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Emendas absurdas ao Código Civil

Não há maior equívoco do que considerar o novo Código Civil, de 2002, isento de defeitos e insuscetível de emendas. Como aconteceu com o Código de 1916, que em 1919 foi objeto de centenas de alterações, é natural que o atual também sofra mudanças, em virtude de dúvidas ou enganos constatados em seu contato com a realidade.

segunda-feira, 28 de abril de 2003

Atualizado em 29 de abril de 2003 08:42

 

Emendas absurdas ao Código Civil

 

Prof. Miguel Reale*

 

Não há maior equívoco do que considerar o novo Código Civil, de 2002, isento de defeitos e insuscetível de emendas. Como aconteceu com o Código de 1916, que em 1919 foi objeto de centenas de alterações, é natural que o atual também sofra mudanças, em virtude de dúvidas ou enganos constatados em seu contato com a realidade. Há falhas que somente a experiência denuncia, exigindo retificação.

É essencial, todavia, que as emendas somente sejam oferecidas após cuidadoso e demorado estudo, sem improvisação e açodamento, os dois males que ameaçam toda tarefa legislativa, máxime em se tratando de um código que se apresenta sempre como uma "unidade sistemática", na qual a modificação de um artigo pode implicar a de vários outros, com sacrifício de seus princípios formadores.

Essa minha observação cresce de ponto se lembrarmos que a nova Lei Civil deu preferência a normas ou cláusulas abertas, sendo superado o rigorismo formalista que caracterizava o código revogado, concebido sob a influência da escola francesa da exegese e a dos pandectistas germânicos, ambas pretendendo tudo resolver mediante explícitas categorias jurídicas, não deixando espaço para a experiência normativa dos tribunais e a doutrina elaborada pelos juristas.

Nesse sentido, o que à primeira vista poderá parecer omissão ou lacuna, na realidade, constitui um vazio deixado propositadamente a soluções de caráter experiencial. É esse modo de ver que me leva a considerar dispensáveis ou excessivas algumas das reformas abrangidas pela chamada Emenda Fiúza, notadamente em matéria de Direito de Família e Adoção, não obstante haja nela propostas merecedoras de acatamento.

O que mais me parece criticável na citada emenda oferecida pelo deputado Ricardo Fiúza - cuja magnífica atuação, como relator na Câmara dos Deputados, foi decisiva para a aprovação do projeto de Código Civil - diz respeito a duas de suas questões centrais, uma concernente à responsabilidade objetiva e a outra pertinente ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, e sua resolução por onerosidade excessiva. A meu ver, essas duas questões, objeto, respectivamente, de emendas aos artigos 478, 479 e 480 e ao parágrafo único do artigo 927, representam pontos dos mais altos da nova codificação.

O referido parágrafo único assim dispõe: "Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."

Como se vê, a "teoria do risco", geralmente invocada para a conceituação da "responsabilidade objetiva", foi combinada com a idéia de "estrutura", de conformidade com o que expliquei na introdução ao volume editado, em 1984, pelo Ministério da Justiça, dando conhecimento da análise feita, por todos os membros da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, das 1.069 emendas oferecidas pela Câmara dos Deputados ao projeto a ela enviado, em 1975, pelo presidente Ernesto Geisel.

"Responsabilidade subjetiva, ou responsabilidade objetiva?", indagava eu.

"Não há que fazer essa alternativa. Na realidade, as duas formas de responsabilidade se conjugam e se dinamizam. Deve ser reconhecida, penso eu, a responsabilidade subjetiva como norma, pois o indivíduo deve ser responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou dolosa.

Mas isso não exclui que, atendendo à estrutura dos negócios, se leve em conta a responsabilidade objetiva. Este é um ponto fundamental. O conceito de estrutura não é privilégio do estruturalismo, que é um dos tantos modismos filosóficos do nosso tempo. O conceito de estrutura, ao contrário, é um conceito sociológico e filosófico fundamental, como no-lo mostra a obra de Person ou de Merton, e desempenha papel cada vez mais relevante no mundo do Direito, esclarecendo o antigo e renovado conceito de natureza das coisas, cuja aceitação independe, não é demais adverti-lo, para evitar equívocos correntes, do fato de admitir-se, ou não, qualquer modalidade de Direito Natural."

"Pois bem, quando a estrutura ou natureza de um negócio jurídico, como o de transporte ou de trabalho, só para lembrar os exemplos mais conhecidos, implica a existência de riscos inerentes à atividade desenvolvida, impõe-se a responsabilidade objetiva de quem dela tira proveito, haja ou não culpa."

O reconhecimento da responsabilidade objetiva ocorre, hoje em dia, no Direito de todos os países cultos, bastando lembrar, nesse sentido, as Súmulas n.ºs 341 e 492 do Supremo Tribunal Federal.

Quanto à preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, bastará dizer que ela já foi expressamente consagrada pelo Direito pátrio nos contratos administrativos, como resulta do artigo 65, II, letra d, da Lei n.º 8.666, de 21 de junho de 1993, "na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis ou previsíveis, porém de conseqüências incalculáveis".

Outra coisa não diz o impugnado artigo 478, que estatui: "Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação."

A teoria da revisão dos contratos em virtude de superveniente onerosidade excessiva foi proclamada pelo Código Civil da Itália de 1942, em seus artigos 1.467 e 1.468, e daí se estendeu a todas as nações que põem as exigências da justiça concreta acima de ajustes de longa duração, que graves fatos imprevisíveis tornaram sumamente onerosos para uma das partes.

No Brasil, esse reconhecimento não é novidade, desde quando o mestre Orlando Gomes, na sua obra clássica sobre Contratos, escreveu: "Portanto, quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando conseqüências imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no cumprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertada: ocorrendo anormalidade da alea que todo contrato dependente de futuro encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações" (13.ª ed., pág. 20).

Cabe advertir que as emendas supra referidas não propõem diretamente a revogação dos artigos lembrados, mas manhosamente lhes altera o conteúdo com mandamentos anódinos... É óbvio que tais emendas, reflexos de uma concepção arcaica do Direito, não podem ser acolhidas pelo Congresso Nacional.

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* Sócio do escritório Reale Advogados Associados

 

 

 

 

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