. Vim a São Paulo especialmente para isso. Não consegui o ingresso para o Itaquerão, e resolvi ver tudo aqui mesmo no hotel.

Ah! Voltou!

Algumas das ex-ratazanas, ou seja, alguns dos passistas começam a irradiar luzes de seus tambores, um após outro. As luzes fazem curvas e retas contínuas progressivamente. Agora já dá para entender: começam a escrever, com tambores de luzes, a palavra Gisele.

Meu amigo Noca me contou que pretendiam escrever Bündchen. Mas a organização decidiu mudar para Gisele. Temiam gargalhadas quando se completassem as quatro primeiras letras BUND.

Acho que é agora. Ela vai entrar.

Putz! Parou tudo. As luzes se apagaram no Estádio do Corinthians. Em seguida a TV parou. Um átimo de segundo depois o hotel ficou às escuras. Só no dia seguinte, à tarde, a Companhia de Eletricidade apresentou suas desculpas pelo apagão.

Brasileiros e brasileiras! Não quero nada disso! E vocês?

Urge ser elaborado e divulgado edital público destinado à seleção de projetos multi-artísticos para a cerimônia de abertura da Copa. Ele deverá fazer chamada para a inscrição de projetos que incluam não apenas a arte popular brasileira, mas também a arte erudita, com espaço para orquestras e compositores brasileiros, com obras compostas especialmente para a ocasião.

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*Jorge Antunes é compositor, maestro, membro da Academia Brasileira de Música e pesquisador sênior da UnB e do CNPq


 

 

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