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Ativismo judicial

De tempos em tempos, os "organismos" - tanto os biológicos quanto os jurídicos e sociais -, dão uma espécie de "salto" para um patamar, geralmente superior. Reagem, em suma, às dificuldades do meio ambiente. Assumem novas formas.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Atualizado em 3 de setembro de 2008 10:22


Ativismo judicial

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues*

De tempos em tempos, os "organismos" - tanto os biológicos quanto os jurídicos e sociais -, dão uma espécie de "salto" para um patamar, geralmente superior. Reagem, em suma, às dificuldades do meio ambiente. Assumem novas formas. Do contrário, sucumbiriam. O que são os cactos do deserto senão uma providência enérgica, espinhosa, de defesa da água escassa? Quem quiser roubá-la vai se espetar. Nenhum organismo, irracional ou racional, pretende sucumbir. A morte - pelo menos a própria - não é atraente. Isso ocorre em todas as conformações "vivas", inclusive na atividade judicial e na advocacia, duas importantes funções do "organismo" estatal.

Toda a evolução da vida na face da terra é produto dessas súbitas mudanças qualitativas. A meu modesto ver - meramente especulativo - nem sempre fruto do acaso genético. Embora afrontando Darwin - que explica a evolução como resultado de mudanças meramente acidentais, gerando espécies mais aptas à sobrevivência - presumo que algum cientista ainda comprovará que o meio ambiente "pressiona" para que ocorram certas "mutações reativas". Provavelmente, algumas mudanças são acidentais; outras, resultado, resposta contra a contínua pressão de um meio hostil, despertando reações de defesa na "inteligência" - ou que outro nome tenha - embutida em todo ser vivo. Bactérias não têm cérebro, mas reagem contra antibióticos, obrigando a indústria farmacêutica e inventar novos remédios. Ratos que, por mero acaso, penetraram em frigoríficos e lá se reproduziram acabam se tornando muito mais peludos que seus ascendentes. Esse excesso de pelos será acidental?

Para que ocorram tais "saltos" qualitativos na natureza é preciso que a pressão seja insistente, repetitiva. Aí a quantidade acaba modificando a qualidade. Uma tese antiga, grega, bem anterior ao marxismo, que aceita a idéia, pelo menos no âmbito econômico e social. Exemplificando simploriamente, se o leitor, classe média, receber como herança, um terreninho, isso não o modificará interiormente, não influindo na maneira - sua e de seus descendentes - de encarar o mundo. Se, porém, receber, de herança, dois mil lotes, sua vida sofrerá uma forte alteração. O que fazer com tantos terrenos? Provavelmente o leitor se transformará em empresário, passando a pensar como empresário. Se era a favor da rigidez dos direitos trabalhistas, passará a ser a favor da flexibilização. Seus descendentes também - pelo menos alguns -, ampliarão suas opções sobre como ganhar a vida. Não colocarão todas suas fichas em um diploma universitário. Serão mais atraídos para os negócios. Tudo isso, no fundo, uma alteração qualitativa, fruto de um "detalhe" quantitativo: dois mil, em vez de um.

Outro exemplo de reação "orgânica", espontânea, oriunda de inteligência desconhecida: pequenos pedaços de gazes, esquecidos por cirurgiões na cavidade abdominal do paciente, por vezes acabam sendo expulsos sem nova cirurgia. De alguma forma conseguem - o organismo dá um jeito... - atravessar a parede do intestino grosso, sendo expulsos pelas vias naturais. Como o organismo consegue fazer isso?

Considerando que o leitor não tem tempo para simplificações filosóficas, menos ainda quando vazadas em estilo coloquial - horror dos horrores! -, estabeleçamos a ligação do tema Justiça com o fenômeno quantitativo, chegando ao nepotismo e outros abusos que afetam o organismo estatal. O nepotismo está em muita evidência nestes dias e felizmente na mira do STF. Trata-se de um filho espúrio de duas tendências afetivas ancestrais: a proteção da prole (via empregos públicos sem concurso) e expressão de gratidão ou amizade (presente para quem o ajudou a eleger-se ou simples amigo). O problema é que essa "bondade" é injusta para os que pretendem ingressar no serviço público pela via aberta dos concursos e não contam com parentes ou amigos importantes. Além do mais, somente o concurso público pode dizer quem está melhor preparado para a função. E é salutar para a nação que seus funcionários tenham um bom preparo intelectual. Daí a inclusão do nepotismo na agenda mais ativista do STF. A propósito, seria pertinente um aperfeiçoamento nos concursos de ingresso na magistratura, de forma a dificultar ao máximo a influência do nome do candidato na sua avaliação, de modo a afastar a mera hipótese de que foi aprovado, pelo menos em parte, graças à sua condição de descendente de magistrado. É conveniente um anonimato total nos tais concursos, inclusive com abolição do exame oral. Se o candidato for gago, o exame médico já o excluirá, não sendo preciso um exame oral para isso. Ouvem-se muitas queixas - talvez injustas -, contra as supostas maiores chances de ingresso nas carreiras jurídicas em conseqüência do parentesco.

No início da monarquia, universalmente, era o rei quem, pessoalmente, aplicava a justiça. Monopólio do rei, não mais dos barões. Um caso ou outro aparecia. Pouco depois, o rei percebeu que mais e mais súditos, confiantes, acorriam em busca de soluções para seus problemas e "probleminhas". Quanto mais justo fosse o rei, "pior", isto é, maior a carga de trabalho. E as discussões se tornavam progressivamente mais complexas, exigindo conhecimentos não presentes no córtex cerebral real. Aí o rei concluiu pela necessidade de delegar a função de julgar a alguns representantes com reputação de inteligentes e justos, os quais passaram a se chamados de "juízes". E mais e mais questões foram chegando...

Conta-se que na China, em séculos passados, os juízes era orientados para tratar com grosseria quem os procurava. Medo do abuso, do excesso de litígios em nação com enorme população. Excesso que acabou atingindo outros países com dezenas ou centenas de milhões de cidadãos, todos mais ou menos egoístas ou cientes de seus legítimos direitos. Alguns cidadãos, até - em menor número -, cônscios de que, mesmo não tendo direito algum, poderiam alegar - impunemente - que o tinham, precisando de tempo - o mais longo possível... -, para provar seu ponto de vista. E com isso os países passaram a lidar com um problema: o "excesso de carga". Busca excessiva de um determinado tipo de serviço particularmente minucioso, detalhista e cheio de formalidades. Como, porém, erguer um dique parcial, seletivo, distinguindo o "importante" do "menos importante" - com isso evitando o afogamento de todo o aparato judicial -, sem ferir sua missão essencial de conceder justiça a todos, ricos e pobres?

É nesse gargalo angustiante que vive, hoje, a justiça brasileira. Decuplicar o número de magistrados, em todas as instâncias seria uma solução, mas cara demais. Pelo que sei, em certo momento do passado, os EUA, país com seus defeitos - "imperialista arrogante?" mas atento à necessidade de uma justiça que, "acima de tudo, funcione!" -, pensou em resolver o excesso de procura do serviço judicial multiplicando o número de varas, juízes e magistrados de todas as instâncias. Quando, porém, o contribuinte americano foi informado do tamanho da conta a pagar, deu um "basta!": o legislador que desse um jeito de inventar "mecanismos" práticos que permitissem fazer justiça sem onerar exageradamente as finanças do país! Isso explica a prática, para nós "brutal", de, nas condenações em dinheiro, na primeira instância, ser exigível que o devedor deposite todo o valor da condenação para poder apelar, com isso, comprovando que não recorre apenas para ganhar tempo. E quando o tribunal de apelação constata que o recurso foi interposto apenas com a intenção de retardar, costuma aplicar uma multa pesada. Ou até mesmo chega a proibir o advogado de trabalhar naquele Estado. O valor das fianças criminais também assusta qualquer um. E para lidar com o problema do excesso de demandas de pequeno valor, inventou, ou desenvolveu, as "small clains", técnica exportada para vários países, inclusive o nosso. Tudo isso significando reação do "organismo judicial" contra o perigo do estrangulamento.

Assim mesmo, a maré de demandas continua imensa, também estimulada pela habitual e humana busca de protelação da parte devedora que se defende e recorre para ganhar tempo, levando os juízes à desanimadora impressão de que estão enxugando gelo. Aí é que entra a nova e quase revolucionária atitude do STF, de certa forma "legislando" ao elaborar as "súmulas vinculantes".

Essa "técnica" de criar rapidamente "súmulas vinculantes", embora provoque algumas reações de estranheza teórica pela sua prematuridade - antes de um grande número de decisões iguais - é, todavia e excepcionalmente, benéfica à nação. Esqueçamos a pureza teórica, neste caso. Trata-se de corajosa reação de defesa do Judiciário, à semelhança do cacto mencionado no início, que pretende manter a "água pura" da sua reputação como Poder. Não dá, mais, para esperar do legislador as leis que resolvam, logo, os graves problemas da incerteza, abusos e morosidade. Morosidade que não é - frise-se - pessoal, dos juízes, salvo raras exceções. O Executivo já criou, inconscientemente, o seu "cacto" institucional defensivo particular: a Medida Provisória. Percebeu que sem ela seria impossível governar o país. Se está havendo abuso, isso é outra coisa. A "súmula vinculante precipitada" tem o mesmo propósito. É medida heróica.

Com o tempo, juízes e advogados que se revoltam contra essa atual "precipitação sumulante", verão que esse inegável "ativismo judicial" é uma reação providencial - rápida e urgente - para consertar muita coisa errada no país. Aguardar uma lei a respeito de meras atitudes - "abuso" é termo elástico - é quase uma ilusão, porque as leis demoram imensamente na sua elaboração e, por vezes, já nascem sutilmente defeituosas, escondendo as famosas "brechas" legislativas, fruto de lobbies poderosos.

A "súmula vinculante" define prontamente o que considera certo ou errado. Esclarece princípios. É o que, por vezes, basta. Quando diz que as algemas devem ser usadas apenas quando necessárias - não como simples forma de humilhação -, firma uma posição respeitável. Não proíbe o uso delas, conforme a situação do caso concreto. Lei alguma será capaz de regrar minuciosamente quando as algemas deverão ser aplicadas. Como mero e forte exemplo, não tem sentido algemar um alquebrado ancião de noventa anos, seja milionário ou pobre, só para fins de sensacionalismo, de ser fotografado ou filmado em situação de inferioridade. Mas não é exigível que o policial, ingenuamente, pergunte ao detido: "O senhor pretende reagir ou fugir?".

Quando, dias atrás, critiquei um conhecido magistrado, da instância máxima, que incentivava a criação de varas especializadas para julgar abusos de autoridade, centrei minha crítica na omissão de sua excelência, que se preocupava demais com o uso de algemas, e de menos com a eficácia das punições contra criminosos altamente posicionados. Frisei, então, que o povo - todas as camadas amantes da ordem e da justiça - não se incomodaria com o uso restrito de algemas se soubesse que os réus importantes seriam julgados mais rapidamente, pagando por seus crimes, se provada a culpa. Sem escapar, como ocorre hoje, das conseqüências de seus atos via prescrição ou fuga. Acentuei que a presunção de inocência só vale antes da decisão de primeiro ou segundo grau, mas não depois disso. Seria aconselhável ou necessário "segurar" o réu já condenado uma ou duas vezes, porque a fuga é certa, certíssima, caso ele permaneça solto. Somente um débil mental iria aguardar, passivamente, sua prisão quando poderia, de longe, "em viagens de negócio", aguardar o julgamento final, apresentando-se ou fugindo, conforme o caso.

Pelo que diz a mídia, o STF logo enfrentará o mais sério problema relacionado com a impunidade "de fato" de réus de elevada situação social ou econômica. Embora, na técnica jurídica, não exista "impunidade", porque, teoricamente, o réu pode, em remota data, ser preso, a impunidade real, efetiva, é um dado concreto da realidade se o acusado não foi preso antes da decisão final. Se for mantida a tendência ainda vigente, de confundir "condenação com trânsito em julgado" com prisão para garantir o cumprimento de eventual condenação, melhor será, para o prestígio da justiça, que se modifiquem as leis para, nos casos de grandes delitos financeiros, seja afastada qualquer conotação penal. A acusação apenas pleitearia a devolução do dinheiro desviado. Mas sem esperar, igualmente, o trânsito em julgado da decisão porque também na área cível o uso dos recursos protelatórios é algo em que todos imediatamente pensam.

Só posso aplaudir - levando em conta o panorama vigente - esse "ativismo judicial", revelado recentemente. Sob o ponto de vista teórico-processual, é discutível, mas há momentos em que a pureza teórica deve ceder espaço a remédios mais heróicos e eficazes. Não nos esqueçamos que redigir leis perfeitas é tarefa dificílima, quase impossível. Romancistas e poetas precisam de muito menos habilidade redacional que o grande legislador. Uma falha, no poeta, pode até valorizar o texto, com a "sutileza" vaga, enigmática. Já no legislador, o mais ligeiro "escorregão" se transformar em "brecha" abismal, por onde escoarão milhões. A rigor, não deveria haver esse fenômeno chamado "brecha da lei". A Intenção do legislador deveria sempre preponderar sobre as palavras utilizadas porque estas foram elaboradas por seres humanos, falíveis por excelência. Mas isso fica para outra oportunidade.

Aguardemos, pois, a tradicional sabedoria do STF na questão de se poder "reter" certos condenados antes da remota decisão final.

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*Desembargador aposentado do TJ/SP e Associado Efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo





 

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