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Lei Federal nº 11.705/08 (lei seca): punir, arrecadar, não educar e lucrar

A recente promulgação da Lei nº 11.705 de 20.6.2008 trouxe rigor contra o motorista que ingerir bebidas alcoólicas.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Atualizado às 14:01


Lei Federal nº 11.705/08 (lei seca): punir, arrecadar, não educar e lucrar

Karyna Rocha Mendes da Silveira*

A recente promulgação da Lei nº. 11.705 de 19.6.2008 (clique aqui) trouxe rigor contra o motorista que ingerir bebidas alcoólicas. O condutor que for flagrado dirigindo após consumo de bebida alcoólica (0,02 g/l) perderá o direito de dirigir por um ano, além de pagar multa pela infração, considerada "gravíssima", no valor de R$ 955,00, e terá o veículo retido até que outro motorista vá buscá-lo. A partir de 0,6g/l, cerca de dois chopes, o motorista poderá também ser preso em flagrante e sofrerá processo cuja pena varia de seis meses a três anos.

Como cediço, o abuso no uso do álcool causa grandes riscos à saúde e merece imediata ação das políticas públicas, haja vista que contribui para distúrbios sociais e traumas físicos e mentais, desestruturando inúmeras famílias.

Causou-nos espécie que uma lei com tamanho rigor não tenha tido vacatio legis (período decorrente do dia da publicação de uma lei até a data em que esta entra em vigor), que permitiria que os condutores pudessem conhecer a lei e serem educados por ela.

As propagandas sugerem comportamentos, elas vendem mais do que o próprio produto, vendem idéias ou mensagens que incentivam as pessoas a comprar o produto. As empresas que produzem bebidas alcoólicas gastam muito tempo e dinheiro criando imagens que fazem com que consumir bebidas alcoólicas pareça atraente. A mensagem que elas transmitem é que as bebidas alcoólicas tornarão a vida melhor.

Do uso social ao problemático, o álcool é a droga mais consumida no mundo. Segundo dados de 2004 da Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 2 bilhões de pessoas consomem bebidas alcoólicas. Seu uso indevido é um dos principais fatores que contribui para a diminuição da saúde mundial, sendo responsável por 3,2% de todas as mortes e por 4% de todos os anos perdidos de vida útil.

O II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, promovido pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) em 2005, aponta que 12,3% das pessoas, com idades entre 12 e 65 anos, são portadores de alcoolismo e, cerca de 75% já beberam alguma vez na vida. Os dados também indicam o consumo de álcool em faixas etárias cada vez mais precoces e sugerem a necessidade de revisão das medidas de controle, prevenção e tratamento.

O 1º Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool da População Brasileira, elaborado pela Senad em parceria com a Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) e divulgado em agosto de 2007, mostrou que os jovens entre 18 e 24 anos são os que mais bebem. A diferença em relação aos que têm 60 anos ou mais chega a ser 89% maior. Ainda de acordo com a pesquisa, a cerveja e o chope são responsáveis por metade das doses consumidas por adolescentes, e o vinho por 30%.

Sobre o uso de álcool ao dirigir, o levantamento mostra que dois terços da população pesquisada já dirigiram depois de consumir três doses de álcool ao menos duas ou três vezes no último ano, o que ultrapassava o anterior limite legal permitido no Brasil, que era de 0,6 g/l de sangue.

Atualmente, a Lei n°. 9.294 de 15.7.1996 (clique aqui) considera bebida alcoólica aquela com graduação superior a 13° (excluindo, portanto, cervejas e vinhos) e estabelece que a propaganda desses produtos em rádio e televisão só é permitida entre 21 horas e 6 horas. Assim, as propagandas de poucos segundos são permitidas em quaisquer horários.

No estudo sobre "O álcool nos meios de comunicação" - Publicidade de Bebidas Alcoólicas apresentada ao Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional aos 6.3.2006, o Professor Dr. Ronaldo Laranjeira destacou os danos que as bebidas alcoólicas causam à população brasileira, apontou o aumento do consumo e propôs um conjunto de medidas: a primeira é a restrição da propaganda do álcool; a segunda, é uma política de preços para os produtos, "porque não existe país no mundo onde o preço do álcool seja mais barato do que no Brasil"; a terceira medida seria a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de idade; o quarto grupo de ações seria a implementação das restrições do beber e dirigir.

Como o conceito de bebida alcoólica está diretamente ligado ao horário de veiculação das propagandas o Projeto de Lei nº. 2.733 de 21.1.2008 (clique aqui) pretende adequar a legislação em vigor, reduzindo de 13º para 0,5º Gay-Lussac o teor alcoólico a partir do qual, para todos os efeitos legais, uma bebida seja considerada como alcoólica.

Todavia, o lobby das bebidas na Câmara Federal retirou de pauta a votação deste projeto de lei que restringe a propaganda de bebida alcoólica na TV e, conseguiu em 8.5.2008 que o projeto de lei passasse a tramitar em regime de prioridade ao contrário da tramitação anterior (mais célere), regime de urgência.

Vale dizer, o governo desconsiderou recentes pesquisas, dentre as quais destacamos a da Universidade de Connecticut em Storrs que concluiu: a publicidade influencia o consumo de álcool. Esta, com jovens entre 15 e 26 anos constatou que para cada anúncio de bebida alcoólica visto por mês, há um aumento de 1% na média de drinques consumidos e também que a cada dólar adicional per capita gasto na publicidade de álcool em um mercado particular, os participantes do estudo bebiam 3% a mais por mês.

Incrível que o governo tenha adotado na íntegra os interesses do SINDICERV - Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (em 2007 o faturamento foi de R$ 21 bilhões) conforme consta na sua apresentação em 3.5.2005 na 4ª Reunião Ordinária do Conselho de Comunicação Social no Congresso Nacional por seu presidente, Milton Seligman (Ambev) (clique aqui).

Ademais, em vários estados a Ambev vem sofrendo condenações altíssimas por dano moral coletivo decorrente da prática de assédio moral contra seus funcionários, ferindo, destarte, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição Federal - clique aqui) no seu modo de produção.

O Brasil é o campeão mundial em acidentes automobilísticos por causa do álcool, em contraponto, a política pública, norteada pelos ideais da indústria de bebidas culminou com a promulgação de lei flagrantemente inconstitucional e pontual, divorciada de um projeto de medidas integradas. O Poder Judiciário deverá serenizar o espetáculo mediático e policialesco dos bafômetros e das prisões dos condutores, traduzindo o cenário de desesperança com o Legislativo e Executivo atuais, sem solução para a questão.

Não é possível assistir o convívio do Zeca Pagodinho de um lado e o bafômetro do outro, como se fizesse sentido esta política, mas como disse Martin Luther King: "O que me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons". Fica aqui registrado nosso "grito".

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*Advogada, membro efetivo da Comissão de Defesa do Consumidor da qual coordena o Grupo de Serviços de Saúde





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