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Eixos da ilegalidade

O professor-doutor e bâtonnier paulista Luiz Flávio Borges D'Urso, em notável síntese publicada na Folha de São Paulo (2.5.07, p. A3-Tendências/Debates), sob o título Rompendo os eixos da legalidade, focaliza com sua costumeira sabedoria o problema da súmula vinculante, deixando posta sua opinião contrária ao instituto que tende ao risco de rupção dos eixos da legalidade e da liberdade.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Atualizado em 28 de novembro de 2007 07:19


Eixos da ilegalidade

Antônio Carlos de Martins Mello*

O professor-doutor e bâtonnier paulista Luiz Flávio Borges D'Urso, em notável síntese publicada na Folha de São Paulo (2.5.07, p. A3-Tendências/Debates), sob o título Rompendo os eixos da legalidade, focaliza com sua costumeira sabedoria o problema da súmula vinculante, deixando posta sua opinião contrária ao instituto que tende ao risco de rupção dos eixos da legalidade e da liberdade.

Com a humildade sugerida pelos meus míseros títulos acadêmicos e o tirocínio arrebatado das lides forenses nesses últimos quarenta e tantos anos, sempre me alinhei com os espantados pelo temor de que as criações cerebrinas de suspeitos taumaturgos, depois da adesão de certo número de curiosos, acabem por impor-se pela força do Estado, cujas burras, alimentadas pela plebe ignara, acabem pagando muito caro pelas tentativas vãs de mezinhas inúteis e até prejudiciais.

Pois bem, num modelo processualista, que prestigia o casuísmo da eventualidade coram judice para a produção decisória, adere-se ao stare decisis et quieta non movere, gerando a inevitável superação do processado pela common law. Não estou aqui a desafiar a sabedoria dos pretórios excelsos, senão apenas por admirar-me que haja alguém que creia na possibilidade idealista de fórmulas genéricas para as questões postas em juízo, cuja mais conspícua produção será a negativa, parcial ou total, da correta jurisdição, a pretexto de beneficiar uma imaginária eficiência. Pura míngua de imaginação e sabedoria para emprestar remédio a um problema que não é do povão, mas de suas pachorrentas elites.

Pode ser compatível o uso anglo-saxão com nossa escola, mas jamais mediante a imposição de um entendimento genérico, por definição, à complexa realidade do ordenamento. Não foi outro, senão esse nosso temor, o que levou João Sem Terra e seus barões, em 1.215, a adotar a Magna Charta, num caminho inverso, a meu ver, ao critério que prevalece, no Brasil de hoje, para as relações sociais. Com efeito, preso pelos germanos o irmão Ricardo, o promotor de cruzadas, viu-se João tentado a lançar impostos para o resgate milionário, como lhe era usual - ou sumulado, vá lá - na cobertura de suas despesas; a criação de regras pontuais, de acordo com os barões, disciplinaria, daí por diante, em geografia estrangeira, parece inevitável discernir na experiência o inverso da súmula vinculante, que generaliza modelos fixos para eventos diversos, não a pretexto de exame pontual, mas da generalização das soluções que outras causas passaram a dificultar em nosso tempo e território.

É assim que, séculos depois, numa pequena ex-colônia lusa do hemisfério sul, uma plêiade de sábios juristas, fomentada pela ignorância de alguns aproveitadores da ignorância alheia e pela sacra aurea fames das elites, parte altaneira para a solução simplista de elaborar modelos genéricos do trabalho difícil e glorioso da criação jurisprudencial, e, mais devido à preguiça intelectual e ao comodismo de um planalto distante que ao saber, plasmou a curiosa criação de algumas fôrmas em que passarão a se enquadrar, doa a quem doer, os complexos problemas do Direito. Não faltarão as hipóteses de excepcionar o vínculo formular, bem ao gosto, evidentemente, da classe dominante, ficando o imenso eito genérico aos miseráveis que completam a maioria absoluta da clientela dos pretórios. O povo não perceberá, pelo tiroteio da mídia dominante e do coro dos beneficiários dessa monstruosidade, a violenta devastação de seus direitos, mergulhados, assim, na generalização dos conceitos jurídicos de um grupo de iluminados. Daqui a duzentos ou até mesmo vinte anos, quem sabe, descerrar-se-á o pano de boca que escondeu da opinião pública engabelada o garroteamento de seus mais legítimos interesses individuas e sociais, mas ai já estarão definitivamente mortos e sepultados, além de sonhos destruídos, os autores dessa monstruosidade pior do que a santa inquisição.

Alguém já afirmou que a preguiça é a mãe de todos os defeitos do homem, o que vem a calhar, segundo a prudência curial, com o turbilhão que nos devastará com essa estapafúrdia súmula vinculante. Melhor seria, dominante. Tomara que estas minhas sílabas desconexas, em face do raciocínio arrivista vinculante, sobrevivam à hecatombe que se abaterá sobre a população brasileira deste início do século XXI, numeral de força ordinal que prima pela onomatopéia. Podem falar, argumentar, queixar-se do excesso de trabalho, estribar-se no excesso de questões e penúria de mão-de-obra, mas a solução deveria passar, não por essa trágica solução, mas pelo equipamento do sistema judicial segundo os verdadeiros interesses do povo, a que a Carta atribui a titularidade da soberania, mas não das migalhas do que sobraria.

Se onze ministros são insuficientes, que venham cem; se as cortes não bastam, que se multipliquem; se nos majestosos palácios não cabem os papéis, que se construam arquivos e subsolos, mas não os sepulcros profundos em que nossas elites enterram as ilusões de um povo.
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*Advogado. Especialista e Mestre em Direito. Juiz federal aposentado





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