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A guerra que não é fiscal

Francisco de Assis e Silva e Demetrius N. Macei

O Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo - TIT, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a Justiça Federal e algumas Varas da Fazenda Pública de São Paulo, têm recebido um sem número de discussões sobre a chamada "guerra fiscal", seja em forma de Mandado de Segurança, ADIn, Execução Fiscal, enfim, a discussão é variada e extensa. Muito se escreve, se discute, se defende, mas, muito pouco ainda se entende. Está se tornando uma discussão de surdos.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Atualizado em 29 de maio de 2008 14:45


A guerra que não é fiscal

Algumas considerações sobre a chamada "Guerra Fiscal"

Francisco de Assis e Silva*

Demetrius Nichele Macei**

O Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo - TIT, o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal de Justiça de São Paulo, a Justiça Federal e algumas Varas da Fazenda Pública de São Paulo, têm recebido um sem número de discussões sobre a chamada "guerra fiscal", seja em forma de Mandado de Segurança, ADIn, Execução Fiscal, enfim, a discussão é variada e extensa. Muito se escreve, se discute, se defende, mas, muito pouco ainda se entende. Está se tornando uma discussão de surdos.

Na recente obra, a "Descoberta da América" (Todorov, 1984), em que é narrada a odisséia de Cristóvão Colombo no descobrimento da América em 1462, o autor concentra-se na questão do "outro" nas relações humanas e sociais. Procura demonstrar quantos "diálogos de mudos" há. No meio acadêmico e jurídico isto não é incomum. Um casal que briga numa separação mas, na verdade, não sabem exatamente o que estão buscando para cada um de si. Há uma magnífica passagem na obra citando como a falha na nossa relação com o "outro" se evidencia de forma risível. Colombo tinha costume escrever para sua Rainha contando e explicando tudo o que se passava no Novo Paraíso recém descoberto. Numa das correspondências, conta efusivamente que estava discursando de forma inflamada na praia, louvando a Rainha, falando de como seria o novo mundo, pregando o novo porvir, e se entusiasma em contar para a Ela que os índios glorificavam suas palavras com louvores, cantos e palmas. Na realidade o que acontecia naquele momento era exatamente o oposto. O que seus ouvintes faziam era o ritual pré-canibalismo, cantando antes de devorar sua vítima.

Colombo costumava falar com os índios sem entender sua língua, porém achava-se compreensível, e pouco se preocupava na intelecção do diálogo. Chegava a ter longas conversas com tribunos sob a premissa de estar sendo entendido.

Enquanto um imaginava-se entendido o outro deliciava-se na expectativa da presa.

Algumas discussões judiciais parecem repetir o mesmo tom. Costuma-se dizer que no meio jurídico há algumas discussões surdas e míopes.

A questão da "Guerra Fiscal", parece-nos ter atingido o ápice da repetição Colombina, 550 anos depois.

Tudo começa quando alguns Estados, buscando incrementar a arrecadação, criaram mecanismos de pagamento simplificado de Imposto, onde o contribuinte "aparentemente" paga menos, pois a alíquota nominal é menor, e o sonegador tem a sensação de que não vale a pena o ilícito. Isso, em alguns cantos, tem sido chamado de Benefício Fiscal ou Incentivo Fiscal.

De acordo com a Legislação Tributária um Estado somente pode conceder incentivo fiscal quando todos os demais Estados também concordarem com aquele incentivo, cujo foro de aprovação é o Conselho Nacional de Política Fazendária - CONFAZ. Fora isto, o incentivo pode vir a ser declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal - STF.

Alguns Estados justificam que houve aumento da arrecadação com a simplificação da forma de cálculo ou redução de alíquota, como é o caso noticiado, por exemplo, pelo Mato Grosso em seu Plano Plurianual 2004-2006. O que fizeram esses Estados?. Criaram uma forma simplificada do recolhimento no ICMS. Havia setores cuja alíquota do ICMS era 18%, porém o nível de arrecadação era em torno de 1%. Ou seja, 17% eram sonegados. A atitude escorreita de alguns Governadores, feita de forma legal, porque sustentada na Lei complementar nº. 87/96 (Lei Kandir - clique aqui) que permite tal mecanismo, foi criar uma política diferente de arrecadação, que lhe garantisse dinheiro aos cofres estaduais, fomentasse a indústria e trouxesse desenvolvimento no seu estado.

Esta forma simplificada de Cálculo do ICMS consiste em o contribuinte renunciar aos créditos que teria direito na etapa anterior e recolher apenas o saldo para o Estado. Exemplo: na produção de um determinado produto o industrial compra insumos, embalagens, energia elétrica, enfim, vários itens que compõem, de forma essencial o seu processo produtivo. Todos estes produtos, vêm onerados de ICMS. Na ocasião da venda do produto a empresa compensa este ICMS já pago e abate o valor devido na operação pagando somente o saldo ao Estado. Se alíquota de saída era 12%, sobre um produto de 1.000 reais, deveria recolher na saída 120 reais de ICMS. Porém, como pagou nos insumos 90 reais de tributo, compensaria os 90 - 120, e assim, pagaria apenas 30, na saída do produto. O que alguns governadores enxergaram: Ora, se eu só recebo 3%, então vamos combinar o seguinte: eu não faço conta do passado, nem a empresa, e se a empresa "renunciar" a seus créditos da etapa anterior, fica com a obrigação de pagar somente os 3%. Seria um procedimento com o mesmo efeito do chamado crédito presumido.

Isto foi entendido como se os Estados estivessem simplesmente reduzindo a alíquota do Imposto para 3%, e que isto seria um incentivo. Porém, observem que a empresa "sacou" um cheque dos 90, e já pagou também. Portanto o ônus tributário sobre o produto continua sendo a mesmo.

Porém, quando esta mercadoria chega a outros Estados, São Paulo por exemplo, onde também teria direito de compensar a etapa anterior, este "glosa" os 12%, manda estornar os 90 reais, e autoriza o crédito tão somente dos 30 reais recolhidos ao Estado da etapa anterior.

Alega o Estado de São Paulo, através do Comunicado CAT 36/2004, que somente deve ser creditado o Imposto efetivamente pago na etapa anterior, entendendo que o efetivamente pago foi os 30 reais e não os 90. As empresas, não concordam com a glosa, o Estado autua a empresa em 200 reais, ou seja, 100% de multa mais juros. A discussão entope os tribunais administrativos e os órgãos judiciários de todos os níveis, sem que ninguém se entenda, como ocorria com Colombo. Só não se sabe quem são os índios e quem é Colombo!

As questões teóricas, da cientificidade jurídica, já foram bem abordadas pelos mais ilustres juristas, tais como Marco Aurélio Greco e outros. Queremos nos concentrar aqui em não repetir a estupidez de Colombo e procurar entender o que os índios estão tentando dizer, a fim de estabelecer um diálogo compreensível, para que se saiba com quem e pelo quê estamos discutindo. Aqueles que entendem que a forma de cálculo simplificada é um incentivo, deveriam se recordar que desde o início da história dos tributos, raramente houve ato governamental que reduzisse a Carga Tributária. Quando a empresa concorda com o Estado em renunciar aos créditos da etapa anterior, o está fazendo de forma a simplificar inclusive seus processos internos de contas e mais contas para saber quanto deverá efetivamente pagar.

De outro lado, quando o Estado inocentemente leva ao COFAZ uma forma de arrecadação que levasse mais indústrias para o seu Estado, a despeito dos outros, não nos é crível que alguém aprovaria. "Olha, vamos aprovar esta lei de São Paulo, porque desta forma, São Paulo vai atrair maiores indústrias, vai aumentar o emprego, a despeito de nossa arrecadação". Não, isto jamais ocorreria.

Mas, aquele estado interessado em arrecadar mais e combater a sonegação, imaginou uma forma interessante. Criou um mecanismo para parecer ao empresário que, individualmente, ele estava pagando menos, mas, que no final do dia, a arrecadação global aumentaria.

O que é importante entender neste diálogo de surdos é que, independentemente da forma, o valor que a empresa pagou na etapa anterior, ao contrário do que entende o Estado de São Paulo, é o mesmo, independente da forma de cálculo.

O que fez o astuto Governador. "se eu só recebo 3%, porque eu vou ficar fazendo a conta do passado?". Vou reduzir e simplificar este negócio: digo ao empresário que só cobro 3% e ele abre mão desta conta. Dito e feito.

Na maioria dos Estados, para quem recolhe apenas 3% do ICMS, é preciso aderir a um Regime Especial, onde se obriga a abrir mão, renunciar, os créditos da etapa anterior, e assim, ter direito a recolher 3% sobre o produto vendido. A alíquota destacada continua sendo 12% (hoje 7%). O empresário, para facilitar sua vida, nem sequer fez conta para ver se pagaria mais ou menos. Simplesmente aderia. Aderiu ao pagamento simplificado, ou a forma simplificada de cálculo do tributo.

Feito isto, este produto vem para o Estado de São Paulo, com uma alíquota (no exemplo) destacada de 12%, porque este é o custo assumido na produção daquele produto.

Recentemente em determinado julgamento no TIT-SP, (considerado o melhor e mais especializado Tribunal Administrativo do Brasil) procuramos sair do lugar comum, e perguntar aos nossos ouvintes, Dignos Julgadores, se todos sabiam e conseguiam ouvir o que estávamos falando. Deve ser muito enfadonho ao julgador de um tribunal administrativo, sentir-se a beira da praia, ouvindo o que não se entende. É como Ópera para leigos. Quando mencionamos que não iríamos falar de não-cumulatividade, inconstitucionalidade, de crédito fiscal, de guerra fiscal etc, percebemos uma receptividade melhor ao falarmos do assunto.

Queremos mostrar que a Guerra não é Fiscal. Que as empresas pagam exatamente o mesmo valor de ICMS da etapa anterior; que São Paulo precisa fazer a conta e verificar que, mesmo que não houvesse o regime simplificado de arrecadação, ele deveria autorizar o crédito, e se com este regime recolhem ao Estado antecessor o mesmo valor que recolheriam de outra forma. O Estado tem que autorizar o crédito, esvaziar as discussões incômodas e concentrar esforços no desenvolvimento industrial, no aprimoramento da arrecadação, deixando os tribunais com questões realmente cruciais. Bastava que alguém simplesmente entendesse, de forma matemática e não exclusivamente jurídica, o que se passa com o empresário contribuinte do ICMS.

A Guerra que não é fiscal se inicia quando alguns Estados procuraram dar uma forma diferente de tratar seus contribuintes, especialmente empresas cujos setores eram useiros e vezeiros da sonegação.

No final da história, Colombo e os índios poderão estar mortos.

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*Diretor Global de Assuntos Jurídicos do Grupo JBS, membro do IASP, Membro do IBDT

**Diretor de Legales da JBS SWIFT - Argentina, Mestre em Direito pela PUC/PR, doutorando em Direito pela PUC/SP, professor de Direito Tributário da FADISP





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