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Made by China in Brazil

Na atualidade, em termos mundiais, a expressão mais lida, sem sombra de dúvida, é: "Made in China".

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Atualizado em 26 de agosto de 2008 15:00


Made by China in Brazil

Jorge Luiz Souto Maior*

"Tropa de Elite
Osso duro de roer
Pega um, pega geral
Também vai pegar você..." (Tihuana)

Na atualidade, em termos mundiais, a expressão mais lida, sem sombra de dúvida, é: "Made in China".

Isso se dá porque as grandes multinacionais (que no fundo possuem uma nacionalidade específica) transferiram para a terra das "muralhas" suas unidades produtivas em busca do baixo custo do trabalho lá oferecido.

Não cabe no âmbito dessa análise buscar as explicações para o baixo custo do trabalho na China (política econômica de Estado; efeito da lei da oferta e da procura...). É evidente que o baixo custo está relacionado à quase ausência de uma legislação trabalhista, mas procurar as razões para esse fenômeno é algo bem mais complexo que, como dito, não se destina essa abordagem.

Não se pretende, igualmente, enfrentar a questão pertinente aos reflexos internos para a China de tal política no que se refere ao seu desenvolvimento sócio-econômico ou quanto às implicações de natureza ambiental.

O fato concreto incontestável é o de que por razões múltiplas, ligadas a diversos interesses até contrapostos (do Estado chinês e das multinacionais), o mercado de consumo mundial está sendo alimentado pelos produtos "Made in China".

Tudo se faz na China, desde qualquer coisa a uma coisa qualquer...

Do ponto de vista da presente análise, o que cabe observar é que esse modelo de produção concentrado, a partir do baixo custo da mão-de-obra, para um mercado consumidor difuso, sem fronteiras, gera efeitos em praticamente todas as nações do mundo, pressionando para baixo o valor do trabalho, com prejuízo do avanço da idéia básica de pacto social que notabilizou as sociedades ocidentais, sobretudo a partir de meados do Século XX.

Os países economicamente mais desenvolvidos, principalmente aqueles em que o pacto social gerou efeitos concretos, sentem menos o efeito econômico dessa situação, até porque grande parte de seu poder econômico advém da exploração do trabalho em solo chinês.

Países cuja economia se desenvolveu com a lógica do neoliberalismo, como os EUA, sentem um pouco mais os efeitos maléficos dessa situação, pois o lucro obtido por "suas" empresas não é necessariamente revertido em benefícios sociais. O desemprego aumenta e não há políticas sociais institucionalmente reguladas para a situação. De todo modo, a economia tem fôlego. Só não se sabe até quando, pois a transferência de tecnologia, que aos poucos vai sendo apropriada pelos países asiáticos de um modo geral, pode, em futuro não muito distante (haja vista o resultado que se avizinha nas Olimpíadas de Pequim), conduzir a uma nova mudança no arranjo mundial, com efeitos devastadores mesmo para as economias mais robustas da Europa Ocidental e da América do Norte.

Sem adentrar uma discussão a respeito de prognósticos, que são sempre perigosos nessa área, o fato é que a situação presente é bastante desastrosa para as economias frágeis dos denominados países emergentes, como o Brasil.

É difícil para a indústria nacional concorrer com os produtos chineses. Estes chegam ao país com um valor de mercado impossível de ser batido. Essa situação tem pressionado a produção nacional na direção de uma busca frenética por menor custo de produção, que acaba desembocando na via mais fácil do achatamento de salários e da diminuição das garantias trabalhistas.

A saída encontrada, no entanto, somente agrava a situação, pois, logicamente, reduz a capacidade de consumo do mercado interno, o qual, desprovido de poder econômico, é forçado a reduzir ainda mais seu nível de consumo tanto do ponto de vista quantitativo quanto da qualidade. A procura por produtos chineses, especialmente no mercado paralelo, atinge camadas da sociedade antes isentas de tal preocupação. Alimenta-se, assim, a lógica da precarização das relações de consumo, que, por sua vez, conduz a nova precarização do trabalho e assim por diante.

A rota seguida, portanto, não recupera a economia nacional, muito pelo contrário, tanto que basta falar em aumento do salário-maternidade de quatro para seis meses que a CNI (Confederação Nacional da Indústria), por intermédio de seu Presidente, manifesta publicamente sua preocupação, aduzindo que a ampliação da licença-maternidade para seis meses "sacrificará" a competitividade da indústria brasileira.

O caminho adotado traz consigo, ainda, a drástica diminuição dos recolhimentos de tributos e contribuições sociais, quebrando o custeio dos direitos sociais com educação, saúde, lazer, política esportiva etc.

Tudo isso abala sensivelmente a sociedade brasileira, que se vê meio sem rumo diante de um Estado que se pretende social, mas que não tem forças para imprimir uma concreta política neste sentido, a não ser em nível assistencialista (que é muito importante, mas que não enfrenta, concretamente, o problema).

Desvinculadas de um projeto de sociedade, as pessoas, sobretudo a elite, tendem, de forma até compreensível, a buscar a imediata satisfação de seus interesses particulares.

Do ponto de vista do trabalho, como dito, as alternativas de precariedade são cada vez mais criativas: empregados são transformados em "colaboradores"; adiciona-se aos nomes dos trabalhadores o sobrenome ME; as terceirizações proliferam de fora para dentro e de dentro para fora, tornando a invisibilidade um atributo de vários trabalhadores brasileiros; direitos se transformam em números, números se transformam em promessas ou favores...

Claro, propor uma solução à brasileira, ou seja, uma solução pensada exclusivamente para o Brasil, para este problema que tem dimensões mundiais, não é mesmo uma tarefa fácil, o que, de certo modo, atrai a presunção de boa fé para as distintas visões que se lhe apresentam.

Não há, evidentemente, uma solução simplista para a questão posta. Mas, parece-me mais que razoável chegarmos, decididamente, à conclusão de que um caminho não podemos seguir (e isso já é bastante): o caminho da precarização das relações humanas, vez que por ele somente alimenta-se a lógica da perversidade da exploração do homem sobre o homem sem qualquer compromisso com algum projeto de natureza social. Dentro de seu contexto, redução de salário chama nova redução; aumento de jornada de trabalho atrai novo aumento (de compensação semanal passa-se a uma compensação de 120 dias e depois de um ano e assim por diante); a terceirização se reinventa e cria a quarteirização e a subcontratação...

Como venho advertindo desde 2001, "a realidade demonstra, no entanto, que as tais técnicas de flexibilização do direito do trabalho ao contrário de atacarem o problema do desemprego têm alimentado a lógica do desemprego e provocado uma crescente desvalorização do trabalho humano, o que, por certo, está agravando o nosso maior problema social, que é a má distribuição de renda (há uma camada cada vez maior de miseráveis e uma camada cada vez menor de pessoas cada vez mais ricas). Em outras palavras, aqueles que hoje prestam serviços mediante a utilização desses mecanismos são os 'empregados' de ontem (vide o exemplo das cooperativas de trabalho). Ou seja, as referidas técnicas não geraram empregos, eliminaram os empregos que existiam."1

A mais recente prova disso está nos jornais deste final de semana: "Chineses são seqüestrados no Rio". Segundo se tem dito, o fato teria sido motivado por uma espécie de represália em razão da contratação de 120 operários chineses para trabalharem na construção da siderúrgica Thyssemkrupp-CSA, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro.

Independente de se avaliar se fora essa mesmo a motivação do seqüestro e muito menos ainda de aventar a possibilidade de considerar legítima a iniciativa, não se pode deixar de verificar a gravidade do próprio fato reconhecido de que 120 operários chineses foram contratados para a realização de serviços típicos da construção civil ("pedreiros"). Traduzindo a situação em outras palavras, não se podendo transferir a atividade empresarial da construção civil para a China, trouxeram a China para cá. O Haiti já era aqui, agora é a China também...

A situação pode ser tomada como a simbologia de demonstrar que a idéia de precarização está em plena atividade e que não tem qualquer limite.

Assim, ou os trabalhadores brasileiros aceitam as condições impostas pelo poder econômico, com repercussão na sua atividade sindical, ou, não se podendo importar o produto "Made in China", efetiva-se o "Made in China" por aqui mesmo. É o "Made by China in Brazil"!

Sem enfrentar diretamente a situação concreta acima relatada, é imperativo fixar o pressuposto jurídico de óbice dessa seqüência precarizante, e isto não pelos propósitos europeus, de segregação racial e de pura reserva de mercado, mas para deixar claro que toda e qualquer estratégia do poder econômico internacional para inviabilizar a construção de um pacto social no Brasil deve ser severamente repelida.

Contratações coletivas de trabalhadores estrangeiros têm o nítido efeito de inviabilizar a atividade sindical dos trabalhadores brasileiros da área específica e de reforçar a lógica da precarização das relações de trabalho, contrariando, frontalmente, a Constituição brasileira (clique aqui), que estabelece, expressamente, o princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores.

A Constituição Social Democrática do Estado brasileiro baseia-se no valor social do trabalho e no desenvolvimento da economia a partir da lógica da justiça social.

Sem negar vigência ao modelo capitalista, a Constituição, ao atribuir a tal modelo a obrigatoriedade de priorização dos valores sociais como direitos fundamentais, instituiu, juridicamente, o imperativo da formação de um pacto social, ou seja, da efetiva construção da Social Democracia.

Claro, não se pode permitir qualquer discriminação com relação aos estrangeiros, até porque um mundo que se mire na essência dos direitos humanos, é um mundo sem fronteiras, sem divisões de raças, sem segregações, solidário e fraterno.

Mas, diante de uma realidade mundial, marcada pela influência do próprio modelo chinês de produção, que provocou a quebra internacional em torno da exploração do trabalho humano (consagrado na Declaração de Filadélfia, da OIT, em 1944), não se pode negar a importância da construção de pactos locais e regionais em torno da relação entre o capital e o trabalho. A regulação interna é necessária até para preservação do essencial confronto democrático entre as forças produtivas no âmbito coletivo, especialmente para evitar a concorrência desleal entre as empresas. Se, por exemplo, a construção civil puder ser desenvolvida, internamente, por empresas estrangeiras com prevalência de mão-de-obra estrangeira, à qual se atribua custos menores, como as empresas nacionais, com seus empregados e vínculos jurídicos já formados e desenvolvidos sob a égide dos pactos individuais e coletivos, poderão concorrer com aquelas? A concorrência leal, que é a base da livre iniciativa, sem efetiva regulação, ver-se-ia, igualmente, sensivelmente, abalada.

Há de se reconhecer, ademais, que uma coisa é a contratação de um ou outro estrangeiro para execução de tarefas específicas. Outra, bem distinta, é a contratação de um batalhão de trabalhadores, para a execução de tarefas para as quais a mão-de-obra nacional seja abundante, agravando-se a situação quando o capital envolvido para a execução da obra seja todo ele, tomador e executor dos serviços, pertencente a empresas de origem estrangeira.

Em suma, não se podem conceber como legítimas as situações em que estejam embutidas autênticas agressões ao projeto de sociedade previsto na Constituição brasileira.

Não tendo a pretensão de deixar a lógica de mercado, cabe ao Brasil, na qualidade de nação, efetivar seu projeto de natureza capitalista, que não é, certamente, um capitalismo neoliberal e sim um capitalismo baseado no Estado Social Democrático.

Há de se ter a pretensão de implementar esse projeto "Made in Brazil", que junto com lucros privados traz compromissos internos de desenvolvimento social, o qual só se pode vislumbrar com efetivação dos direitos constitucionalmente consagrados no sentido da busca do pleno emprego e do concreto custeio do sistema de Seguridade Social. Uma economia que corra solta na base do quem pode mais chora menos não cria vínculos de natureza social e não produz verdadeiros compromissos (que se possam exigir obrigatoriamente) de natureza solidária.

Não se realizando essa obra, continuaremos produzindo e reproduzindo, acumulações de riquezas, misérias e conflitos urbanos. Mas, o "Made in Brazil" não pode ser uma marca vinculada à mera produção da marginalidade.

Em crescente manifestação, proferida na Rádio CBN, em 19/8/08, às 8h5 ("Rio de Janeiro, cidade sem saída?"), o festejado cronista Arnaldo Jabor destacou o caos no Rio de Janeiro provocado pela falta de controle sobre a marginalidade e chamou a atenção para o aspecto de que a solução do problema deve ser encarada como uma "questão de Estado". Parece-me correta a avaliação, mas há de se dizer que também é "questão de Estado" estabelecer projetos e limites para o desenvolvimento do modelo capitalista de produção.

Não se pode reservar à iniciativa privada a plena liberdade de atuação, para usufruir, em prol da satisfação de seus interesses particulares, desvinculados de um projeto de nação, do mercado de consumo, sem compromissos quanto ao pagamento de impostos, ao recolhimento previdenciário e ao respeito aos direitos humanos, e deixar para um Estado, desvalido de capacidade econômica (e, claro, também vitimado por inúmeros desvios indevidos do erário), o cuidado com a questão social que do excesso de liberalismo decorre, acreditando na eficiência de sua atuação no setor, mesmo sabendo que este, após ter sido afastado por décadas do papel de conduzir os arranjos sociais, transformou-se em uma grande máquina burocrática. Na Justiça do Trabalho, por exemplo, enquanto o mundo passa por enormes efervescências que requerem uma visão estrutural do modelo de produção (sobretudo por conta da reiterada iniciativa de diversos segmentos econômicos de terceirizar sua produção ao infinito, de utilizar de trabalhadores sem o devido reconhecimento da relação de emprego, de desenvolver sua atividade por intermédio de contratos precários ou por meio de uma política de rotatividade da mão-de-obra), incontáveis esforços mentais são direcionados, diariamente, a saber se o intervalo para refeição e descanso não cumprido gera reflexos em FGTS, férias e 13º. salário, ou se há, ou não, incidência de INSS sobre aviso prévio indenizado...

Sem a efetiva presença estrutural do Estado na formação e no desenvolvimento das relações sociais (e não apenas na criminalidade produzida como efeito) pouca chance de sucesso se pode vislumbrar porque, enquanto estamos aqui jogando palavras, trabalhadores rurais ainda estão sendo transportados em caminhões e morrendo "esmagados" na Rodovia Fernão Dias, MG, já os sobreviventes são conduzidos a um hospital público que declara não ter condições materiais para tratá-los.2

Não se pode, ademais, vislumbrar a marginalidade como uma produção independente, como se fosse o mero fruto de uma espécie determinada de solo geneticamente condenado. Não é possível imaginar que o problema se resolva pela ação da Tropa de Elite. A superlotação nos presídios, por sua vez, não é apenas resultado de processos judiciais inacabados3.

Tudo que se produz na sociedade é fruto dela mesma. A marginalidade, que advém da quebra do pacto social, portanto, não se resolve perifericamente, mas apenas dentro de uma preocupação de reestruturação de toda a sociedade (incluindo o próprio Estado), tomando-se por pressuposto a necessária efetivação dos direitos sociais a partir da uma concreta política de regulação estatal do modelo de produção capitalista.

Fato é que da perversidade da lógica destrutiva decorrente da ausência de um efetivo projeto de sociedade ninguém consegue fugir. Ela pega um, pega geral, e também vai pegar você...4

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1 "Modernidade e Direito do Trabalho", publicado no Jornal Trabalhista Consulex, v. 18, n. 848, p. 5-7, de 29 jan. 2001 e na Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 67, n. 1, p. 153-159, jan./mar. 2001.

2 "Chega a 14 o número de mortos em acidente com caminhão de bóias-frias em MG." (clique aqui) (acesso em 20/8/08, às 11h5)

3 "Tribunal de Justiça e CNJ lançam hoje mutirão para diminuir número de presos nas cadeias." (clique aqui), acesso em 20/8/08, às 11h10)

4 Talvez eu esteja um pouco amargo, mas o que era de se esperar após um dia em que todos esses fatos ocorreram e o Brasil ainda perde para a Argentina por três a zero?

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*Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí, SP. Professor associado de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP






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