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O direito de superfície no novo Código Civil

A matéria é polêmica e longe está da unanimidade. O desleixado legislador, para dizer o mínimo, poderia ter facilmente dado uma diretriz e não o fez.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

O direito de superfície no novo Código Civil

Sílvio de Salvo Venosa*

O direito de superfície, introduzido no novo Código Civil, irá substituir com vantagem o regime da enfiteuse. Diferentemente da enfiteuse, a superfície é instituto de origem exclusivamente romana. Decorreu da necessidade prática de se permitir a construção em solo alheio, principalmente sobre bens públicos. Os magistrados permitiam que comerciantes instalassem tabernas sobre as ruas, permanecendo o solo em poder do Estado. Entre particulares, o instituto estabelecia-se por contrato. É consagrado como direito real em coisa alheia na época clássica. Permitia-se a plena atribuição do direito de superfície a quem, sob certas condições, construísse em terreno alheio. Assim, passou-se a permitir que o construtor tivesse obra separada do solo. No entanto, sob o ponto de vista romano, o direito de superfície somente era atribuído a construções, não se aplicando às plantações em terreno alheio. O instituto não foi introduzido no Código Civil francês, pois era visto como forma de manutenção da propriedade feudal.

O Código Civil português atual, uma vez abolida a enfiteuse, conceitua a superfície como "faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou nele fazer ou manter plantações" (artigo 1.542). O objetivo é mais amplo do que na enfiteuse, permitindo melhor utilização da coisa. O proprietário do solo mantém a substância da coisa, pertencendo-lhe o solo, no qual pode ter interesse de exploração ou utilização do que dele for retirado. Tem esse proprietário, denominado fundeiro, a fruição do solo e do próprio terreno enquanto não iniciada a obra ou plantação pelo direito lusitano. O superficiário tem direito de construir ou plantar. O fundeiro tem também a expectativa de receber a coisa em retorno com a obra.

No nosso sistema somente se permite a modalidade temporária, não podendo ser direito perpétuo, como na legislação lusitana. O direito de superfície é instrumento técnico-jurídico propulsor do fomento da construção, tão necessário, sobretudo nos grandes centros populacionais, onde a carência habitacional é problema constante.

Alguns aspectos marcantes podem ser destacados nesse instituto, que é altamente complexo: a) há um direito de propriedade do solo, que necessariamente pertence ao fundeiro; b) há o direito de plantar ou edificar, o chamado direito de implante; e c) há o direito ao cânon, ou pagamento, se a concessão for onerosa. Após implantada, há que se destacar a propriedade da obra, edificação ou construção, que cabe ao superficiário; a expectativa de aquisição pelo fundeiro e o direito de preferência atribuído ao proprietário ou ao superficiário na hipótese de alienação dos respectivos direitos.

O Código Civil de 2002 aboliu a enfiteuse, introduzindo o direito de superfície gratuito ou oneroso (artigos 1.369 a 1.377), estabelecendo, no entanto, obrigatoriamente o prazo determinado. É vedada a modalidade perpétua. Não se confunde o prazo indeterminado com a perpetuidade, que entre nós é proibida. O pagamento devido ao proprietário, que pode ser periódico ou não, denomina-se "cânon superficiário".

Cuida-se também de direito real limitado sobre coisa alheia, que apresenta inegáveis vantagens sobre a enfiteuse, embora com muita analogia com esta. Permite a nova lei, de forma mais eficiente, que o proprietário atribua a alguém a conservação de seu imóvel, por determinado prazo, mais ou menos longo, sem que o proprietário tenha o encargo de explorá-lo pessoalmente ou mantenha ali constante vigilância contra a cupidez de terceiros. Nesse aspecto se aproxima muito da finalidade originária da enfiteuse.

Dispõe o artigo 1.369 do novo código: "O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis". Parágrafo único: "O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão".

Trata-se, portanto, de uma concessão que o proprietário faz a outrem, para que utilize sua propriedade, tanto para construir como para plantar. O Código Civil de 2002 se refere apenas ao direito de o superficiário construir ou plantar, não mencionando o direito correlato, mencionado pelo código português, qual seja, o de manter no local as plantações ou construções já existentes. Parece-nos que é inafastável também essa possibilidade em nosso direito, por ser da natureza do instituto, não havendo razão para a restrição. Desempenha importante função social não só quem constrói e planta, mas também quem mantém plantações ou construções já existentes no terreno de outrem.

Veja, por exemplo, a situação de um prédio inacabado que o superficiário se propõe a terminar. Trata-se do que a doutrina lusitana denomina direito de sobreelevação, que não contraria nossa legislação. Nesse sentido se coloca também o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que, paralelamente, disciplina também o direito de superfície de imóveis urbanos, trazendo problemas de interpretação.

Dá-se o nome de "implante" à obra ou plantação que decorre do direito de superfície, como já referimos. O contrato que lhe dá origem somente gera efeitos pessoais entre as partes. A eficácia de direito real somente é obtida com o registro imobiliário. Como regra geral, o superficiário não pode se utilizar do subsolo no nosso sistema do Código Civil, salvo se essa utilização for inerente ao próprio negócio, como, por exemplo, a exploração de argila para fabricar tijolos. É conveniente que os interessados sejam claros no pacto a esse respeito.

O Estatuto da Cidade, aqui citado, atravessou o Código Civil, pois são leis da mesma época, porque também disciplina o direito de superfície nos artigos 21 a 23. Tal obriga o intérprete a definir a aplicabilidade de ambos diplomas legais sobre a mesma matéria, pois há detalhes que não se identificam. Esse estatuto entrou em vigor noventa dias após a sua publicação, portanto antes do novo Código Civil. É de se perguntar se, no conflito de normas, o novo código, como lei de vigência posterior, derrogará os princípios do estatuto. Se levarmos em conta a opinião por nós defendida no sentido de que o Estatuto da Cidade institui um microssistema, tal como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Inquilinato, e que, portanto, sob essa ótica, vigorará sobranceiro, em princípio, sobre as demais leis, ainda que posteriores. A matéria, no entanto, é polêmica e longe está da unanimidade. O desleixado legislador, para dizer o mínimo, poderia ter facilmente dado uma diretriz e não o fez.

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* Juiz aposentado do Primeiro Tribunal de Alçada Civil - sócio do escritório Demarest e Almeida Advogados - Autor de obra completa de Direito Civil em seis volumes 

DEMAREST E ALMEIDA - ADVOGADOS

 

 

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