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Meias Mentiras

Confesso que estou assustado com dois índices que andei apurando nessa lida diária de advogado.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Atualizado em 13 de outubro de 2008 12:50


Meias Mentiras

Mauro Tavares Cerdeira*

Confesso que estou assustado com dois índices que andei apurando nessa lida diária de advogado.

O primeiro é com o aumento das mentiras que estão sendo contadas por aí, ou atendendo aos que gostam de um pouco mais de suavidade, com o crescimento assustador das "meias verdades", que infelizmente, por uma propriedade matemática, não deixam também de ser, em metade, "meias mentiras".

O segundo é com o tempo em geral "mínimo" gasto pelos julgadores, ou por seus assessores, diretores de secretarias e cartórios, outros assistentes, enfim, quem realmente confecciona os despachos e decisões, e não só isso, mas o pequeno zelo e atenção que em geral vem sendo dedicado com questões importantes da vida de pessoas e empresas, que são os denominados jurisdicionados.

Bom, conjuguemos os fatores resultantes dos dois índices observados, e temos a seguinte realidade atual: Nas pendengas judiciais, entram todos os dias milhares de petições. Nelas estão meias histórias, pedaços de documentos, questões incompletas, interligações que não se ligam. Enfim, estão fatos que necessitam de complementos, ou de estudo mais apurado, ou de intensa investigação, ou de dedicação. Mas tempo não há, nem paciência existe, e nem ninguém está muito interessado se alguém tem ou não boa-fé, ou se há ou não justiça, ou se de fato deveria haver.

Então, de uma hora para outra, sua empresa pode ser sucessora de qualquer outra; sua conta corrente pode se confundir com a de seu primo ou irmão ou sócio; seu terreno pode se transformar no terreno ao lado; seu negócio de vinte anos pode deixar de existir; ou um ex-empregado, falecido há dez anos, pode ressuscitar na figura de uma filha; ou ainda ser anulada a compra de um imóvel que nunca ocorreu. Ou seja, a equação é a seguinte: uma história mal contada mais muita pressa e pouca paciência é igual à total insegurança jurídica1.

E daí o cliente desesperado nos procura, e a gente vai lá explicar para o Juiz que houve uma falha grave, que está causando um enorme prejuízo, coisa que antes apresentava resultado, e ainda em cidades do interior costuma funcionar. Existem muitos magistrados dispostos a nos ouvir e entender o óbvio, e capazes de reconsiderar a decisão, mas já chegamos a ouvir de alguns, mesmo após entenderem o equívoco que cometeram, a frase célebre: "Mas doutor, é para isso que existe recurso; é só o senhor recorrer!". E então há uma clara contradição. Todos são a favor de uma reforma processual, de uma simplificação do processo. Mas como simplificar o processo, diminuir o número de recursos, que realmente é excessivo, sem uma garantia de zelo com as questões dos jurisdicionados. E olha que, apesar desse "mundarel" de recursos disponíveis, em cada Tribunal Superior hoje existe uma trincheira preparada para barrá-los a todo custo. Então, a disponibilidade recursal na realidade é ilusória. A não ser que você, por excesso de democracia econômica, possa contar com aquele serviço especial denominado SAC-DGM (serviço de atendimento ao cliente - direto com o Gilmar Mendes), mas isso não é para qualquer um.

Dia desses, ao terminar uma sustentação oral em uma Turma de um Tribunal, houve a revisão de uma sentença. A condenação foi alterada, e era evidente que o que já havia sido pago pela empresa deveria ser deduzido. Mas isso não constou do dispositivo. Mero esquecimento da Relatora. Em tempos outros, uma intervenção do advogado, no caso eu mesmo, era bem vinda. Evitava embargos de declaração, poupava tempo. Como se tratava da Justiça do Trabalho, conduzida pela celeridade, tanto mais útil. Como sempre fui acostumado, já com praticamente dezessete anos de profissão, pedi a palavra, matéria de fato, salientei que minha intervenção seria só para evitar futuros embargos, e lembrei-os da "dedução" esquecida. E sabe o que ocorreu? A Relatora até me olhou com simpatia e estava, eu acho, pronta à correção, quando o Presidente me advertiu que isso era matéria de embargos e eu que tomasse as providências. Disse assim: "Doutor, o senhor providencie lá os seus embargos". Quase perguntei: "Mas Excelência, lá aonde hein?". E a celeridade foi para o vinagre.

Um advogado amigo meu, quando da minha saída, me puxou pelo braço, e me consolou dizendo: "Doutor, muito melhor, daí o senhor cobra honorários nos embargos, não cobra?". Não consegui me convencer até hoje, mas vai ver que o Presidente então estava era do meu lado? Vai saber.

Bom, sem querer desanimar, às vezes a gente desanima um pouco, mas bola pra frente. E com essa montanha de processos e essa Justiça meio estática, talvez fosse bom alguém ir pensando em mudar alguma coisa. Parece que as reformas que estão vindo estão aquém do problema. Por exemplo, será que para esta multidão de micro e pequenas causas, em geral contra as mesmas empresas que tem por esporte lesar consumidores nas mesmas coisas, precisamos dos mesmos juízes que temos para as grandes causas, de grande relevo? Não seria o caso de pensar em juízes técnicos ou árbitros ou seja lá o nome que se queira dar, mas pessoas com formação mais básica, aptos a solucionar problemas de menor monta, repetitivos, sem grandes valores envolvidos, inclusive com menor custo para o Estado? E nas execuções, não seria o caso de passá-las a departamentos técnicos, com calculistas e economistas e outros técnicos, somente orientados por Juízes nas questões essencialmente de direito? Enfim, tenho ouvido tantas idéias boas, e nada tem mudado.

Enquanto o nosso colchão de dólares, que o Lula insiste em dizer que é do Governo, vai se esvaziando nessa crise financeira sem tamanho, não seria o caso de alguém ir pensando em algumas mudanças? Ou vou ter de ficar consolando os nossos clientes o resto da vida? E então vou ter de mudar a minha profissão para psicólogo?

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1 W. Shakespeare, consagrado por ser um escritor apreciado pelo povo, pois falava a sua língua, dizia que "a mentira roda meio mundo antes de a verdade ter tido tempo de colocar as calças". Fazendo uma comparação, é realmente sensível a situação de um advogado, quando tem conhecimento da verdade, mas por falta de tempo ou interesse do julgador, fica impossibilitado de expor ou apresentar os fatos, ou os apresenta, mas tem negada a sua análise. Profissão realmente difícil essa nossa, cada vez mais.

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*Advogado do escritório Cerdeira e Associados











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