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Headshot no bom-senso: terrorists win

Conforme amplamente noticiado, uma decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública n°. 2002.38.00.046529-6, pela 17a Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais - válida em todo o Brasil - considerou os jogos on-line "Counter-Strike" e "Everquest" impróprios para o consumo. Foi proibida a distribuição e comercialização de "livros, encartes, revistas, CD-ROM, fitas de videogame ou computador" com os jogos, sob pena de multa de R$ 5.000.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Atualizado às 07:13


Headshot no bom-senso: terrorists win

Marcel Leonardi*

Conforme amplamente noticiado, uma decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública n°. 2002.38.00.046529-6, pela 17a Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais - válida em todo o Brasil - considerou os jogos on-line "Counter-Strike" e "Everquest" impróprios para o consumo (Migalhas 1.824 - 23/1/08 - Migas1 - clique aqui). Foi proibida a distribuição e comercialização de "livros, encartes, revistas, CD-ROM, fitas de videogame ou computador" com os jogos, sob pena de multa de R$ 5.000.

De acordo com a decisão, referidos jogos supostamente "trazem imanentes estímulos à subversão da ordem social, atentando contra o estado democrático e de direito e contra a segurança pública, impondo sua proibição e retirada do mercado".

Um de meus hobbies é jogar videogames, nos poucos momentos que sobram entre as atividades de advogado, pai, professor e pesquisador. Alguns preferem assistir à programação da televisão aberta, com seus programas apelativos, novelas e reality shows; eu me divirto com variados jogos de computador, e o faço desde o final da década de 1970, quando jogava um clone de Pong. Desde então, nunca mais parei.

Counterstrike é uma modificação de Half-Life, jogo de tiro em primeira pessoa (first-person shooter, ou FPS). Criada originalmente por fãs do jogo, tornou-se posteriormente um software comercial, disponível através da plataforma de distribuição on-line Steam. Os jogadores se dividem em dois times: terroristas e contra-terroristas, com objetivos distintos conforme o cenário (conhecido como mapa) em que se enfrentam. Normalmente, os terroristas têm por objetivo destruir algo ou matar alguém, e os contra-terroristas, por óbvio, devem tentar impedi-los.

A maioria dos first-person shooters permite que a comunidade de jogadores crie mapas e modificações para o jogo. Foi o que ocorreu com o Counterstrike: jogadores brasileiros desenvolveram um map chamado cs_rio, alterando os gráficos para simular a cidade do Rio de Janeiro. Em sua descrição, lê-se que se trata de "um mapa totalmente brasileiro, com a cidade maravilhosa ao fundo, um botequinho tocando Bezerra da Silva, campinho de futebol com placar que marca seus gols, várias quebradas para invadir a favela, e até uma bala perdida que pode te matar de repente!"

Não são, de fato, jogos para crianças pequenas. Pode-se até dizer que sejam de mau gosto. Mas parece ter escapado ao bom senso que jogos similares são uma extensão das brincadeiras infantis de polícia e bandido, bonecos de ação, lutas simuladas e inúmeras outras atividades lúdicas, típicas de meninos. Qualquer pré-adolescente com idade suficiente para manejar o teclado e o mouse e movimentar seu boneco - carinhosamente apelidado de "hominho" - já foi exposto a situações de violência real muito piores do que aquelas que encontrará nos videogames.

A hipocrisia parece não ter limites. Banir a favela virtual não faz com que a favela real desapareça. Se a preocupação é evitar que os jogadores aprendam "táticas militares" - como se fosse possível comparar o manejo de rifles e outras armas de grosso calibre reais com o ato de pressionar teclas e de clicar os botões do mouse - qual será o próximo passo? Fechar os poucos locais em que ainda se pratica paintball? Queimar livros como "A Arte da Guerra", de Sun Tzu?

Se proibir a venda de um jogo violento para menores de 18 anos é perfeitamente compreensível, banir completamente a sua venda, inclusive para adultos, não faz o menor sentido. Proibir adultos de jogar videogames é tratá-los como crianças, incapazes de fazer escolhas.

Esse tipo de proibição de games, por sinal, nem é novidade. A Portaria 724, de 16.12.99, proibiu no Brasil a venda dos jogos Doom, Postal, Mortal Kombat, Requiem, Blood e Duke Nukem, em cumprimento à decisão judicial exarada na Ação Civil Pública 1999.38.00.037967-8, que curiosamente também tramitou perante a Justiça Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais. Na época, ninguém reclamou por um motivo óbvio: com exceção de Requiem, os jogos citados já eram ultrapassados e nem eram mais comercializados no Brasil, tornando a medida inócua.

O mesmo pode ser dito, por sinal, da proibição do jogo Everquest. A um, o jogo nunca foi comercializado oficialmente no país; a dois, trata-se de um MMORPG (massively multiplayer on-line role-playing game) que, a exemplo do popular World of Warcraft - com quase dez milhões de jogadores ao redor do mundo - apenas está disponível para assinantes. Seu modelo de negócio, portanto, é a venda de assinatura mensal para os jogadores, sem a qual não há acesso aos servidores - em regra, os jogadores são maiores de idade com cartão de crédito internacional, pois menores necessitam que seus pais concordem em pagar pelo acesso; por fim, o fato de o jogo permitir que boas ou más ações sejam praticadas em nada difere de outras formas de entretenimento: em qualquer história, há mocinhos e bandidos, vilões e heróis.

Richard A. Posner, um dos maiores juristas norte-americanos e juiz federal da United States Court of Appeals for the Seventh Circuit, observou no caso American Amusement Machine Association v. Kendrick que o nexo entre jogos violentos e violência real deve ser amplamente provado, e nunca presumido. Posner comparou esse tipo de videogame à literatura e aos filmes que contêm violência explícita, e que são admitidos como formas regulares de entretenimento.

Em uma famosa passagem desse julgado, Posner pondera que a violência sempre foi um ponto de interesse da humanidade e um tema freqüente da cultura humana, destacando que qualquer pessoa familiarizada com os célebres contos de Grimm, Andersen e Perrault sabe que a violência desperta o interesse de crianças desde a mais tenra idade. Alerta, ainda, que bloquear completamente a exposição de menores de 18 anos a descrições e imagens violentas não é apenas quixotesco, mas também deformador, pois pode deixá-los despreparados para lidar com o mundo real. Em suas palavras:

"Violence has always been and remains a central interest of humankind and a recurrent, even obsessive theme of culture both high and low. It engages the interest of children from an early age, as anyone familiar with the classic fairy tales collected by Grimm, Andersen, and Perrault are aware. To shield children right up to the age of 18 from exposure to violent descriptions and images would not only be quixotic, but deforming; it would leave them unequipped to cope with the world as we know it".

Infelizmente, faltam-nos mais juízes como Posner e sobram-nos pessoas motivadas a proibir o que não compreendem. Sem conseguir coibir a violência real, o Estado encontrou um bode expiatório na violência virtual, ignorando que ela representa não uma "subversão da ordem social", mas sim uma excelente forma de diversão de inúmeros adultos, que têm todo direito de consumir esse tipo de produto, dentro de sua liberdade de escolha. Tal como se apresenta, a proibição dos jogos representa um tiro certeiro no bom-senso.

PS: A propósito, gostaria de convidar o magistrado e os procuradores envolvidos no caso a jogar uma partida de Counterstrike. Quem sabe, compreendendo como o jogo funciona, perceberão o quão estapafúrdia é a sua proibição. E não precisam ter receio: não me tornei violento mesmo após anos ininterruptos de exposição aos videogames.

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*Advogado

do escritório Leonardi Advocacia







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