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Direito ao esquecimento está implícito na CF, diz especialista

Karina Nunes Fritz esclareceu que o direito ao esquecimento não protege fatos de interesse público como ataques ao STF, à democracia ou à ordem constitucional, a quem quer que o pratique.

Da Redação

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Atualizado às 18:06

Recentemente, o plenário do STF entendeu que o direito ao esquecimento na esfera cível é incompatível com a Constituição Federal.

Ao Migalhas, a colunista migalheira Karina Nunes Fritz, citada, inclusive, pelos ministros durante o referido julgamento, avalia a decisão do colegiado e afirma: "a decisão STF vai na contramão da história e dos principais Tribunais europeus (...) o direito ao esquecimento é um direito fundamental implícito na Constituição".

Os ministros analisaram o caso de Aída Curi, que teve a trágica história - uma tentativa de estupro, seguida de assassinato - explorada pelo antigo programa Linha Direta. Os familiares da vítima invocaram o direito ao esquecimento, pois o fato foi exibido muitos anos depois de ter acontecido e sem a autorização das partes.

Primeiramente, Karina Nunes Fritz esclareceu que o direito ao esquecimento não protege fatos de interesse público como ataques ao STF, à democracia ou à ordem constitucional, quem quer que o pratique, "pois esses são fatos históricos que precisam, na verdade, ser sempre rememorados a fim de evitar erros futuros".

Dessa forma, segundo a doutora, o entendimento do Supremo vai na contramão da história e da jurisprudência sedimentada do STJ e dos principais tribunais europeus, tais como o TJUE - Tribunal de Justiça da União Europeia, BGH - Tribunal Constitucional Alemão e o Bundesgerichtshof, Corte infraconstitucional da Alemanha.

"Causou espécie o STF afirmar que o direito ao esquecimento agride a 'memória do país', impõe o silêncio sobre a história ou fatos de interesse público, 'fechando as cortinas do passado', pois o direito ao esquecimento não pretende abarcar fatos históricos e de interesse social, mas apenas notícias da esfera privada do indivíduo que perderam relevância social."

Direito ao esquecimento x liberdade de expressão

Karina Nunes Fritz salientou que o direito ao esquecimento não é regra, mas exceção, que pretende apenas evitar que notícias de cunho privado, não acobertadas pelo interesse público, sejam facilmente encontradas na internet e acessadas por qualquer um. "Por isso, os tribunais europeus têm permitido a desindexação e até a anonimização", afirmou.

"Não vejo isso como obstáculo à liberdade de expressão."

A especialista citou como exemplo a Alemanha - lá, desde a década de 1970 se reconhece o direito ao esquecimento e, apesar disso, a liberdade de expressão, opinião e crítica é exercida pelas pessoas e pela imprensa, no geral, de forma mais livre que aqui e o país preserva sua história de forma muito mais eficiente que o Brasil. "Ou seja, a imprensa, a história e a democracia alemãs nunca foram ameaçadas pelo direito ao esquecimento", afirmou.

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Brasil x Alemanha

Durante o julgamento no STF, os ministros citaram julgamento do BGH, quando negou pedido de desindexação de notícias sobre a suposta responsabilidade de um ex-diretor de importante instituição de caridade pelo déficit de 1 milhão de euros nos cofres da regional por ele dirigia. "A Corte alemã afirmou que o decurso do tempo não apagara o interesse público na notícia, negando o pedido de desindexação", explicou.

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Segundo a análise de Karina Nunes Fritz, o melhor desfecho para a controvérsia teria sido seguir a linha do tribunal alemão, "tivesse reconhecido a existência do direito ao esquecimento, mas negado no caso concreto", afirmou.

Confira a íntegra da entrevista com  Karina Nunes Fritz.

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Como você analisa a decisão do STF sobre direito ao esquecimento?

Com a máxima vênia às posições em contrário, penso que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar o direito ao esquecimento incompatível com a Constituição vai na contramão da história e da jurisprudência sedimentada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos principais tribunais europeus, como o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), Tribunal Constitucional Alemão e o Bundesgerichtshof (BGH), Corte infraconstitucional da Alemanha. Uma primeira leitura aponta uma compreensão estreita da figura do direito ao esquecimento.   

Parece-me importante para esclarecer de início para o que não serve o direito ao esquecimento. Ele não serve para impedir a divulgação de notícias sobre o impeachment de Fernando Collor ou de Dilma Rousseff, sobre o golpe militar de 64 ou os crimes cometidos durante a ditadura, pois esses são fatos históricos que precisam, na verdade, ser sempre rememorados a fim de evitar erros futuros. Da mesma forma, ele também não se presta a apagar notícias sobre suspeitas de corrupção dos envolvidos na operação Lava Jato, sobre vendas de sentença ou abusos de autoridade por magistrados, escândalos de corrupção de políticos, empresários ou autoridades públicas, nem para impedir que daqui há alguns anos o ataque do Deputado Daniel Silveira ao STF e à Constituição seja divulgado na mídia, pois esses são fatos de grande interesse público e social, aos quais a sociedade tem direito de ter pleno acesso.

Dessa forma, causou espécie o STF afirmar que o direito ao esquecimento agride a "memória do país", impõe o silêncio sobre a história ou fatos de interesse público, "fechando as cortinas do passado", pois o direito ao esquecimento não pretende abarcar fatos históricos e de interesse social, mas apenas notícias da esfera privada do indivíduo que perderam relevância social com o decurso do tempo e cuja republicação - ou permanente acessibilidade na internet - interfere gravemente na vida e no desenvolvimento da personalidade da pessoa afetada, por exemplo, gerando constrangimentos, embaraços aos familiares, dificultando a recolocação profissional, a ressocialização ou um simples recomeço.

O direito ao esquecimento é, dessa forma, uma decorrência lógica e necessária da personalidade e da autonomia (autodeterminação informacional) do indivíduo. E o próprio STF já reconheceu a autodeterminação informacional como direito fundamental implícito e espinha dorsal da Lei Geral de Proteção de Dados. Logo, o direito ao esquecimento é um direito fundamental implícito na Constituição. 

O direito ao esquecimento é um obstáculo à liberdade de expressão?

Não. O direito ao esquecimento não é regra, mas exceção. Ele não dá um poder absoluto à pessoa de deletar toda e qualquer informação a seu respeito disponível na imprensa ou na internet e, muito menos, de reescrever sua biografia de forma seletiva, filtrando e apagando, de acordo com suas conveniências, acontecimentos desabonadores do passado. Essa é uma leitura simplista do direito ao esquecimento. O que se pretende atualmente, via de regra, é apenas evitar que essas notícias de cunho privado, não acobertadas pelo interesse público, sejam facilmente encontradas na internet e acessadas por qualquer um. Por isso, os tribunais europeus têm permitido a desindexação e até a anonimização, como explicou o Min. Gilmar Mendes em seu voto divergente. Se antes o interessado tinha que ir aos arquivos e bibliotecas públicas para fazer uma pesquisa, hoje eles devem fazer uma busca específica no próprio site de notícias ou digitar termos relacionados ao fato para ter acesso à notícia no original. O que se quer, nesses casos, é uma desindexação a fim de evitar que qualquer busca rápida no Google pelo nome da pessoa coloque no topo da lista de resultados aquele fato passado que não goza mais de relevância social, mas que a prejudica enormemente.

Não vejo isso como obstáculo à liberdade de expressão. E a Alemanha é um bom exemplo: lá, desde a década de 1970 se reconhece o direito ao esquecimento e, apesar disso, a liberdade de expressão, opinião e crítica é exercida pelas pessoas e pela imprensa, no geral, de forma mais livre que aqui e o país preserva sua história de forma muito mais eficiente que o Brasil. Ou seja, a imprensa, a história e a democracia alemãs nunca foram ameaçadas pelo direito ao esquecimento.

Aliás, ninguém questiona a importância fundamental da liberdade de expressão, informação e imprensa para a sociedade e a democracia. E a conservação - e acesso - ao manancial de informações atende mais ao interesse social do que aos interesses das empresas de comunicação. Mas em casos excepcionais, a pessoa precisa ser protegida, porque no Brasil e na Europa a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ao contrário, é a dignidade humana que tem precedência sobre os demais direitos fundamentais.

Em que medida podemos estabelecer um comparativo do julgado do STF com o do BGH, citado pelos Ministros Fachin e Gilmar Mendes?

A jurisprudência alemã é rica em casos de direito ao esquecimento, inclusive denegatórios da tutela. A decisão do BGH, publicada na coluna German Report do Migalhas, traz um bom exemplo de quando não se aplica o direito ao esquecimento. No caso, o BGH negou pedido de desindexação de notícias sobre a suposta responsabilidade de um ex-diretor de importante instituição de caridade pelo déficit de 1 milhão de euros nos cofres da regional por ele dirigia. A Corte alemã afirmou que o decurso do tempo não apagara o interesse público na notícia, negando o pedido de desindexação.

A decisão do STF, contudo, não abrange pedidos de desindexação, de modo que hipóteses semelhantes à do BGH ou do Google Spain não são abrangidas pela Tese 786. No voto, o relator isolou o direito à desindexação do direito ao esquecimento, abrindo espaço para a análise desses casos pelo juiz. Porém, sob o aspecto teórico, parece-me questionável que ambos os direitos sejam incomunicáveis, pois, conquanto distintos, eles decorrem, em última análise, do direito à autodeterminação informacional do indivíduo, como frisado pelos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes, em sintonia com a melhor doutrina europeia. Dessa forma, melhor teria sido, a meu ver, se o STF, seguido a linha do tribunal alemão, tivesse reconhecido a existência do direito ao esquecimento, mas negado no caso concreto. 

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