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Judicialização da sáude

Ivana Carolina Mariz Carvalho e Juliana Mancini Henriques

A questão da judicialização da saúde é um tema importante que merece amplo debate por toda sociedade civil que é diretamente interessada e afetada pelas decisões proferidas pelo judiciário no tocante à área da saúde. Diversos aspectos serão abordados no presente artigo não com o objetivo de apresentar respostas e sim de fomentar a discussão, fundamental num Estado Democrático de Direito.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Atualizado em 3 de junho de 2008 15:31


Judicialização da sáude

Ivana Carolina Mariz Carvalho*

Juliana Mancini Henriques*

A questão da judicialização da saúde é um tema importante que merece amplo debate por toda sociedade civil que é diretamente interessada e afetada pelas decisões proferidas pelo judiciário no tocante à área da saúde. Diversos aspectos serão abordados no presente artigo não com o objetivo de apresentar respostas e sim de fomentar a discussão, fundamental num Estado Democrático de Direito.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 (clique aqui), a saúde passou a ser, de maneira explícita, direito fundamental social, ficando consignado que este direito é de todos, indistintamente, constituindo-se em dever do Estado assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, os quais devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo-se num sistema único - SUS organizado de acordo com a diretriz do atendimento integral, dentre outras.

Com a definição da saúde como direito fundamental social, abriu-se o caminho para que todos os cidadãos brasileiros pudessem dele usufruir, sendo garantido pela Constituição Federal, especialmente em função da criação do Sistema Único de Saúde - SUS (art. 198), que se apresenta como o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde, que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, passando o direito à proteção da saúde a ser tratado como um direito social pessoal e, ao mesmo tempo, coletivo.

Nessa seara, há que se destacar que o direito à saúde não abrange apenas a assistência médico-hospitalar, limitado aos pressupostos de oferta de procedimentos e medicamentos. O conceito de saúde não se limita apenas à ausência de enfermidade, mas consiste num estado de completo bem-estar físico, mental e social, nos termos da definição construída pela OMS - Organização Mundial da Saúde. Isso implica entender que ao Estado, conforme consta da Constituição Federal, não cabe apenas promover medidas curativas, mas também as preventivas, políticas de saneamento básico, vigilância sanitária, desenvolvimento de áreas de lazer, até mesmo segurança pública, no objetivo de cumprir o mandamento constitucional em apreço.

Assim, está o Estado obrigado a garantir aos seus cidadãos o acesso a serviços e ações de saúde, que devem proporcionar, repita-se, atendimento integral (inciso II do art. 198 da CF), nele compreendido uma adequada assistência médico-hospitalar, a qual pressupõe, além de medidas profiláticas, a oferta de procedimentos (exames, cirurgias etc.) e de medicamentos, ainda que sejam de última geração, pouco importando o seu custo, desde que comprovadamente necessários para a preservação da vida e saúde do usuário do SUS.

Em que pese o dever do Estado de garantir o acesso a serviços e ações de saúde, a demanda por esses serviços é maior do que o Estado pode suportar, gerando insatisfações tanto individuais quanto coletivas, que acabam por desaguar no Poder Judiciário, que muitas vezes é chamado a intervir em impasses desta natureza, para que decida se, neste ou naquele caso, o Ente Público deveria ser obrigado a prestar o atendimento nos moldes dos pleitos formulados.

Em várias ocasiões, sensibilizado pelas alegações dos interessados em obter certa prestação estatal que não estaria sendo realizada satisfatoriamente pelo poder público, a Justiça ordena que esta providência seja executada, desconsiderando, muitas vezes, as fundamentações apresentadas pela Administração Pública de que, naquele momento, estariam impossibilitados de implementar determinadas medidas, ante a patente e inquestionável falta de recursos humanos, materiais ou financeiros, desencadeando, a partir de decisões desta estirpe, sérios problemas para a Administração Pública.

O administrador, ciente de que tem o dever de cumprir a decisão judicial, passa a ter de fazer verdadeiros malabarismos para, por exemplo, retirar recursos financeiros de uma determinada área com o intuito de que seja aplicado em outra, conforme ordenado pela determinação judicial que, à evidência, restará prejudicada com a retirada destes aportes financeiros, que inicialmente estavam contabilizados para a execução de suas incumbências.

Tal situação acaba por gerar um conflito entre os poderes Executivo e Judiciário no que se refere à autonomia de cada um.

Apesar do aparente acerto e senso de solidariedade que decisões judiciais possam demonstrar, na verdade trazem, em si, grande confusão e desequilíbrio administrativo, que podem vir a comprometer a prestação dos serviços públicos em diversos outros setores.

Inúmeras decisões judiciais vêm obrigando os entes governamentais a fornecerem determinados medicamentos, ou a executarem procedimentos médicos, cujos aportes financeiros para efetuar tais pagamentos chegam a alcançar cifras astronômicas. Ante esta contingência, os responsáveis pela representação judicial dos entes estatais passaram a procurar argumentações alternativas que, sem menosprezar os anseios daqueles que reivindicam o recebimento destas benesses estatais, garantidas por lei, pudessem apresentar uma solução jurídica aceitável, capaz de impedir que estas situações viessem a se concretizar, num desmedido prejuízo para o funcionamento das estruturas governamentais.

Isto porque o atendimento a determinado pedido individual, ainda que legítimo, pode gerar prejuízos para a coletividade na medida em que o valor destinado a determinado projeto deve ser desviado para o cumprimento daquela decisão judicial.

O princípio da reserva do possível procura estabelecer alguns marcos regulatórios para a emissão de ordens judiciais, tendentes a obrigar o Poder Público a dar efetividade a certa categoria de prerrogativas instituídas em favor das pessoas em geral.

Por mais que uma norma jurídica tenha sido inserida no próprio Texto Constitucional, ela somente poderá alcançar sua real efetividade se estiverem presentes as condições fáticas e jurídicas capazes de lhe conferir esta eficácia, pois caso contrário, na ausência deste contexto favorável e imprescindível à sua realização, por mais nobre que fosse o escopo do mandamento legal, ninguém poderá ser compelido a cumprir suas diretrizes - ad impossibilita nemo tenetur (ninguém é obrigado a coisas impossíveis).

A teoria do mencionado princípio da reserva do possível tem como berço as decisões proferidas pela Corte Constitucional Federal da Alemanha, pelas quais se sustentou que as limitações de ordem econômica podem comprometer sobremaneira a plena implementação dos ditos direitos sociais, ficando a satisfação destes direitos, assim, na pendência da existência de condições materiais - especialmente econômicas - que permitam que sejam atendidas. Somente se pode exigir do Estado o atendimento de um interesse, ou a execução de uma prestação em benefício do interessado, desde que observados os limites da razoabilidade.

Isto implica em dizer que não basta que a legislação defira alguma prerrogativa aos membros da sociedade, pois faz-se imprescindível, também, que existam recursos materiais capazes de viabilizar a satisfação destes direitos, balizas que delimitam e orientam a aplicação do denominado primado da reserva do possível.

Noutras palavras, o Poder Judiciário, por mais bem intencionado que esteja no intuito de conferir cabal aplicabilidade às normas diretoras do sistema jurídico, não pode pretender arvorar-se da tarefa de tentar suprir todas as carências sociais, mediante a expedição de uma ordem judicial, face à inexistência de condições materiais capazes de viabilizar sua implementação.

Para a implementação de certas diretrizes legais (sejam constitucionais ou infraconstitucionais), mormente no que tange àquelas que exigirão iniciativas positivas (ativas) e materiais do Estado, cumpre que os Órgãos Jurisdicionais atentem - ao proferirem alguma decisão - para a circunstância de haver ou não meios materiais disponíveis para sua concretização.

Não há como fugir da constatação de que a concretização dos direitos previstos nas legislações demanda - quase sempre - um determinado custo financeiro, que pode ser maior ou menor, dependendo das medidas que se quer ver implementadas. Se a realização de qualquer direito implica num determinado custo financeiro, não podem ser encarados de maneira absoluta, pois estão sujeitos a limitações de natureza orçamentária. Mormente se tiverem de ser custeados com os recursos coletados dos contribuintes.

A precipitação em querer implementar, sem a observância de qualquer tipo de limites, uma dada prestação social, poderia gerar o efeito contraproducente de inviabilizar o atendimento de outras necessidades coletivas, para as quais já havia um prévio planejamento, mas que fatalmente ficará comprometido com o desvio, por exemplo, dos aportes financeiros que seriam destinados ao seu suprimento, para se satisfazer aquela prestação em favor da qual a ordem judicial teria sido emitida. Além de, à evidência, ferir o princípio da separação de poderes, calcado no sistema de freios e contrapesos, pois cabe ao legislador elaborar a peça orçamentária, definindo quais são as prioridades que entende ser as mais urgentes naquele dado momento. Não cabe, pois, ao Judiciário ditar, ao seu livre talante, para onde e como devem ser direcionadas as forças patrimoniais dos orçamentos públicos, que não tenham uma destinação legal e previamente definida.

Diante destas considerações, afigura-se não ser possível, juridicamente, a emissão de uma ordem judicial, tendente a obrigar o Poder Público a oferecer a prestação de um serviço público para além das suas capacidades materiais (financeiras e de infra-estrutura), posto que não dispõe de recursos ilimitados para a promoção de toda e qualquer pretensão no campo da saúde (ou em qualquer outro setor da atividade estatal), sendo forçoso que se busquem outras alternativas, perante a própria comunidade e demais setores da sociedade civil organizada, para o suprimento de parte destas carências sociais.

Os direitos sociais, por mais legítimos que sejam, não podem ser concebidos em termos absolutos num confronto com as prerrogativas e encargos governamentais. Ainda que se admita que a saúde e a dignidade humana sejam preceitos constitucionais fundamentais, há que se ter em mente que a administração pública deve agir pautada na supremacia do interesse público, além dos princípios da razoabilidade e da moralidade.

Contudo, caso o direito à saúde, enquanto direito fundamental - assim entendido como aquele necessário para garantir uma vida de acordo com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana - estiver sendo negligenciado pelo Poder Público, caberá ao Judiciário a indeclinável tarefa de, lastreado na parcela de soberania que lhe cabe no conceito da Tripartição dos Poderes, assegurar, pela via coativa, a que o Executivo desincumba-se das prestações a ele constitucionalmente atribuídas, dentre as quais destacam-se as prestações na área dos direitos sociais, em benefício da população a que deve servir.

Com efeito, não há como negar que, estando positivada a regra consagradora da aplicabilidade imediata das normas que definem os direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF), os poderes do Judiciário estão mais ampliados principalmente para defender a efetividade destes direitos fundamentais, com destaque para os direitos sociais, que possuem caráter de autênticos direitos subjetivos, autorizando tal Poder a assegurar, no caso concreto, o seu efetivo gozo, com base também no art. 5º, inc. XXXV, da CF (inafastabilidade do controle judiciário), mesmo que isto implique em alocação de recursos públicos.

Portanto, em que pese o valoroso trabalho realizado pelo Poder Judiciário como forma de dinamizar a prestação jurisdicional que lhe cabe, não há como se conceber como natural que decisões judiciais continuem a ser emitidas, compelindo os demais Poderes Estatais a executarem providências que, não raro, encontram-se fora das suas possibilidades de atendimento ante a falta de recursos financeiros imprescindíveis para a concretização de certas providências de interesse público.

Verifica-se, porém, que o direito à saúde trata-se de direito fundamental social que beneficia a todos, indistintamente, cuja efetividade é imprescindível para que o indivíduo tenha uma vida digna. E é por meio do Sistema Único de Saúde que o Estado deve tornar efetivo este direito, proporcionando aos seus usuários um atendimento médico, hospitalar e farmacêutico integral e de qualidade.

Ressalta-se, outrossim, que a norma constitucional inserida no art. 196 da CF (i) tem aplicação imediata, porque prevê um direito fundamental social; (ii)que protocolos clínicos ou diretrizes terapêuticas não podem se sobrepor à força normativa da Constituição, a qual assegura que o direito à saúde é de todos, sendo um dever do Estado; (iii) que o princípio da reserva do possível deve ser visto com reservas quando o Estado o utiliza como justificativa para não proporcionar a fruição de direitos fundamentais sociais; e (iv) que o Poder Judiciário deverá atuar sempre que o Estado se mostrar inerte no campo da efetivação destes direitos, decidindo de forma razoável, atendendo estritamente às necessidades demonstradas, respeitando, naturalmente, a infra-estrutura disponibilizada.

Fica evidente, assim, que havendo inércia do Poder Executivo quanto ao seu dever constitucional de observar nas suas decisões os padrões inseridos no conjunto de valores da Constituição, especialmente aqueles relacionados aos direitos fundamentais, deverá intervir o Poder Judiciário no sentido de assegurar a efetividade destes direitos, guardados os limites entre a razoabilidade da medida pleiteada e os limites (físicos, financeiros e humanos) para o seu atendimento.

Tal tarefa não é fácil nem simples, mas o constante debate sobre tais questões pela sociedade ajuda a traçar caminhos válidos para a resolução das questões que constantemente vem sendo apresentadas.

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*Advogadas do escritório Manucci Advogados










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