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Invalidar todas as escutas telefônicas?

Li, ontem, na internet - site "Trem Azul" - que uma deputada federal, Marina Maggessi, relatora da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, defende a idéia de que todas as operações, até agora realizadas pela Polícia Federal, com base em escutas telefônicas "editadas" - isto é, contendo apenas os trechos escolhidos pela PF -, sejam invalidadas.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Atualizado em 29 de maio de 2008 10:00


Invalidar todas as escutas telefônicas?

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

Li, ontem, na internet - site "Trem Azul" - que uma deputada federal, Marina Maggessi, relatora da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, defende a idéia de que todas as operações, até agora realizadas pela Polícia Federal, com base em escutas telefônicas "editadas" - isto é, contendo apenas os trechos escolhidos pela PF -, sejam invalidadas.

Como a notícia não apresenta muitos detalhes e pode, em tese, ser imprecisa, limito-me, aqui, a tecer algumas brevíssimas considerações gerais sobre o problema teórico relacionado com a "edição" das fitas com escuta telefônica.

Segundo se depreende da notícia, o corte de parte das fitas seria sempre possivelmente tendencioso; conseqüentemente injusto, prejudicando o direito de defesa. A polícia, alega-se, com esse artifício, selecionaria, dentro de um vasto material, somente os tópicos prejudiciais ao acusado, "eliminando" os trechos que poderiam beneficiá-lo. Haveria, em suma, uma deformação da prova - certamente a mais importante nesses casos - pois as palavras não podem ser interpretadas isoladamente.

Há, aqui, um equívoco, ou precipitação, que precisam ser desfeitos.

As escutas telefônicas, com ordem judicial, implicam em dias e dias de contínua escuta. O suspeito usa seu telefone para inúmeras comunicações, a maior parte delas inocentes. Raríssimos serão aqueles que usam seu telefone apenas para trocar informações criminosas. Além disso, os familiares ou funcionários do suspeito também usam o aparelho. Se esse imenso material - a quase totalidade inútil - fosse levado para os autos do processo criminal o trabalho do juiz, advogado e promotor seria impraticável. Tais profissionais teriam que destinar dias e dias à paciente escuta da fita por inteiro, coisa impraticável. Juízes criminais, por exemplo, não fariam outras coisas a não ser ficar ouvindo conversas irrelevantes.

Natural e factível, portanto, que as fitas sejam resumidas ao que interessa: confissões ou diálogos comprometedores sob o ângulo penal. E se surgir, acidentalmente, no decorrer da escuta, uma notícia de caráter criminal não relacionada com o objetivo básico do pedido de escuta não teria cabimento que a informação fosse ignorada. Assim, por exemplo, se a escuta se relacionar apenas com a participação de um ministro em esquema de desvio de dinheiro público e um dos interlocutores revela, na conversa gravada, a existência de um assassinato, mencionando onde foi enterrado o "presunto" - fato talvez não relacionado com o desvio - é óbvio que tal informação não poderia ser ignorada por "desvirtuamento" do objeto da escuta, que não falava em homicídio. Este crime não poderia ser ignorado, embora servindo de base para outro inquérito policial se constatado, finalmente, que nenhuma relação tinha com o objetivo da escuta.

Em qualquer caso, se o réu, ouvindo as fitas em juízo, entende que algumas frases foram tendenciosamente selecionadas para deformar a verdade - porque, por exemplo, ele estava brincando, ou fazendo ironia, - aí o seu defensor pedirá ao juiz autorização de acesso à totalidade das gravações - ou parte dela, à sua escolha -, para que, se for o caso, selecionar outros trechos da fita demonstrando que a fita usada pela acusação estava, dolosa ou culposamente, truncando os fatos. E para isso é necessário que o "grosso" das fitas seja preservado, em local seguro, como fonte de consulta até o trânsito em julgado da decisão. Ou mais além, tendo em vista a possibilidade de uma revisão criminal (para os leigos, uma ação movida pelo réu, já condenado definitivamente, quando ele descobre uma prova que antes desconhecia e que pode favorecê-lo)

Não sei se, efetivamente, tais fitas hoje estão sendo guardadas - presumo que sim -, com possibilidade das partes conseguirem ouvi-las, solicitando uma cópia daqueles trechos que não fazem parte do resumo "oficial". Se, entretanto, finda a instrução, a defesa não especificou onde estaria, no resumo, a deformação do pensamento dos participantes do diálogo gravado, não tem cabimento o réu pedir, genericamente, a nulidade do julgamento só porque havia, em tese, a mera possibilidade teórica de o "resumo" estar imperfeito.

Dirá alguém - e isso já foi dito por um perito - que o certo seria a polícia ficar ouvindo as conversas, por dias e dias, só ligando o gravador quando o assunto se tornar comprometedor.

Isso, em termos de Brasil, seria dificilmente praticável. Implicaria em manter ocioso grande número de policiais, à espera de uma frase indicativa de existência de infração. Nosso país não tem tanto policial disponível assim, ouvindo conversas oito horas por dia, durante semanas ou meses. Além do mais, os suspeitos, quando trocam idéias criminosas pelo telefone não o fazem após claros avisos de alerta. Não dizem: "Atenção! Agora vou falar sobre nossos crimes!". Procurando disfarçar, recheando tópicos criminosos com coisas inocentes. Se o policial pretender gravar um trecho de conversa somente quando tiver certeza de que seu conteúdo é incriminador, perderá muita coisa importante - importância que só se revelará depois de ouvidas as frases seguintes. E aí será tarde, porque o que não foi gravado estará perdido para sempre. É o que, em linguagem coloquial, denominamos de "cair a ficha" tardiamente, a ligação não imediata entre duas déias.

A escuta telefônica, com autorização judicial, tem sido de grande valia para a investigação de crimes do colarinho branco, e o crime organizado, em geral. Sem ela, o Brasil conviveria com impunidade ainda maior que a existente. Que, pelo menos, os desviantes do dinheiro público tenham um "susto". Isto é, um processo judicial que os puna, se não com efetiva cadeia - a Constituição Federal foi redigida, ou mal interpretada, de um modo benevolente demais com réus tecnicamente primários e abonados - pelo menos com inquietação de espírito e desembolso de pesadas quantias a título de defesa técnica. Nesse ponto, paradoxalmente - dizem que Deus escreve certo com linhas tortas -, uma defesa criminal cara funciona como um merecido castigo - pesada multa informal - embora destinado, o seu produto, à entidade privada, no caso o advogado de defesa. Pior seria, em termos de justiça difusa, se as defesas criminais, nesses casos de milhões, fossem módicas. Refiro-me, claro, às hipóteses em que o réu realmente agiu de forma desonesta e mesmo assim foi absolvido por falta de provas ou outra falha qualquer da lei ou da acusação.

Não se está, aqui, defendo eventuais abusos na autorização de escuta telefônica. Mas desprestigiar, genericamente, sua utilização é ajudar, indiretamente, o saque impune do dinheiro público. E é previsível que os criminosos, cada vez mais, passem a evitar o telefone quando queiram se comunicar sobre suas conversas comprometedoras. Se o criminoso é o "inimigo" da sociedade, convém lembrar que, analogicamente, em toda "guerra" tenta-se danificar ao máximo as comunicações do inimigo.

Como crime e sociedade são irmãos siameses - mesmo em sociedades altamente evoluídas existem criminosos - as comunicações criminosas tenderão a se transferir do telefone para o computador. A sociedade, porém, não cruzará os braços, só por causa da maior complexidade técnica. Apreensões de computadores serão autorizadas por magistrados, havendo razoável justificação. Todavia, computadores de advogados só serão licitamente apreendidos se eles mesmos, advogados, forem suspeitos de pessoalmente criminosos. Se, eventualmente, um advogado - insofismável "ovelha negra" da classe -, se torna um traficante, ou chefe de uma organização criminosa, não tem sentido protegê-lo contra apreensão de seu computador. O mesmo dir-se-á de um juiz de direito ou promotor de justiça, que passe a agir como um criminoso (louco, por sinal, porque não precisa disso para viver). Especial cautela deve ter um juiz antes de assinar um mandado de busca de computador de um advogado, porque esse profissional, tal qual um sacerdote leigo, trabalha ouvindo segredos do cliente. E os segredos deste devem ser preservados.

Alguém poderá dizer que a prova criminal deveria se limitar a documentos e, principalmente, a prova oral, ouvindo-se testemunhas. Ocorre que estas não mais de sentem seguras na justiça, prestando depoimento contra um réu perigoso que pode decidir matá-la, bastando para isso querer firmemente. Não querem ser mártires da justiça. Já é antiga a assertiva de que "a prova testemunha é a prostituta das provas". Testemunhas se omitem por medo, ou mentem por dinheiro. Como se defenderá a sociedade, se não pode contar com as pessoas? Apelando para a técnica. Daí a necessidade das escutas telefônicas, de apreensões bem dosadas de material informático e, futuramente, a aplicação de técnicas avançadíssimas, disponíveis somente em alguns poucos países invulgarmente avançados na investigação criminal.

Enquanto a neurociência não conseguir manipular as áreas cerebrais causadoras do comportamento criminoso - por que existem cleptomaníacos ricos? E homens com doentia predileção sexual por crianças? - só resta à sociedade lutar com as poucas armas de que ainda dispõe contra o crime. Será seguro confiar só em testemunhas? Por enquanto, a escuta telefônica tem tido sua utilidade. Basta cortar alguns exageros. Relembre-se que o crime não obedece à regra alguma, seja ela jurídica, moral ou religiosa. Já a sociedade é uma combatente manietada por um sem número de restrições legais. É uma luta desigual.

Mantenham-se, pois, as escutas telefônicas, com as cautelas devidas e visão prática na sua utilização.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo








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