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O medo nosso de cada dia

Morei na Noruega por mais de um ano e jamais vi na televisão local notícias sobre o Brasil. A única vez que exibiram trechos de uma partida de futebol foi para me informar que o Corinthians havia perdido do Santos por 3 a 1. Tanta notícia mais agradável e me brindam com essa? Takk, bare bra!

terça-feira, 25 de julho de 2006

Atualizado em 24 de julho de 2006 11:58


O medo nosso de cada dia

Adauto Suannes*

 

Morei na Noruega por mais de um ano e jamais vi na televisão local notícias sobre o Brasil. A única vez que exibiram trechos de uma partida de futebol foi para me informar que o Corinthians havia perdido do Santos por 3 a 1. Tanta notícia mais agradável e me brindam com essa? Takk, bare bra!

 

Aliás, o mundo fora da Escandinávia para eles parece não  existir.  Mesmo tendo os vikings chegado aonde chegaram, a visão atual dos noruegueses não os faz enxergar algo além da Escandinávia. Alguma tragédia na Europa ou mesmo na Ásia e o noticiário perde alguns segundos com sua divulgação. América do Sul? Nem pensar.

 

Pois recentemente recebi várias mensagens aflitas de amigos que lá deixei. Eles se referiam a uma cena  que  foi  amplamente  divulgada  no mundo todo: presos segurando a cabeça de um colega pelos cabelos, depois de haver ela sido separada do corpo O simbolismo da cena poderia levar-me a muitas divagações, que vou esforçar-me para evitar. Quero apenas situar-me no aspecto trágico da cena, que conduz, inevitavelmente, nosso caboclo PCC a ser equiparado a um desses grupos terroristas que brotam como cogumelo depois da chuva, sejamos pouco originais, e que, quase sempre, nós não conseguimos identificar seus propósitos.

 

Tentemos dizem quem é quem nesse quebra-cabeças. Taliban é o partido político daqueles que se destinam ao estudo do Corão, nome daquele livro que alguns denominam Alcorão, esquecidos de que esse Al é o artigo que antecede a palavra Corão, palavra que significa simplesmente leitura. Al Aksa (A Sagrada Mesquita) é o nome das brigadas que constituem o braço armado da Al Fatah (A Ação), primitivamente ligadas a Yasser Arafat. Jihad é o nome da Guerra Santa, uma espécie de Cruzadas invertidas, destinadas a propagar a fé no islamismo. Sunita é o nome de todo seguidor da fé islâmica, sendo que os xiítas muçulmanos combatem a laicidade do Estado, pregando sua ligação com a religião. Hesbolah (Movimento pro Alá) é facção dos xiitas que ocupa o sul do Líbano. Al Qaeda (A Rede) é o grupo fundamentalista islâmico, nascido na Arábia Saudita, que pratica atos terroristas só contra os Estados Unidos.

 

A propósito do termo terrorismo, não há unanimidade sobre o seu conteúdo. Noam Chomsky, pensador norte-americano de origem judaica, define terrorismo como "uso calculado ou ameaça de emprego de meios danosos contra populações civis em nome de convicções políticas, religiosas ou ideológicas, em sua essência, sendo isso feito por meio de intimidação, coerção ou instilação do medo"1. Sob tal prisma, os atentados perpetrados por homens-bomba e pelos membros do Hesbolah não escapariam do rótulo. Tanto quanto o revide israelense. Mas, apenas eles?

 

O mesmo Chomsky afirma que ao longo do século XX muitas das ações do seu país se enquadrariam também em tal rubrica. "Os EUA estão oficialmente comprometidos com o que é chamado de 'ações de guerra de baixa intensidade'. Essa é a doutrina oficial. Se alguém lesse as definições-padrão de 'conflito de baixa intensidade' e as comparasse com as de 'terrorismo', em qualquer manual do exército ou no U.S. Code2, repararia que são praticamente iguais."3 

 

E, para mostrar que não está só, cita o cientista político Michael Stohl: "Precisamos reconhecer que, pelo que se tem convencionado - e devo enfatizar que se trata apenas de uma convenção - a utilização de um grande poder e a ameaça de se usar a força são normalmente descritas como diplomacia coercitiva, e não como uma forma de terrorismo", embora envolva usualmente "a ameaça e freqüentemente o uso de violência para o que seria descrito como propósito terrorista, caso não fossem grandes potências a se utilizarem de tal tática", de acordo com o sentido literal do termo.4  

 

Consta que os EUA lançaram recentemente um satélite para bisbilhotar qualquer conversa telefônica que cite esses nomes que eu citei. O intuito é lastrear as comunicações e tentar identificar terroristas. Isso me deixou muito preocupado com meus amigos que falam espanhol, como, por exemplo, o Ignácio Vélez, pois muitos deles serão certamente vigiados.  Basta que algum deles diga à namorada um "¡Jamás te olvidé!  e será imediatamente investigado, se não for preso e mandado para Guantánamo como ex-integrante confesso de um grupo terrorista.  Os Men in Black possivelmente não saberão que esses cucarachas, quando querem referir-se ao never, o "jamais" espanhol, usam a palavra  jamás, cuja pronúncia é muito semelhante ao nome de um movimento palestino xiíta, o Hamas, que, por sinal, significa apenas Catecismo.

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1Noam Chomsky, 11 de Setembro, Editora Bertrand Brasil, 2002, p. 104

 

2textualmente, "ato de terrorismo quer dizer qualquer atividade que: a) envolva um ato violento ou uma séria ameaça à vida humana que seja considerado delito pelos Estados Unidos ou qualquer outro Estado, ou que seja delito assim reconhecido, se praticado dentro do território jurisdicional americano ou de qualquer outro Estado;  e b) aparente (i) ser uma intimidação ou coerção à população civil; (ii) influencie a política governamental por meio de intimidação ou coerção; ou (iii) ameace a conduta de um governo por um assassinato ou seqüestro" (apud Chomsky, ob. cit., p. 17, nota de rodapé)

 

3Noam Chomsky , ob. cit., p. 65

 

4cf. Noam Chomsky, ob. cit., p. 18

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*Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, membro fundador do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, da Associação Juízes para a Democracia e do Instituto Interdisciplinar de Direito de Família







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