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O caso Dantas e o "habeas corpus" da ONU

O episódio envolvendo o sr. Daniel Valente Dantas e os demais investigados na operação Satiagraha acendeu o debate sobre o estado policial, as liberdades individuais, a falência do sistema penal/prisional, mas fechou os olhos para a mais recente condenação do país pela ONU em matéria de direitos humanos, expondo nossa fraca constitucionalidade.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Atualizado em 5 de agosto de 2008 13:19


O caso Dantas e o "habeas corpus" da ONU

Márcia Novaes Guedes*

O episódio envolvendo o sr. Daniel Valente Dantas e os demais investigados na operação Satiagraha acendeu o debate sobre o estado policial, as liberdades individuais, a falência do sistema penal/prisional, mas fechou os olhos para a mais recente condenação do país pela ONU em matéria de direitos humanos, expondo nossa fraca constitucionalidade.

Na Revisão Periódica Universal sobre Direitos Humanos, realizada pela Organização das Nações Unidas e que é feita com base em dados coletados pelos próprios representantes da instituição e 22 organizações não governamentais, o Brasil foi mais uma vez reprovado! O governo não cumpriu o prazo dado, a partir de 2005, de resolver as expulsões dos índios de suas terras; as execuções extrajudiciais de pessoas; a tortura nas prisões; a superlotação dos cárceres e a inumana condição dos presidiários. A perversa concentração de renda, que deixa na miséria 50 milhões de brasileiros e nos torna um dos cinco países mais desiguais do mundo, foi igualmente condenada.

A ONU revelou, ainda, que no Brasil são assassinadas 50 mil pessoas por ano, e dentre as vítimas preferenciais estão os jovens pobres e negros com idade entre 15 e 19 anos. Quanto à tortura, o relatório revela o que todos sabemos: é uma prática generalizada nas delegacias e prisões para obter confissões, com a tolerância de muitos juizes, que a definem como mero "abuso de poder" [Carta Capital, 5/3/08]. A Constituição (clique aqui) - perfumaria rara nas prateleiras das delegacias - define a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral.

Nesse país multirracial, estudos revelam que o racismo é uma variante fundamental na compreensão do sistema penal brasileiro e no projeto genocida do estado. Segundo a professora/pesquisadora da UnB Ana Luiza Pinheiro Flauzina, "o sistema penal se presta mais ao controle dos indivíduos e dos grupos estigmatizados do que propriamente à prevenção/repressão dos atos infracionais. A morte é mesmo o produto por excelência da movimentação dos sistemas penais latino-americanos". Por isso, "o discurso da falência do sistema penal é falso, ele funciona e muito bem"! Mas, revelar essa relação promíscua entre racismo e sistema penal bate na resistência de vários grupos da "intelectualidade branca" - adverte a estudiosa. Como diz um certo João, que este ano faz 100 anos, "quem mói no asp'ro não fantasêia".

Relembrando o caso. A apuração dos fatos envolvendo o banco Oportunity e o Sr. Daniel Valente Dantas muito se deve ao jornalismo investigativo de Bob Fernandes. O inquérito policial corre há quatro anos e é acompanhado e fiscalizado por um Procurador da República. A prisão temporária, decretada pelo Juiz Fausto de Sanctis, teve suporte na Lei 7.960/89 (clique aqui). Respeitáveis juristas afirmam que essa lei criou uma espécie de prisão para averiguações e seu verdadeiro objetivo é obrigar o investigado a confessar ou delatar. Ante a previsão legal da prisão preventiva, a temporária seria inconstitucional. Certo, mas cabe ao STF o controle direto de constitucionalidade das leis. E a Lei 7.960/1989 segue incólume.

A segunda ordem de prisão foi dada ante a suposta tentativa de prepostos do investigado de subornar um delegado da Polícia Federal. A prisão preventiva visa garantir a instrução [colheita das provas] e a aplicação da lei penal. Sobre o poder do Sr. Dantas, o jornalista Mino Carta escreveu: ao inquirir uma autoridade da República porque não revelava o disco rígido do computador apreendido em seu escritório, respondeu-lhe: "se revelado, cai a República"! [Carta Capital, 16/7/08]. Desse medo não padeceram os Juízes da Instrução Criminal da Itália durante a Operação Mãos Limpas.

O Juiz Wálter Fanganiello Maierovitch, afirmou que a jurisprudência do STF foi ignorada, a instância atropelada e a Corte transformada numa UTI [Carta Capital, 16/7/08]. Não é aceitável que a jurisprudência se cristalize e resista à emergência do direito e a expansão do sentimento de justiça. Direito é linguagem, e cabe ao intérprete atribuir sentido à norma. Essa interpretação não é arbitrária, conforme o gosto e conhecimento do aplicador. O processo hermenêutico exige uma pré-compreensão, que passa pelo "constitucionalismo paradigmático", o qual se nutre da paz e dos direitos humanos, colunas da democracia. Em direito, quem pode o mais pode o menos. Direitos fundamentais da pessoa humana gozam da qualidade de infinitude, portanto, quando ameaçadas as garantias das liberdades individuais, o atropelo de instâncias parece irrelevante, afinal, "homo sacer"!

Ocorre que na fila da UTI para ser socorridos se encontram amontoados, como resíduos sólidos, milhares de homens [igualmente "sacri"] que se matam e matam uns aos outros numa guerra hobbesiana por falta de espaço físico indispensável para permanecerem presos. Recentemente, um Juiz que decidiu não compactuar com a "conspiração do silêncio" e aplicou o art. 5o, inciso XLIX da Constituição da República, foi duramente criticado pela mídia.

O "habeas corpus" da ONU. O Sr. Dantas não tem apenas um batalhão de mil advogados vigilantes ao mais leve deslize das autoridades quanto a seus sagrados direitos, mas revelou ter mais poder do que a ONU! Sua prisão desencadeou um profundo mal-estar na República, ao qual se seguiu um 'concertamento' entre os Poderes, Judiciário e Executivo. Doravante, para a garantia das liberdades individuais dos "investigados criminalmente", a Constituição e o ordenamento jurídico em vigor não serão suficientes. Dentre as providências sugeridas encontra-se a dilatação do conceito de "abuso de poder"; limitação ao poder de investigação dos delegados da PF [Folha de São Paulo, on line, 22/7/07]; a desobediência do Juiz de 1º grau, e a introdução no ordenamento do "Crime Contra as Prerrogativas dos Advogados". Mas, quanto à gigantesca "petição de habeas corpus" da ONU nenhuma palavra! A jurisdição é inerte e ao Organismo Internacional, ao qual o país está acreditado, desde 1948, falta legitimidade! A Bastilha que espere!

Não se recusa a reconhecer o inegável: o crescimento do estado policial, que se tornou mais evidente com o neoliberalismo e a ruptura entre poder e política minando as garantias sociais. No Brasil, a polícia forte para os fracos e fraca para os fortes sempre foi a regra, desde a Abolição! Desse lodo se nutre tanto a crônica policial jornalística quanto a música popular brasileira de Noel Rosa a Chico Buarque de Holanda. Portanto, tentar associar a investigação policial e a firme atuação judicial na apuração e condenação dos crimes do colarinho-branco à violação de direitos humanos, como sinal a pôr em risco as liberdades individuais do brasileiro comum, é mais um enxerto plantado pela razão cínica para ocultar o óbvio.

Seguramente, a abertura do disco rígido do computador do Sr. Dantas poderia fazer cair a República, mas no sentido profetizado por Raymundo Faoro e revelado numa entrevista ao jornalista Mino Carta:

"No Brasil, a elite encaminhou as coisas para ser elite, desprezando o povo e assim pensa que se moderniza: desprezando ou não sabendo que a chamada modernização passa pela destruição dela própria. A única maneira de essa elite encontrar uma racionalidade é deixar de ser elite e tornar-se cidadã". [Isto É, Senhor, 22/1/1992].

Essa racionalidade cidadã passa pelo cumprimento dos compromissos ajustados com a ONU, sob a indispensável interveniência do STF, guardião precípuo da Constituição Federal. A lógica genocida vai ceder à media que os cárceres passarem a receber hóspedes ilustres, os graúdos, cujo poder estremece a República. Até lá, a sociedade civil, frustrada, segue rindo-se com o adágio recolhido do dialeto siciliano:

Giustizia, stava scritto su un portone e ci credette un minchione [Justiça, estava escrito num portão e um otário acreditou].

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*Juíza do Trabalho, doutora pela Universidade de Roma - Tor Vergata, professora de Direito Constitucional e associada da AJD





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