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Voto aberto no julgamento de parlamentares

O voto secreto é uma garantia fundamental da democracia. Por meio do voto secreto fica assegurada a manifestação livre da vontade do eleitor, que não deve sofrer qualquer constrangimento, e, ao mesmo tempo, fica afastada a possibilidade de compra do voto. Entretanto, é um pressuposto do voto secreto a absoluta liberdade de quem vota. Por essa razão, na Constituição Federal, art. 14, essa garantia é conferida ao cidadão, para o livre exercício de seus direitos políticos.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Atualizado às 08:42


Voto aberto no julgamento de parlamentares*

Adilson Abreu Dallari**

O voto secreto é uma garantia fundamental da democracia. Por meio do voto secreto fica assegurada a manifestação livre da vontade do eleitor, que não deve sofrer qualquer constrangimento, e, ao mesmo tempo, fica afastada a possibilidade de compra do voto. Entretanto, é um pressuposto do voto secreto a absoluta liberdade de quem vota. Por essa razão, na Constituição Federal, art. 14 (clique aqui), essa garantia é conferida ao cidadão, para o livre exercício de seus direitos políticos.

Essa plena liberdade de manifestação da vontade não existe nas votações parlamentares, motivo pelo qual não tem sentido algum estender a garantia do voto secreto aos mandatários políticos além daquilo que está expressamente previsto na Constituição Federal, podendo-se afirmar serem inconstitucionais as normas legais e regimentais que estabelecem o voto secreto no julgamento de Chefes de Executivo processados por acusação de cometimento de crime de responsabilidade. É o que se passa a demonstrar.

O primeiro princípio fundamental contido na Constituição Federal é o princípio republicano. República é o governo dos iguais. Por mais paradoxal que isso possa parecer, na república não há diferença substancial entre governantes e governados, como, por exemplo, existe na monarquia. Na república, aqueles que temporariamente e mediante mandato outorgado pelo corpo social, exercem o Poder, não se transformam em seres superiores, inimputáveis, como acontecia com o Imperador, quando vigente a Constituição Imperial de 1824, cujo art. 99 (clique aqui) afirmava que ele não estava sujeito a responsabilidade alguma, por ser sua pessoa "inviolável e sagrada". A responsabilidade pelo atos praticados é inerente ao exercício do Poder no sistema republicano.

A responsabilidade política do Chefe do Poder Executivo, está efetivamente prevista no texto da Constituição Federal de 1988, arts. 85 e 86, nos quais está previsto que a tipificação dos crimes de responsabilidade e o seu processo serão definidos em lei especial, mas não há previsão alguma de que o julgamento seja feito mediante voto secreto. Isto não é uma simples omissão; não significa outorga de liberdade ao legislador ordinário para decidir. Trata-se, isto sim, do chamado silêncio eloqüente: a Constituição implicitamente proíbe o voto secreto nessa situação, pois quando o voto deve ser secreto ela assim estipula expressamente.

Registre-se, apenas, que a Lei nº 1.079, de 10/4/50 (clique aqui), atualmente em vigor, em seu art. 31, estabelece que no julgamento do Presidente da República, a votação será nominal, o que significa, aberta, conforme efetivamente foi feito no julgamento do Presidente Fernando Collor. Da mesma forma, o Decreto-lei nº 201/67 (clique aqui), que trata da responsabilidade dos Prefeitos, no art. 5º, VI, também determina a votação nominal.

Mais importante, porém, é salientar que a regra geral, na Constituição Federal, é a da votação em aberto, em consonância com o princípio da publicidade, previsto no art. 37, que é aplicável a todos os Poderes, em todos os níveis de governo. Até mesmo o Poder Judiciário, neutro, isento, soberano em suas decisões, nos termos do art. 93, IX e X, está sujeito às regras da publicidade de todos os julgamentos e da motivação (explicitação dos motivos) de todas as decisões. Quanto ao Poder Legislativo, no art. 53, está prevista a inviolabilidade de Deputados e Senadores por seus votos. Evidentemente isso não seria necessário se, por estipulação regimental, o voto pudesse ser sempre secreto.

Quando, para preservar a liberdade de atuação se faz necessário garantir o sigilo, a Constituição expressamente afirma que o voto será secreto, como é o caso das decisões do júri (art. 5º, XXXVIII, b). Poderá, excepcionalmente, haver sigilo, quando indispensável para preservar a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas (art. 5º, X).

Há, sim, expressa previsão de voto secreto para o julgamento, por seus pares, de Deputados e Senadores, em alguns casos, conforme previsto no § 2º, do art. 55. Tais casos se referem a votações no Plenário, por todos os parlamentares. Somente nestes casos, supostamente para evitar constrangimentos e assegurar a livre manifestação de vontade é que, expressamente, taxativamente, se estipula o voto secreto. Onde não houver previsão expressa, deverá ser observada a regra geral da publicidade.

Não é possível estender a votação secreta, por determinação regimental, a outras situações, pois isso seria o mesmo que alterar a Constituição por meio de uma norma de menor hierarquia.

Convém lembrar, entretanto, que a Constituição Federal em vigor foi aprovada por um Congresso Constituinte, mas não por uma Assembléia Constituinte exclusiva. Ou seja, a Emenda Constitucional nº 26, de 27/11/85 (clique aqui), conferiu aos Deputados e Senadores competência para editar uma nova Constituição. O resultado disso foi a inserção, no texto constitucional produzido, de uma série de dispositivos nitidamente destinados a amparar interesses pessoais dos próprios parlamentares. O voto secreto no julgamento de seus pares é uma claríssima evidência dessa legislação em causa própria.

Com efeito, na prática, isso tem servido a um corporativismo desmedido, assegurando a mais ampla proteção a parlamentares pilhados no cometimento de delitos e atos indecorosos, pois as votações secretas impedem que os eleitores saibam quem votou como. Ou seja, o voto secreto foi totalmente desvirtuado, servindo como um biombo para esconder acordos espúrios, subtraindo aos eleitores o direito de saber como votou este ou aquele representante do povo.

Diferentemente dos particulares, das pessoas privadas, os agentes públicos, e especialmente os titulares de mandato, devem dar satisfação de seus atos, devem estar sujeitos ao acompanhamento e controle de suas decisões. Enquanto pessoas físicas, no relacionamento social e familiar, devem ter a intimidade protegida; mas no exercício de função pública, quanto a atos praticados no exercício do mandato popular, estão submetidos à regra geral da publicidade, que é princípio fundamental da Administração Pública.

Em artigo publicado na imprensa paulista ("FHC e as gravações clandestinas", Folha de S. Paulo, 7.6.1999), Celso Antônio Bandeira de Mello despertou a atenção para essa importante distinção: "Há uma diferença essencial entre a pessoa física que exerce função pública e sua posição enquanto exercente dela. A ausência de intimidade característica desta última se reflete até sobre seu ocupante. Por isso a lei exige dos titulares de cargo político declaração pública de bens. Não poderia fazê-lo em relação à generalidade dos cidadãos, sob pena de ferir o direito constitucional à intimidade, assegurado no art. 5º".

Isso se aplica aos agentes públicos em geral, mas com maior intensidade ao titulares de mandatos legislativos, pois estes não atuam, decidem ou votam, senão e exclusivamente na qualidade de representantes do povo. Todo mandatário deve prestar contas de seus atos ao mandante; o titular de mandato representativo está especialmente obrigado a evidenciar sua fidelidade aos seus constituintes.

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*Artigo publicado no Portal Migalhas (www.migalhas.com.br) em 30.8.2007

**Professor Titular de Direito Administrativo da PUC/SP





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