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A credibilidade da prova testemunhal no processo penal

Testemunha é a pessoa que declara, sob o compromisso de dizer a verdade, de maneira imparcial, ter tomado conhecimento de algo interessante ao processo penal. Por isso, toda pessoa pode ser testemunha (art. 202, CPP).

quarta-feira, 10 de agosto de 2005

Atualizado às 07:48

A credibilidade da prova testemunhal no processo penal


Guilherme de Souza Nucci*

Testemunha é a pessoa que declara, sob o compromisso de dizer a verdade, de maneira imparcial, ter tomado conhecimento de algo interessante ao processo penal. Por isso, toda pessoa pode ser testemunha (art. 202, CPP). Aqueles que prestam declarações, sem o compromisso, são meros informantes, embora possam colaborar, igualmente, para a apuração da verdade real.

Quando se analisa a credibilidade do testemunho, deve-se iniciar pelo fator denominado testemunhabilidade, isto é, o interesse despertado na comunidade diante da declaração da ocorrência de um fato. Altavilla demonstra que esse interesse termina gerando fenômenos correlatos e conseqüenciais, tais como a memoriabilidade (capacidade que o fato possui de se fazer recordar com precisão), a fidelidade (situação subjetiva gerada no espírito da testemunha, consistente na capacidade de reproduzir com exatidão o que soube) e a sinceridade (situação subjetiva da testemunha, que se expressa sem a intenção de enganar). Sob tais prismas, por vezes, "um depoimento sem lógica, contraditório, é considerado pouco fiel, porque se julga que a testemunha não se recorda bem, ou então insincero, ao passo que os testemunhos correntes dão uma impressão de fidelidade e de veracidade; e pode ser o contrário, provindo o primeiro de uma dificuldade em se exprimir, ou de um fenômeno de timidez, ao passo que a naturalidade do segundo pode derivar de uma hábil preparação" (Psicologia judiciária, v. II, p. 251-252).

Diante disso, é essencial que o magistrado tome as cautelas devidas para interpretar e valorar um depoimento, conferindo-lhe ou não credibilidade, crendo tratar-se de uma narração verdadeira ou falsa, enfim, analisando-o com precisão. Pode dar-se a situação do fato-objeto do testemunho não ser memorável, razão pela qual a pessoa que o presenciou, no contexto da memória naturalmente seletiva que possui o ser humano, afaste-o, relegando-o a um segundo plano. Por isso, nem sempre a testemunha que vacila ao responder às indagações feitas pelo juiz, omitindo situações relevantes, está agindo de má-fé. Por outro lado, em se tratando de fato digno de registro na memória, é possível que a testemunha esteja sendo fiel e sincera ao narrá-lo, embora entre em contradição e ofereça respostas desconexas. Não está mentindo, mas realmente não se recorda, por variadas razões, do que houve. Argumente-se, ainda, que o fato memorável pode ser contado de modo infiel e insincero, mas de maneira perfeita e lógica, fruto, como se viu na lição de Altavilla, do mais arguto preparo. Está mentindo e o magistrado nem percebe. Em conclusão, pois, é curial ter o julgador a sensibilidade para compreender que as pessoas são diferentes na sua forma de agir, captar situações, armazená-las na memória e, finalmente, reproduzi-las. Descortinar e separar o depoimento verdadeiro e crível, do falso e infiel é meta das mais árduas no processo, mas imprescindível para chegar ao justo veredicto.

Outro aspecto extremamente importante é a declaração prestada por criança (sempre informante) e adolescente (informante ou testemunha, conforme o caso, já que podem prestar o compromisso a partir dos 14 anos, segundo o art. 208, CPP). Relatos nos mostram que muitos erros judiciários originam-se da credibilidade exagerada que magistrados concedem a essas informações. Justifica-se essa situação pela fragilidade tanto da criança quanto do adolescente para elaborar uma narrativa fiel dos fatos porventura assistidos, sem lançar qualquer fantasia ou mentira, frutos da inexperiência e da instabilidade psicológica e emocional dos seres em desenvolvimento.

Observa-se que a criança, por ficar sempre na superfície das coisas, quer por preguiça de espírito, quer por ignorância ou falta de hábito, termina guardando na memória poucos dados interessantes sobre determinado fato. O que é velho na sua memória sempre prejudica o novo. Assim, seu processo de associação de idéias é sensivelmente diminuído. Quando colocada para reconhecer algum suspeito, pode trazer à sua memória a imagem de pessoas conhecidas e não exatamente do agente do crime, prejudicando o reconhecimento ou terminando por reconhecer quem efetivamente não cometeu a infração penal. Tendo em vista que a memória da criança é frágil, muitas são as situações em que, forçada a se lembrar de algo importante, termina completando a sua falta de informação com dados extraídos da fantasia e da imaginação. O infante tem dificuldade de lidar com a noção de espaço e tempo, razão pela qual, desejando o juiz captar, exatamente, o que lhe significou determinado período, deve lançar mão de comparações. Assim, em lugar de falar em horário de adulto (19:00 horas, 23:00 horas etc.), precisa fazer referência ao horário da própria criança, como o momento em que almoça, janta, brinca, vai para a cama etc. Lembremos, ainda, que, por ser altamente sugestionável, jamais deve o magistrado completar-lhe frases, pedindo que confirme com um "sim" ou um "não". A criança, para agradar quem a ouve, certamente terminará concordando com o almejado pelo interrogante.

Sob outro aspecto, a turbulência da adolescência apresenta apenas algumas diferenças com a fase infantil. Deve-se continuar a ter cautela com determinados depoimentos, agora, especialmente, no contexto sexual, pois o desenvolvimento do ser humano, nessa fase, é marcado pelo descobrimento da sua sexualidade. Tal situação pode acarretar perturbações sensoriais, emotivas e psicológicas, razão pela qual a fantasia ingressa nas suas narrativas, também como forma de suprir determinadas frustrações e incompreensões. Segundo estudos realizados, somente a partir dos 14 anos começa a pessoa a se tornar mais confiável nos seus relatos, o que, aliás, redundou no já mencionado art. 208 do Código de Processo Penal.

Por fim, outro fator interessante que o juiz pode e deve levar em consideração é a natural diferença entre os depoimentos prestados por homens e mulheres, especialmente pelo fato de que cada um dos sexos capta, armazena e reproduz o que viu ou ouviu de maneira distinta e peculiar, havendo divergente intercomunicação entre o racional e o emotivo de cada um. O homem é mais racional, enquanto a mulher é mais influenciada e condicionada pela emotividade ao apreender acontecimentos, guardando-os na memória. Por outro lado, quanto à impulsividade, a mulher apresenta-se mais instável e não constante no seu comportamento, gerando decisões mais rápidas, imprevistas e até inesperadas. Tende, pois, a descontrolar-se mais facilmente no depoimento, que é um ato formal e cerimonioso. No aspecto intelectivo, a mulher possui inteligência mais analítica do que o homem, captando particularidades de um fato de maneira mais hábil, embora tenha dificuldade de ordenar o que captou, apresentando em visão unitária ao juiz. Cabe a este ter a devida paciência para extrair o conjunto da narrativa. Pequenos detalhes para a mulher são fundamentais, enquanto para o homem, irrelevantes. Na verdade, a testemunha do sexo masculino fornece um quadro mais unitário do que viu e ouviu, embora não se possa exigir do homem muitos detalhes, pois é da sua própria formação intelectiva não armazená-los. Em matéria de captação de elementos sensíveis, muito peculiares aos crimes sexuais, contra a honra, passionais em geral, a testemunha-mulher tem maiores condições de descrição do fato, até porque trabalha com a intuição, apreendendo elementos que ao homem passam desapercebidos (cf. Mario Fedeli, Temperamento, caráter, personalidade - ponto de vista médico e psicológico, p. 228-229).

Em suma, a tarefa do julgador, ao analisar a credibilidade da prova testemunhal, é um exercício de sensibilidade e paciência, representando, muitas vezes, um autêntico jogo de comparações e confrontos.

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Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Processo Penal pela PUC-SP, Magistrado em São Paulo





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