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Concílio Vaticano II

O aggiornamento da Igreja - uma complicada questão hermenêutica

Nas especulações seguintes à renúncia papal, têm sido muitas as menções ao Concílio Vaticano II e as reformas trazidas por suas constituições, declarações e decretos.

Da Redação

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Atualizado às 07:42

"Buscai primeiramente aquilo que une, antes de buscar o que divide".
João XXII

Há 54 anos a sociedade e a Cúria romana também foram surpreendidas por um anúncio papal: João XXIII, "il papa buono", decidira convocar um Concílio.

Nem condenar heresias, nem proclamar dogma novo - o que o papa propunha à Igreja era um novo Pentecostes, uma nova vinda do Espírito Santo para melhor enfrentar os desafios do mundo moderno: a explosão demográfica, as injustiças sociais, os progressos científicos, o perigo de uma guerra nuclear, as reivindicações por autonomia e participação do homem de então.

É bom lembrar que a Segunda Guerra havia recém-acabado e deixado atrás de si o horror; no âmbito dos costumes, adentrava-se a mítica "década de 1960", em que o indivíduo buscaria libertar-se de suas amarras. Nesse contexto, Pio XII, antecessor de João XXIII, embora cioso guardião da tradição, já havia começado a abrir espaço para a participação de leigos na Igreja, mas desde que a dogmática e a hierarquia permanecessem intocadas.

Foram ao Concílio pelo menos duas linhas doutrinárias claramente distintas: os tradicionalistas, integrados pelo clero latino em geral (com grande destaque para os espanhóis), que apregoavam a interpretação católica fixa, imutável, sem preocupação com o contexto, que buscavam sobretudo firmar e reafirmar a ideia da Igreja e da patrística como depositório da Revelação; e os progressistas, formados por clérigos dos países do norte da Europa (Alemanha, Bélgica, Holanda) e pelos franceses, que com sua Nouveau Theologie, formavam, nas belas palavras do teólogo João Batista Libânio, "a pequena minoria que tocada pelas perguntas da modernidade, viera reivindicar espaço para a liberdade do sujeito, para a história, para a práxis".

A diretriz hermenêutica para a harmonização de tendências tão diversas foi proposta no discurso proferido à guisa de abertura pelo próprio João XXIII: o espírito do Concílio deveria ser ecumênico, buscar tudo o que fizesse "acolher pelos homens mais favoravelmente o anúncio da salvação".

As reuniões estenderam-se de 1962 ao início do ano de 1965, resultando em inúmeros documentos. As quatro constituições aprovadas representam as três grandes vertentes sobre as quais se debruçaram bispos e cardeais do mundo todo: a centralidade da Palavra de Deus; o olhar para dentro da Igreja (aqui se insere o conceito de Igreja e também a liturgia); o olhar da Igreja para o mundo. Mas refletem, sobretudo, as dificuldades de composição entre visões antagônicas, diferentes chaves hermenêuticas para a aplicação e prática da Palavra de Deus.

1) Dei Verbum - A Tradição também é palavra de Deus?

A preparação e redação dessa constituição foi a mais difícil de ser harmonizada, pois trata, em última instância, da discussão acerca do monopólio da verdade revelada. Até então, para a doutrina católica tridentina (redefinida no Concílio de Trento, o Concílio da Contrarreforma) a Revelação apoiava-se em fontes distintas entre si: as Sagradas Escrituras e a Tradição. Sob o propósito do Concílio, fazia-se necessário aproximar-se dos outros cristãos, não católicos (cuja fé apoia-se na ideia luterana do sola Scriptura) pondo fim à ideia de duas fontes distintas e delimitáveis.

É a primeira grande tomada de posição do Concílio, que embora cedendo parcialmente aos conservadores (que impuseram a manutenção da referência à Tradição), consegue redigir, após inúmeras discussões, dissoluções de comissão e instituição de outra, que

A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. (Dei Verbum, n. 9). (grifo nosso)

2) Lumen Gentium - O conceito de Igreja

Na redação da constituição destinada a definir o conceito de Igreja os conservadores e progressistas digladiaram-se entre a justificação da hierarquia e a abertura à participação dos fiéis. Para a eclesiologia tradicional, Deus havia escolhido alguns para ser dirigentes de sua Igreja e outros para simplesmente obedecer-lhes, concepções apoiadas em entendimentos expressos por Gregório XVI (1831-1846), que afirmara expressamente que "ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos"; e Pio XI (1922-1939), para quem "Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor".

A redação final da constituição Lumen Gentium expressa o conceito de Igreja como corpo místico de Cristo, baseado em teologia de São Paulo. Segundo essa visada hermenêutica, a Igreja não é a instituição hierarquizada, mas sim as diversas comunidades de cristãos espalhadas pelo mundo todo, em diferentes culturas - visão que permite maior respeito ao ecumenismo, já que todos os cristãos, unidos pelo batismo, formariam o corpo de Cristo. Prega a atividade pastoral apoiada na ideia de igual dignidade de todos os fiéis, abrindo espaço para maior participação de leigos nas atividades, e entre eles, às mulheres.

Na prática, a situação teria mudado nas inúmeras paróquias e igrejas espalhadas pelo mundo, mas não na Cúria romana, que teria permanecido altamente hierarquizada, demonstrando a não superação do conflito hermenêutico notado à época do Concílio.

3) Gaudium et Spes - Atividade pastoral

Ao tentar trabalhar a ideia de igualdade entre as atividades dogmática e pastoral da Igreja, o Concílio tentava harmonizar duas vertentes da vida humana: a espiritual e a material. Para a Igreja tradicional, apenas as questões espirituais (a que o cristão acessava por meio da fé e da graça) deveriam ser objeto de preocupação da religião. Aos olhos da visão proposta pelo Concílio, contudo, as condições materiais em que o cristão leva a sua vida (sofrimentos, pobreza, doenças, etc.) seriam razões de identidade entre ele e os apóstolos:

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. (Gaudium et Spes, 1)

Aqui o conflito hermenêutico deu-se sobretudo a respeito do conceito de "pastoral". Na abertura do Concílio, o próprio Papa João XXIII disse tratar-se de um "Concílio Pastoral" - no sentido de que não proclamaria dogmas, não proferiria condenações.

Os conservadores, contudo, em razão da crença na dicotomia dogmática x pastoral, em que a atividade pastoral (por preocupar-se com os aspectos terrenos da vida humana) estaria em posição inferiorizada em relação à dogmática, valem-se exatamente desse argumento (de que foi um Concílio apenas Pastoral) para questionar suas resoluções ou até mesmo não colocá-las em prática (caso dos seguidores do bispo francês Marcel Lefèbvre).

4) Sacrosanctum Concilium - Simplificação da Liturgia

A proposta do Concílio é que os atos, celebrações e expressões de culto fossem simplificados e dentro do possível unissem os cristãos, ao contrário de dividi-los. Os padres conciliares descrevem a Liturgia como "a primeira e necessária fonte onde os fiéis hão de beber o espírito genuinamente cristão", razão da adoção da missa em vernáculo, com o celebrante virado para a assembleia, e não para o altar, e do incentivo à participação dos fiéis nos diversos atos.

As divergências persistem - A discussão em torno da interpretação dos documentos promulgados pelo Concílio Vaticano II manteve-se acirrada por muitas décadas; o Sínodo dos Bispos realizado em 1985 ainda buscava definir princípios hermenêuticos para o Concílio.

Hoje, mais do que "conservadores" ou "progressistas", alguns historiadores e analistas da Igreja Católica preferem falar em "neoagostinianos" e "neotomistas", explicando que o primeiro grupo se oporia a mudanças em razão da visão de mundo pessimista, em que a presença do mal seria razão suficiente para apartá-lo (o mundo) da Igreja; os neotomistas, por sua vez, ostentariam visão mais otimista, abrindo-se para as "alegrias e esperanças" (Gaudium et Spes), crendo que é também no mundo que os cristãos poderão vivê-las.

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Leia mais :

Lauda Legal - "Hermenêutica Jurídica - v.60" - clique aqui.

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