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A proibição do amianto e a CF

Reginaldo de Andrade

Era uma vez um senhor chamado João, que fabricava e vendia brinquedos educativos, aqueles de madeira pintada, feitos manualmente, numa oficina nos fundos do quintal. Seus produtos eram lúdicos, bem acabados e, muito embora não fossem tão vistosos quanto os industrializados, tinham preços mais baixos, o que fazia deles uma opção viável para quem não podia comprar um carrinho de controle remoto, uma boneca que fala ou uma bola assinada pelo ídolo da vez.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Atualizado em 7 de outubro de 2009 11:33


A proibição do amianto e a CF

Reginaldo de Andrade*

Era uma vez um senhor chamado João, que fabricava e vendia brinquedos educativos, aqueles de madeira pintada, feitos manualmente, numa oficina nos fundos do quintal. Seus produtos eram lúdicos, bem acabados e, muito embora não fossem tão vistosos quanto os industrializados, tinham preços mais baixos, o que fazia deles uma opção viável para quem não podia comprar um carrinho de controle remoto, uma boneca que fala ou uma bola assinada pelo ídolo da vez.

Apesar das dificuldades, o negócio de João ia bem, e garantia uma vida decente para ele, sua família, e para os outros 3 empregados da loja, que dependiam inteiramente do salário que recebiam.

Até que um dia alguém declarou que brinquedos de madeira eram um perigo para as crianças, e providenciou uma lei federal geral proibindo sua fabricação e comercialização. Para sorte de João, entretanto, um dos artigos excetuava os brinquedos classificados como educativos, desde que se comprovasse que a sua produção obedecia "os mais rigorosos controles de qualidade, de modo a garantir a segurança, a saúde e a integridade física de nossas crianças", como declarava a exposição de motivos.

Assim, João continuou com a sua oficina, vendendo seus brinquedos e fazendo a alegria das crianças do bairro, que não podiam comprar os produtos caros e brilhantes anunciados na TV. É certo que, de vez em quando, algumas pessoas se reuniam na frente da sua loja, reclamando que era um absurdo ela continuar funcionando, que as crianças do mundo corriam perigo com aqueles piões, pipas e cavalinhos de pau expostos nas prateleiras. João não entendia bem o porque daquilo, já que nenhum dos seus clientes habituais jamais haviam voltado para reclamar de algum ferimento ou contusão ocasionado pelos seus brinquedos (muito embora soubesse que alguns deveriam ter se machucado, mas, ora, eram crianças, se machucariam com ou sem os mesmos). E a vida continuou.

Mas, o governo estadual, preocupadíssimo com o bem estar das crianças, entendeu que era hora de por um ponto final naquela situação e editou uma lei proibindo imediatamente o uso de qualquer brinquedo de madeira em todo o território estadual, independentemente de sua classificação. Agora sim, as crianças estariam seguras, pois nunca mais chegariam perto de um brinquedo de madeira!

Acontece que a Lei Maior daquele país estabelecia que a competência para legislar sobre brinquedos de madeira era concorrente, cabendo à União e aos Estados dispor sobre o assunto. Dizia ainda, a citada Carta Magna, que havendo legislação federal esta seria geral, devendo as leis estaduais obedecerem os limites daquela.

E o que aconteceu ao João, que não sabia fazer mais nada na vida, a não ser fabricar e vender brinquedos de madeira?

Ele procurou um advogado, amigo dele, que disse que a lei estadual era inconstitucional (já que não podia proibir o que a lei federal geral admitia), e entrou com uma ação judicial para garantir o direito constitucional de João de trabalhar fazendo o que sabia, ao menos até que a lei federal fosse modificada para também proibir os brinquedos de madeira classificados como educativos.

Infelizmente o advogado não conseguiu uma medida liminar no Poder Judiciário (que atravessava uma fase sensível ao clamor popular contra os brinquedos de madeira), e João teve que fechar as portas, demitindo seus funcionários e aposentando suas ferramentas.

Essa é, guardadas as devidas proporções, a situação das empresas e lojas que usavam o amianto crisotila no Estado de São Paulo. Graças à edição da Lei Estadual 12.684/2007 (clique aqui), o simples uso de qualquer tipo daquele material, nos limites do Estado, está proibido. Trata-se de medida adotada tendo em vista os males causados pelo amianto, especialmente para os que trabalham em sua extração e refino.

Ocorre que, a questão do amianto já havia sido tratada pelo legislador brasileiro em 1995, quando foi editada a Lei Federal 9.055/95 (clique aqui), proibindo expressamente a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do amianto, mas excetuando a variedade crisotila (amianto branco), que foi liberada, mas passou a ter a sua utilização rigorosamente controlada, para evitar quaisquer problemas de saúde tanto para os trabalhadores dessa indústria quanto para os usuários do produto final.

Ora, a CF/88 (clique aqui) estabelece, no inciso VI de seu artigo 24, que a competência para legislar sobre "florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição" é concorrente, sendo legítimos legisladores, nesses casos, a União, os Estados membros e o Distrito Federal.

Sendo concorrente a competência legislativa para dispor sobre recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição, a própria CF estabelece, nos parágrafos do artigo 24, que à União caberá estabelecer as regras gerais, ficando os demais entes públicos (Estados e Distrito Federal) autorizados apenas a legislar suplementarmente, observando, claro, a regra geral.

Deixando de lado as paixões que o nome amianto carrega, o que qualquer operador do Direito pode constatar, de uma mera leitura da Carta Magna e das legislações federal e estadual, é que esta jamais poderia ter proibido o uso do amianto crisotila, uma vez que a Lei Federal nº 9.055/95 autoriza expressamente a utilização dessa variedade, desde que observadas as exigências contidas naquela lei.

Caso a sociedade entenda que o amianto crisotila representa um perigo para a saúde pública, deve mobilizar seus representantes no Congresso Nacional para que votem uma lei, proibindo também essa variedade. Ou então discutir a constitucionalidade da própria lei 9.055/95 frente à CF, para que seja expurgada do ordenamento jurídico essa exceção.

O que não é admissível, quer para o operador do Direito, quer para a sociedade, é que o Estado de São Paulo, mesmo incompetente para tanto, edite uma lei proibindo algo que a lei federal admite, pois, ao assim agir, estará desrespeitando o próprio núcleo do Estado de Direito, que é a observância dos limites impostos pela CF à atuação dos entes públicos.

A causa do amianto pode parecer ingrata (e talvez o seja), mas é o Princípio Constitucional por trás dela que está sendo ameaçado. E é ele que merece a nossa atenção.

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*Advogado


 

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