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Quando se é isento é que se paga o Imposto

Imagine-se um contribuinte de ICMS que decide renunciar à isenção a qual tem direito para passar a recolher normalmente o imposto quando das saídas de mercadoria de seu estabelecimento. Essa situação pode surpreender, numa primeira análise, alguns juristas e empresários brasileiros. Mas a opção pela tributação não só existe como, de fato, é exercida em diversos países no tocante ao imposto sobre valor agregado. O Brasil, por outro lado, não prevê essa opção quando se fala em isenção de ICMS. Deveria. Veja-se porque.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Atualizado em 8 de novembro de 2007 12:07


Quando se é isento é que se paga o Imposto

Vanessa Arruda Ferreira*

Imagine-se um contribuinte de ICMS que decide renunciar à isenção a qual tem direito para passar a recolher normalmente o imposto quando das saídas de mercadoria de seu estabelecimento. Essa situação pode surpreender, numa primeira análise, alguns juristas e empresários brasileiros. Mas a opção pela tributação não só existe como, de fato, é exercida em diversos países no tocante ao imposto sobre valor agregado. O Brasil, por outro lado, não prevê essa opção quando se fala em isenção de ICMS. Deveria. Veja-se porque.

A imunidade e isenção, como formas de desoneração tributária que são, deveriam reduzir a carga tributária do contribuinte, diminuindo a receita orçamentária do Estado, autorizada normalmente em troca de um estímulo a determinada região, grupo ou setor econômico. Mas em matéria de ICMS, esse efeito não somente não é alcançado, como acaba por encarecer a operação realizada e a aumentar a carga fiscal de toda cadeia, desvirtuando características essenciais desse tributo. Isso tudo em função de uma regra existente na Constituição da República (clique aqui), em seu artigo n°. 155, § 2°, inciso II, alíneas "a" e "b" : a vedação ao crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes à imune ou isenta e a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

A característica primordial do ICMS é a não cumulatividade do imposto. É a possibilidade que se tem de deduzir o imposto pago nas operações anteriores, ou seja, de se deduzir o imposto recolhido sobre a base de cálculo até aquele momento composta, de modo que o imposto efetivamente pago passará a ser o incidente sobre o valor agregado por aquele contribuinte naquela operação. Toda a razão de ser do ICMS reside pura e simplesmente nessa técnica instituída pelos franceses e copiada no todo o mundo, e que objetiva nada mais que a neutralidade do imposto1.

Ocorre que a anulação de créditos referentes às operações anteriores rompe a cadeia de deduções e introduz distorções no circuito econômico. Em outras palavras, o ICMS se torna cumulativo. A vedação da compensação do imposto relativo às operações anteriores implica no recolhimento do ICMS, nas operações posteriores à isenta ou imune, sobre todo o valor da mercadoria, e não somente sobre o valor agregado, de forma que a mesma base de cálculo, tributada nas operações anteriores, será pela segunda vez tributada. Assim, o total de imposto recolhido ao final da cadeia será maior do que aquele que teria sido, por incrível que pareça, se isenção não houvesse.

Além disso, a vedação da utilização do crédito referente à própria operação isenta ou imune pelo contribuinte seguinte no circuito econômico implica na tributação da própria base de cálculo isenta. Basta lembrar-se que o valor agregado pelo contribuinte isento ou imune, e que é o objeto da desoneração tributária nessa operação, passará a compor também a base de cálculo da operação seguinte, totalmente tributada, justamente em virtude dessa vedação de utilização e anulação de créditos. Ou seja, a própria imunidade ou isenção desaparecerá, não conferindo, assim, ao final da cadeia a redução da carga tributária do circuito econômico.

Os países que tributam o consumo pelo imposto sobre valor agregado, equivalente ao ICMS brasileiro, reconhecem a problemática e tentam eliminar ou reduzir de diversas formas essa descaracterização do imposto. A França ofereceu a grande parte dos contribuintes isentos naquele país a possibilidade de opção pela renúncia ao benefício e submissão ao IVA, de forma a recuperar a coerência da sistemática de dedução em todas as fases da cadeia e a assegurar a neutralidade do imposto - o sistema de "TVA par option". É o caso, por exemplo, de algumas atividades bancárias e financeiras, cuja opção é assegurada pelo artigo n°. 260 B do "Code General dês Impôts"2.

A mesma solução também foi dada na América Latina, pelo Peru, quando o legislador estabeleceu, no artigo 7° da "Ley del Impuesto General a las Ventas y Impuesto Selectivo al Consumo", aprovado pelo Decreto Supremo n°. 05-99-EF, que "podrán renunciar a la exoneración optando por pagar el impuesto por el total de dichas operaciones, de acuerdo a lo que estabelezca el Reglamento".

Solução diferente foi encontrada em Guadalupe, Martinica e Reunião, ex-colônias francesas e hoje reconhecidas como Departamentos de Ultramar Francês, onde foi permitida a concessão de um crédito presumido referente ao imposto nunca pago nas operações isentas. No caso de impossibilidade de utilização do crédito presumido, é assegurando ao contribuinte o pagamento desse montante pelo Fisco por meio de requerimento de reembolso de crédito. Esse regime surgiu a partir de uma decisão ministerial de 2.11.53, pela qual foi previsto que o imposto não pago deveria ser considerado como recolhido e poderia ser compensado com o IVA incidente nas operações subseqüentes. Resgatou-se, assim, a não-cumulatividade do imposto.

O Brasil parece ainda não dar a devida atenção ao problema, sem mostrar sinais de discussão efetiva para resolução da questão. Pelo contrário, o fato de a norma proibitiva dos créditos estar na Constituição da República dificulta, sobretudo para aqueles mais positivistas, o próprio reconhecimento da incoerência da regra. Esquecem, portanto, que antes do princípio da legalidade há a própria razão de ser da norma, onde a lógica fiscal-econômica exerce forte influência, sobretudo em matéria tributária. E essa premissa, essa base fundamental, parece não estar presente no artigo n°. 155, 2º, inciso II, alíneas "a" e "b" da Constituição. Além disso, há o próprio conflito do artigo com o Princípio da Não-Cumulatividade, constitucionalmente protegido. Ficam, portanto, aí as sugestões encontradas por outros países para a problemática existente também no Brasil, onde poucos talvez tenham até o momento percebido que, na verdade, em matéria de ICMS, quando se é isento é que se paga o imposto.
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1 Possibilidade de dois produtos idênticos, vendidos pelo mesmo preço ao consumidor final, suportarem a mesma carga de imposto indireto quaisquer que sejam as condições de venda (circuito longo ou curto) e quaisquer que sejam as condições de fabricação desses produtos.

2 Vale lembrar que o IVA é imposto que incide não somente na circulação de mercadoria, mas também na prestação de serviços, equivalendo a uma junção do ICMS e ISS brasileiros.
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*Advogada do escritório Trigueiro Fontes Advogados




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