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Violação das prerrogativas do advogado

Há, hoje, na Câmara dos Deputados, um bizarro, embora bem intencionado, Projeto de Lei - já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça -, que torna crime a violação das prerrogativas da advocacia. A pena prevista é de seis meses a dois anos, independentemente da violência, se houver, que acompanhou a violação.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Atualizado em 13 de maio de 2008 13:56


Violação das prerrogativas do advogado

A OAB, considerando seu passado, não precisa disso...

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

Há, hoje, na Câmara dos Deputados, um bizarro, embora bem intencionado, Projeto de Lei - já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça -, que torna crime a violação das prerrogativas da advocacia. A pena prevista é de seis meses a dois anos, independentemente da violência, se houver, que acompanhou a violação. Com isso, o advogado que se considerar prejudicado - ele e/ou seu cliente - denunciará o fato à Seccional local da OAB, a qual poderá solicitar a abertura de inquérito policial contra qualquer autoridade, ou funcionário que, na opinião do advogado - unilateral e nem sempre sensata -, impediu ou dificultou sua atuação como advogado.

Para agravar o exagero, o PL em discussão, de nº. 5.762/05, não dispõe - como deveria - que somente as Seccionais da OAB podem pedir a abertura do inquérito policial, o que seria um freio para o excesso de melindres de tal ou qual advogado. Essa ausência de limitação expressa estimulará eventuais abusos de alguns profissionais da advocacia - aqueles mais exaltados -, que poderão até querer prender, no ato - exigindo flagrante -, quem quer que se atreva a contrariá-los. Afinal, no seu parcial modo de ver - a parcialidade é inerente à advocacia - presenciou um "crime", cabendo prisão em flagrante do "infrator". E crime é crime, possibilitando a qualquer cidadão, inclusive a vítima, solicitar flagrante contra o autor da violação.

Com a devida vênia, trata-se de um projeto equivocado - e com ares de inquisição medieval - que só contribuirá para envenenar a opinião pública contra a classe dos advogados, tornando mais antipática a espinhosa profissão. A população, de modo geral, já não vê com bons olhos - ou por ignorância dos meandros jurídicos ou por "uso abusivo" do senso comum - o fato de réus, geralmente bem situados na vida, já condenados na primeira e segunda instância por desvios de dinheiro público, ou crimes horrendos, permanecerem soltos - ou em (confortável) prisão domiciliar -, aguardando, por anos e anos, o suado trânsito em julgado de uma sentença condenatória. Sentença que, freqüentemente, perde o efeito em razão da prescrição, fuga do réu pouco antes do último julgamento, morte do acusado ou outros fatores, porque o tempo tudo altera.

A "culpa" da alegada impunidade - mais real que alegada - está, claro, na nossa Constituição Federal (clique aqui), tremendamente crédula na presunção de que o réu - quando se sabe culpado - não vai adiar ao máximo o desfecho do caso, recorrendo incessantemente; nem escapar para não ser preso, se mantida a condenação. A população, obviamente não composta só refinados juristas, atribui esse "estado de impunidade" não só à lentidão e excessiva benevolência da justiça como também ao advogado de defesa, visto freqüentemente como um profissional só interessado em se promover e "atrapalhar" as investigações, com isso "protegendo" ladrões do dinheiro público, traficantes e homicidas de elevado gabarito. Isso porque o advogado, quando entrevistado pela televisão, sempre sustenta a inocência do cliente, mesmo quando tudo indica o contrário. Essa "audácia" de "defender o indefensável" - no parecer das pessoas menos informadas -, se já é mal vista agora, o será muito mais quando alguns advogados, mais belicosos - a variação de temperamentos em qualquer classe é enorme - começarem a ameaçar "prender e arrebentar" quem os contrarie.

"Prerrogativas" é um termo de escorregadio significado. O que para um determinado advogado é óbvia "prerrogativa", para um juiz, escriturário, oficial de justiça, promotor, delegado, investigador, ou qualquer pessoa do povo será simples "abuso", agressividade ou "arrogância".

A reação da OAB contra alguns evidentes abusos, já não tão recentes - invasão de escritórios, apreensão de pastas e computadores e "grampo" em telefones de advogados, medidas mais próprias de regimes ditatoriais - é pertinente. Tais abusos, porém, não devem ser corrigidos com outro abuso, de sentido contrário. Isso porque o projeto em exame é demasiado genérico em sua redação e sua aplicação diuturna equivale a jogar gasolina para apagar incêndios nas lides forenses. Desconheço legislação de país de primeiro mundo com igual belicosidade. Se a referida lei se desmoralizar, na sua utilização diária, a profissão sofrerá reflexos de igual natureza. Se o problema é de prestígio, este não se consegue com ameaças e imposições.

Se o projeto legislativo se transformar em lei o advogado será o mais temidos dos homens. Quem se atreverá a negar-lhe algum pedido, assumindo o risco de uma tentativa de prisão em flagrante, ou posterior indiciamento em inquérito policial, requerido pela OAB? A ameaça de um inquérito policial, com a conseqüente necessidade de contratação de advogado, instaurará um autêntico regime de terror. Teremos um pequeno exército de Robespierres. Se apenas 1% dos advogados solicitarem a prisão do interlocutor, ou pedirem inquérito policial, assim mesmo teremos alguns milhares de acusados.

Não está afastada a hipótese de um advogado, se contrariado, solicitar a prisão de qualquer cidadão. Um simples porteiro sentir-se-á intimidado pela ameaça de cadeia, caso não permita o ingresso de um advogado em uma repartição, fora do expediente. O Estatuto da Advocacia (clique aqui), no seu art.7º, inciso VI, letra "b", diz que "o advogado pode ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios e justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares". Entrando, fora do expediente, na delegacia, certamente precisará vasculhar documentos, em busca do que lhe interessa. Abrirá gavetas, arquivos, etc, e com isso poderá ler o que bem entenda, com ou sem segundas intenções. Convenhamos, é uma liberdade excessiva, autorização de devassa privada, ampliando sem limites o conceito de "prerrogativas". Daí o desacerto do projeto de lei em questão.

O inciso "c" do referido art.7º do Estatuto da Advocacia também permite o ingresso livre do advogado em qualquer recinto que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde "o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado". Em suma, se o advogado quiser, a qualquer hora do dia ou da noite - em plena madrugada -, ingressar numa repartição pública, pode fazê-lo, se houver um único funcionário ali dentro fazendo serão. Zelador, ou vigilante é funcionário?

Até mesmo um advogado, defendendo a parte contrária, também poderá, em tese, ser ameaçado de processo criminal, como co-autor, por violação das prerrogativas, caso crie algum obstáculo ao pretendido pelo colega. Ambos invocando suas respectivas prerrogativas que, em tese, poderão se chocar.

A reação contra a perda das prerrogativas tem, como uma de suas origens o fato de alguns desembargadores e juízes se recusarem a receber advogados. Realmente, é simpático o magistrado que, em pleno expediente, interrompe seu trabalho para receber e ouvir advogados. O perigo é se formar uma fila... Eu, quando juiz, recebia advogados, mas porque tais pedidos ocorriam raramente. Sem muito proveito, a não ser a formação de uma nova amizade, freqüentemente sincera. No entanto, não tem cabimento - apesar do que manda o Estatuto da Advocacia - obrigar tais juízes ficarem à disposição de advogados, interessados obviamente em conversar tendenciosamente sobre processos que vão ser julgados. Há quebra do contraditório em tais "embargos auriculares". Os pedidos, na justiça, devem ser apresentados por escrito e ouvida a parte contrária. Tais conversas poderão influenciar no julgamento que se avizinha. É isso, justamente, o que se visa com tais conversas. Nunca o advogado fala em favor da parte contrária, nem comparece acompanhado do ex-adverso. Mesmo porque se ambos comparecessem o clima certamente esquentaria. Em questões urgentíssimass, o certo seria o advogado apresentar uma petição, justificando a urgência e solicitando que a petição fosse, de imediato, levada ao conhecimento do magistrado. Apenas isso. E tudo por escrito, depois documentado nos autos.

Outro excesso do referido Estatuto consiste na enorme abrangência da imunidade profissional: "não constituindo injúria, difamação ou desacato punível qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele". Pelo Estatuto, o advogado, em plena sessão do tribunal, pode sair de seu lugar, na tribuna, e, de dedo em riste, aos berros, próximo aos julgadores, dar-lhes um tremendo "pito", chamando-os até de "burros", ou coisas piores, desde que relacionados tais ofensas ao direito que defende. E se algum magistrado reagir aos insultos estará sujeito - caso transformado em lei o projeto em exame - a um inquérito ou processo criminal por ofensa às prerrogativas. Quer dizer, o advogado tem, no seu trabalho, imunidade para ofender, Se o magistrado replica e o impede de continuar os insultos, estará cometendo um crime.

A Lei nº. 8.906/94, o Estatuto da Advocacia, é que precisa ser modificada, eliminando alguns excessos que, de forma indireta, aumentam a zona de atrito entre juízes e magistrados. A classe dos advogados tem, de fato, sofrido algumas agressões imerecidas - invasões de escritórios, escutas em seu telefone, etc - mas a iniciativa legislativa em causa, por ser genérica demais em sua redação, só contribuirá para que os advogados sejam vistos com mais antipatia. No que se refere à escuta telefônica, é totalmente errado "grampear" telefone de advogado, seja ele residencial, celular ou do escritório. No entanto, se um suposto criminoso, com telefone grampeado com autorização judicial, receber uma telefonema de seu advogado, ou para este ligar, não teria sentido exigir que a gravação fosse imediatamente desligada só porque um advogado entrou na linha. O acusado que se precavenha, conversando com seu advogado no escritório, ou outro lugar de sua escolha. Os tempos são outros e o fato é que não fossem as gravações de conversas telefônicas, altíssimo percentual de grandes falcatruas nacionais jamais teriam sido descobertas. Se a corrupção avança na sofisticação, a repressão vê-se obrigada a seguir o mesmo caminho.

Em suma, a Ordem dos Advogados do Brasil não precisa de exageros legislativos para ser mais respeitada. Na grande maioria dos problemas nacionais a Ordem tem defendido, com coragem, as boas causas. Sofre com a "desorganização quantitativa" do número descontrolado de bacharéis disputando um mercado de trabalho cada vez mais diluído. A solução global para isso está em duas coisas:

1) convencer a população no sentido de que é melhor prevenir do que litigar, ampliando a função consultiva dos advogados

2) combater a criação desenfreada de faculdades de direito, o que vem fazendo há anos.

Quanto às ofensas tópicas às prerrogativas - aquelas não hipertrofiadas, como exemplificadas acima -, ações declaratórias, certamente no STF, demarcariam os limites da persecução penal e dos advogados quando estes defendem réus especialmente poderosos e até recentemente acima do bem e do mal.

Advogados da área cível, trabalhista, comercial, de família e fiscal não se queixam tanto de violação de prerrogativas. Sofrem mais os criminalistas, situação nova que lembra o velho ditado de que "na luta entre o mar" (a indignação popular contra a impunidade) "e o rochedo" (os criminosos mais poderosos e sofisticados) "quem sofre é o marisco" - sem ofensa, apenas o desejo, aqui, de utilizar o provérbio, porque os criminalistas são especialmente inteligentes, fazendo das tripas coração na defesa de seus clientes.

Faço votos que o bom senso prevaleça.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo








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