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O lojista e o shopping

O relacionamento comercial entre os lojistas e os shoppings centers mostra-se arranhado pelas negociações que envolvem o cumprimento de condições abusivas anotadas no contrato de locação. São duas, dentre outras, as cláusulas que violam o princípio da livre concorrência: a da exclusividade territorial, que impede abertura de filiais nos shopping concorrentes e a "cláusula de raio" proíbe a abertura de outra loja em área de raio pré-determinado, variável entre um a quatro quilômetros da área central do shopping.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Atualizado em 23 de setembro de 2008 12:51


O lojista e o shopping

Antonio Pessoa Cardoso*

O relacionamento comercial entre os lojistas e os shoppings centers mostra-se arranhado pelas negociações que envolvem o cumprimento de condições abusivas anotadas no contrato de locação. São duas, dentre outras, as cláusulas que violam o princípio da livre concorrência: a da exclusividade territorial, que impede abertura de filiais nos shopping concorrentes e a "cláusula de raio" proíbe a abertura de outra loja em área de raio pré-determinado, variável entre um a quatro quilômetros da área central do shopping.

Vejamos a polêmica sobre a cláusula de raio. O assunto chamou a atenção inicialmente em São Paulo, há aproximadamente doze anos, quando a Associação dos Lojistas de Shopping Centers, ALSHOP, ingressou com ação para anulação da cláusula de raio, que prevê ainda multa de até 50% do valor do aluguel, inserida na maioria dos contratos de locação.

Em Salvador o tema apareceu depois da inauguração do Shopping Salvador, nas proximidades do Shopping Iguatemi. Os contratos celebrados entre o Iguatemi e os lojistas estipulam claramente a cláusula de raio, ou seja, quem abriu loja nele não poderá ter outra loja similar no Shopping Salvador.

A matéria é controversa e o Judiciário pouco tem sido acionado para solucionar impasse desta natureza. Há, entretanto, clara tendência de alguns doutrinadores e aplicadores do direito da linha legalista, pela prevalência do princípio secular do pacta sunt servanda, ou seja, vale o que está escrito no contrato.

Tal interpretação absolutista, não pode prevalecer, nos tempos modernos, porquanto esses pactos ressentem-se de real expressão da vontade das partes, diante do relativismo da bilateralidade da avença e do princípio do pacta sunt servanda; prejudica a livre concorrência e o poder de opção do consumidor.

Examinemos a legalidade da exigência, perante o arcabouço legislativo vigente.

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Ministério da Justiça, em duas ocasiões, em 2005 e 2007, decidiu pela exclusão das referidas disposições contratuais, além de penalizar o Shopping com multa de 1% sobre o faturamento bruto; o fundamento reside na Constituição e na Lei 8.884/94 (clique aqui)que considera infração à ordem econômica o exercício da atividade de forma abusiva e dominante.

O CADE entendeu que a "cláusula de raio" "configurava irrazoável restrição à livre iniciativa e à livre concorrência e prejudicava não apenas os lojistas e shoppings centers concorrentes, mas principalmente os interesses dos consumidores, que eram privados de escolher o local mais conveniente para realização das compras". Concluiu por assegurar que a manutenção da cláusula causaria prejuízos à expansão das lojas e a geração de empregos.

O Judiciário, convocado para se pronunciar sobre a legalidade da cláusula de raio, manifestou-se em algumas ocasiões. Em São Paulo, o juízo da 35ª Vara Cível entendeu que a cláusula de raio fere a Constituição (clique aqui) e a Lei de Defesa da Concorrência (clique aqui). O TRF da 1ª região determinou que o Shopping retirasse do contrato a cláusula de raio, mantendo a exigência do CADE. No mesmo diapasão, recentemente, o TJ/BA considerou abusiva a imposição da cláusula de raio.

Trata-se de artifício contratual imposto ao aderente, com claro objetivo de dominar área geográfica de relevante expressão comercial, dificultando a abertura de novas lojas e a livre concorrência, ofendendo o direito constitucionalmente tutelado do exercício pleno da atividade econômica, art. 170, inciso IV, c/c o art. 173, § 4º da Constituição, além de violar o disposto na Lei nº. 8.884/94.

O STF, através da Súmula nº. 646 (clique aqui), já se posicionou, quando não admitiu a vigência de lei municipal, porque ofensiva ao princípio da livre concorrência.

Ora, se a alegação de interesse público não foi capaz de autorizar a regulamentação legislativa com maior razão não se pode admitir tal capacidade a uma cláusula, constante de um contrato de adesão, celebrado sem a interferência do Poder Público.

A realidade atual é cruel para os comerciantes, sejam as pequenas, médias ou grandes empresas; submetem-se às imposições dos shoppings centers, instituições que bem traduzem a voracidade e concentração de poder, instalam suas lojas, mediante cláusulas abusivas; trabalham sem condições de honrar até mesmo o valor dos alugueres; ficam endividadas e dependentes. Daí o grande rodízio de lojas nos shoppings. Guardadas as proporções traz-nos a lembrança do trabalho escravo, com a nova roupagem de "peonagem" por dívida; os "gatos" contratam peões com todas as garantias trabalhistas, fazem adiantamentos para as famílias que ficam; no final da empreitada, no acerto de contas, o trabalhador é cobrado de tudo e fica impedido de ir embora, porque endividado.

A lógica conclusão é de que as "atipicidades", constantes do contrato de adesão, prestam-se para propiciar o exercício da dominação de área relevante para o mercado de bens e serviços; os empresários não encontram alternativa que não seja a de aceitarem as cláusulas leoninas, porque a opção é somente aderir ou não abrir o entreposto comercial.

A "cláusula de raio", mesmo que tenha sido em livre expressão da vontade das partes, sempre estará sujeita ao controle da estrita legalidade pelo Poder Judiciário, visto que o decurso do tempo e o natural desenvolvimento da área comercial bem poderão, ao final, resultar em desequilíbrio contratual.

Não deve e não pode prevalecer a imposição desta cláusula, sob pena de o Judiciário chancelar limitações à livre concorrência, permitindo a dominação do mercado por grupos poderosos, violando flagrantemente a ordem econômica.

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*Desembargador do TJ/BA





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