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Reminiscências dos anos 60 em Brasília

Foram efervescentes os anos que se seguiram a 1960. Os pioneiros tomavam conta de toda a cidade, ocupando os vazios deixados pelos piotários retirantes, que era como então carinhosamente se chamavam os que por aqui aportaram nos idos de 1956/1958, os verdadeiros construtores de Brasília.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Atualizado em 19 de abril de 2010 09:44


Reminiscências dos anos 60 em Brasília

Pedro Gordilho*

Foram efervescentes os anos que se seguiram a 1960. Os pioneiros tomavam conta de toda a cidade, ocupando os vazios deixados pelos piotários retirantes, que era como então carinhosamente se chamavam os que por aqui aportaram nos idos de 1956/1958, os verdadeiros construtores de Brasília.

Não suportaram a conversão do canteiro de obras em capital ; como chegaram, foram saindo, como no quadro de Urugami, que tanto enfeou a sala de sessões do Supremo Tribunal, deixando os espaços para os servidores atraídos pela dobradinha. Tudo era multo instável, desde o poder vacilante até as esquálidas mobilizações populares, mas as instituições funcionavam com regularidade.

A princípio, o Brasil e o mundo eram repassados à noite no saguão do Brasília Palace Hotel. Ali estavam, permanentemente, dois ministros do Judiciário, diversos ministros de Estado, chefes de gabinete, advogados, jornalistas e curiosos, trocando informações. Era o pente fino das últimas notícias, somente divulgadas nos jornais do dia seguinte. Esta central de informações, em breve, transferiu-se para o Hotel Nacional, que por mais de uma década colocou-se como pano de fundo dos grandes acontecimentos nacionais. E palco, também, por diversas vezes. Um sociólogo francês que andou por aqui, familiarizando-se desde logo com proeminentes figuras gratas à atmosfera do hotel, impressionou-se tanto com seu prestígio e força de persuasão que publicou, depois, em Paris, um ensaio sobre o assunto, cujo título não me recordo, mas que poderia ser "Da influência do Men's Bar nas instituiçoes brasileiras".

No saguão do Nacional havia de tudo, então. Até biblioteca, pois não é que um de seus mais famosos frequentadores (que quando morou em São Paulo, onde nasceu, tomava o trem para Campinas, às primeiras horas da manhã, porque era o único bar que ainda tinha cerveja gelada) dirigiu-se a uma grande autoridade da época, que estava sentada numa poltrona ao lado do "abat-jour", dizendo- Ihe : "Desculpe, mas V. Excia. está sentado sobre minha biblioteca." Sim, porque o figurão não se apercebera que a poltrona de couro verde era cativa, e mais : que sob a almofada estava o "Estadão", biblioteca evidentemente de leitura obrigatória para toda a colônia !

O poder, porém, esse ainda não estava por aqui. Já funcionavam as duas casas do Congresso e o Judiciário, mas o Poder Executivo, sobretudo os seus órgãos da área financeira, resistia. Qualquer assunto profissional ligado ao Poder Executivo nos obrigava a uma viagem ao Rio, geralmente no importante vôo das 19h, um Electra da Varig que transportava de volta para o Rio as autoridades. A viagem durava então mais de duas horas, tempo bastante para uma conversa esclarecedora sobre um problema na área ministerial. Às vezes, nesta viagem ficava resolvida a questão que levara o profissional ao Rio. Nesta hipótese, providenciava este sua volta às primeiras horas da manhã seguinte, num Viscount, que trazia as autoridades... As autoridades, como se vê, estavam num permanente vai-e-vem, naquela era que antecedeu os jatinhos, o DDD, o telex, o teletipo e a internet.

A cidade, engenhosa como todos reconhecem, era um delírio de luzes. Quando o Brasil ainda era iluminado por lâmpadas amarelas, Brasília já tinha iluminação a mercúrio, nas ruas e avenidas, enfeitadas pelos famosos postes senador. No interior das superquadras, não. Atribuíram os construtores a estas áreas um certo ar de doce mistério "para favorecer os namoros caseiros", como disse Lúcio Costa, e para isto a iluminação refletida dos apartamentos era suficiente. Nada de luz de rua. A unidade de vizinhança, composta de quatro superquadras, se formava, contendo um clube, cinema, escola-classe (o sonho do saudoso Anísio Teixeira), escolas primárias e creches. As lojinhas do comércio local se consolidavam, facilitando a vida dos moradores. Lembro-me com que dose de pragmatismo e encanto meu querido e saudoso amigo ministro Amarílio Benjamim revelou sua alegria, nos idos de fevereiro de 1961, por encontrar a cinquenta metros de seu apartamento, na superquadra 206, o Bar do Krek, em condições de solver quaisquer problemas culinários, desde uma boa pizza até manjares da cozinha mineira.

Era pobre a vida cultural. Além do Cinema Brasília e do Cine Cultura, não havia salas de espetáculo. O brasiliense da década de sessenta que não cuidasse de se atualizar, viajando regularmente para os grandes centros, estava correndo o risco de desaquecer-se culturalmente, como ainda se diz hoje em dia. Havia dose considerável de inventiva, porém, porque o distanciamento da cultura organizada dá lugar à criação, conquanto eventualmente em assimetria com as formas então em moda. Por força do arrojo das linhas arquitetônicas, todos se julgavam modernos e submissos às correntes de pensamento desatreladas de qualquer forma clássica de concepção. Mas nem todos tinham a genialidade do construtor de Brasília. Saíram, então, estas erupções arquitetônicas que, sob o rótulo do moderno, expeliram profundo mau gosto, como se vê ainda hoje em algumas residências no Lago Sul e em alguns prédios da Avenida W-3 Norte, sem falar no horrendo mastro que faz tremular a bandeira na Praça dos Três Poderes.

Aos poucos o plano original foi sendo revisto e, o que é pior, foi sendo atropelado. Andou-se, em certa época da ditadura militar, redesenhando a cidade. Vieram muitas novidades, desprezíveis, certamente, como o aeroporto, incondizente com a originalidade, a leveza e a beleza dos mais famosos prédios públicos, como o Ministério das Relações Exteriores e da Justiça, o Supremo Tribunal, o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto. Vieram, depois, lamentavelmente, o edifício sede do Banco Central, da Caixa Econômica, pesados, fincados no chão, oprimidos, sem aquela curva, aquele contorno, a delicadeza, a originalidade do traço.

O pensamento drummondiano chega, então, de maneira irresistível para nós, ao revivermos a vida rica das muitas décadas vencidas. Não há saudade, há apenas uma ruminação de fatos. Depois de remoídos, fica a sentença proverbial do poeta : cansei de ser moderno; agora quero ser eterno. Quero a elipse, a órbita, o movimento contínuo, a beleza da ordem do universo.

(Flagrantes de Brasília nos anos 60)

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*É advogado do escritório Gordilho, Pavie e Frazão Advogados Associados e exerce continuadamente a profissão desde fevereiro de 1961

 

 

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